Três Mundos, de Catherine Corsini, é uma beleza de filme, um filmaço. Como o longa anterior da realizadora francesa, Partir (2009), é um drama denso, pesado, sério, baseado em história escrita por ela mesma. Como Partir, fala de temas como a imigração ilegal e as profundas diferenças sociais na França de hoje.
Também como em Partir, os personagens tomam muitas vezes as decisões erradas, que resultarão em profunda dor, em tragédia.
A história parte de um acidente – um atropelamento – para, em seguida, reunir os destinos de pessoas que vivem, como anuncia o título, em três mundos distantes, distintos, à parte.
Os sete minutos iniciais são um tour-de-force de tirar o fôlego do espectador
Os primeiros minutos do filme são um tour-de-force, um espetáculo, capaz de deixar o espectador atônito, sem fôlego.
Seqüência 1: Três homens se divertem em uma brincadeira besta: num terreno baldio, à noite, um deles dirige um carrão, finge que vai dar carona para os outros dois, mas quando chega perto deles acelera, depois volta, faz a mesma coisa de novo. Um dos dois, de paletó preto, pula sobre o capô do carro, e fica provocando o que está dirigindo. O motorista acelera muito, freia, o outro cai no chão. Os dois se aproximam dele, que está imóvel – mas de repente o homem se levanta, ileso, rindo.
Diversão idiota, coisa de adolescente besta à procura de adrenalina.
Corta, seqüência 2: um grupo de homens joga baralho. Falam numa língua estrangeira, algo próximo do russo. Um deles se chama Victor (Dorin Andone). Veremos mais tarde que são imigrantes vindos da Moldávia, uma das várias ex-repúblicas soviéticas. O dono da casa, Adrian (Rasha Bukvic), vai até a cama onde está sua mulher, avisa que vai sair para ajudar Victor em alguma coisa, voltará tarde.
Corta, seqüência 3: os tais três amigos estão no carro, a toda; o rádio toca música alto. Quem dirige agora é o rapaz de paletó preto, Al (Raphaël Personnaz, à direita na foto acima). Seus companheiros são Franck (Reda Kateb) e Martin (Alban Aumard). Não se mostra que raio de droga tomaram, se muito álcool, se alguma anfetamina, mas eles estão bem doidões.
Corta, seqüência 4: num apartamento de classe média, cheio de livros, um casal discute a relação. Ela, Juliette (Clotilde Hesme, na foto abaixo), está grávida, em início de gravidez; ele, Frédéric (Laurent Capelluto), quer que ela se defina quanto ao lugar em que vão morar. Juliette divide aquele bom apartamento com uma amiga e colega, Daphné (Noémie Dujardin). Frédéric quer que Juliette mande Daphné embora, mas Juliette não quer fazer isso, ainda não se decidiu se permanece ali ou se muda para o apartamento do namorado.
Corta, sequência 5: o carro dirigido por Al segue em disparada – e pega um homem que atravessava a avenida naquele momento. O homem é lançado ao ar, depois cai. O atropelamento se dá bem diante da varanda do apartamento de Juliette, que vê o momento do acidente, e desce correndo as escadas, seguido por Frédéric.
Al sai do carro, aproxima-se do homem que acabara de atropelar. Do carro, os dois amigos gritam por ele, o incentivam a sair dali correndo.
Quando Juliette chega à rua, o carro está se distanciando a alta velocidade. A moça pede ao namorado que chame uma ambulância, aproxima-se do homem ferido – Adrian, o imigrante da Moldávia.
Tudo isso acontece nos sete primeiros minutos do filme.
Uma jovem boa, altruísta. E um rapaz que trabalhou muito, teve sorte, está para ficar rico
Ao longo da belíssima narrativa que se seguirá a essa abertura estonteante, realmente de tirar o fôlego, o espectador verá que Juliette é uma pessoa boa, generosa, altruísta, que deixa de lado seus próprios problemas, inquietações e até deveres para ajudar os outros. E que Al, o rapaz que, numa noitada de loucas brincadeiras em busca de adrenalina, atropelou um homem e, instigado pelos amigos, não o socorreu, não é um sacana, um safado, um filho da mãe.
Al está para se casar. O casamento está marcado para dez dias depois da noite do atropelamento. A moça, Marion (Adèle Haenel), é rica; seu pai, Testard (Jean-Pierre Malo), é dono de uma grande concessionária de automóveis, e ganha muito dinheiro, tanto legalmente quanto em negócios escusos, por baixo do pano, muito provavelmente para evitar o Fisco francês. Al é empregado de Testard – é o melhor vendedor da concessionária, com sua cara bonita (o ator Raphaël Personnaz tem fina estampa, faz lembrar o jovem Alain Delon) e seu poder de sedução. O patrão gosta do rapaz, que começou de baixo e foi galgando escalas dentro da concessionária. Veremos mais adiante que a mãe de Al (Martine Vandeville) havia sido no passado faxineira da loja, depois empregada da família.
Atordoado com o acidente, remoendo-se em culpa, Al vai ter formalizada sua sociedade na concessionária: o futuro sogro mantém 50% do negócio, a filha Marion fica com 25% e Al, alçado ao posto de gerente, fica com 25%.
Um belo de um golpe do baú – mas Al não procurou aquilo. A ascensão profissional se deu porque ele sempre foi esforçado, trabalhador. E ele e Marion se amam de fato.
Três pessoas, em três mundos distintos, têm sua vida transformada em inferno
Sim, mas se Al não é um patife, por que não se entrega à polícia? Ou então, no mínimo, por que não se abre logo, conta para a noiva que o ama e o patrão futuro sogro que gosta dele que se meteu numa enrascada, e pede a ajuda deles para encontrar uma saída?
A dúvida pode ocorrer ao espectador. Ocorreu a mim – embora a resposta seja óbvia. Porque as pessoas erram, tomam as decisões erradas. E a cada novo erro a situação vai ficando mais dramática, torna-se mais e mais difícil encontrar uma saída.
Na vida real, as pessoas muitas vezes erram, tomam as decisões erradas. Nos dois filmes que vi realizados por Catherine Corsini, as pessoas quase sempre tomam as decisões erradas.
Juliette, altruísta, sempre disposta a ajudar os outros, não demora nada a chegar à mulher de Adrian, Vera (o papel da atriz Arta Dobroshi, de O Silêncio de Lorna, à esquerda na foto). É através de Juliette que Vera fica sabendo do atropelamento do marido, de sua internação, do hospital em que foi operado e permanece em estado muito grave.
Vera – o filme vai nos mostrar – é uma mulher profundamente apaixonada pelo marido que agora está ali entubado, inconsciente. É também uma mulher amarga, depois de cinco anos vivendo sem documentos num país estrangeiro, cansada de pedir para regularizar a situação, sujeitando-se a trabalho duro por ninharia.
A vida de Al se transforma num inferno, a de Vera se transforma num inferno pior ainda – e Juliette, a altruísta que só queria ajudar, ficará sob um fogo cruzado também infernal.
Uma diretora madura, que domina com perfeição seu ofício
Embora com uma filmografia curta, Catherine Corsini é uma autora e diretora absolutamente madura, que domina com perfeição o ofício. Nascida em 1956, no interior da França, dirigiu seu primeiro curta-metragem em 1982, e o primeiro longa, Poker, em 1987.
Seu filme de 2001, La Répétition (literalmente, o ensaio, sem título no mercado brasileiro), com Emmanuelle Béart, concorreu à Palma de Ouro em Cannes. Por sua maravilhosa interpretação em Partir, Kristin Scott Thomas foi indicada ao César de melhor atriz. Este Três Mundos participou da mostra Un Certain Regard de Cannes.
O filme não foi um sucesso na França – teve 62 mil espectadores. É talvez um drama sério demais, pesado demais para o gosto médio dos espectadores.
O AlloCine, o site que tem tudo sobre os filmes franceses, conta que, quando tinha apenas 12 anos, Catherine Corsini foi atropelada – e o motorista fugiu. Ela partiu desse incidente traumático do início da adolescência para escrever o argumento e o roteiro do filme, tarefa dividida com Benoît Graffin; os dois tiveram a colaboração, conforme mostram os créditos finais, de Antoine Jaccoud e Lise Macheboeuf.
No AlloCine há uma frase da realizadora sobre um dos temas em que o filme se debruça – a relação dos personagens com o dinheiro. “No filme, muitas das coisas giram em torno do dinheiro. É possível uma pessoa se redimir através do dinheiro? E se sim, quanto vale um erro? Todo mundo parece gangrenado pela questão do dinheiro.”
Curioso: para mim, a personagem que é mais apegada a dinheiro é justamente Vera, a imigrante ilegal que não tem dinheiro algum. Al me pareceu bem menos apegado ao dinheiro do que Vera. E Juliette não está nem aí para grana.
Um filme sem atores famosos no elenco, e com grandes interpretações
O Monde deu ao filme 4 estrelas em 5. A crítica de Noémie Luciani no grande jornal fala bastante dessa questão da relação dos personagens com o dinheiro. “Ambicioso, muito rigoroso em sua execução, Trois Mondes mistura os gêneros da maneira mais pertinente que há. Do filme de ação, ele toma emprestado o ritmo imperdoável. Do thriller psicológico, seu questionamento moral e a duração que ele impõe. Do filme noir, a ausência de toda verdadeira pureza de alma.”
E conclui: “Tudo, do texto à encenação, recusa a facilidade. O filme, ele próprio, não é fácil. Mas suas ambiguidades, assim como suas dificuldades, são uma verdadeira riqueza”.
Catherine Corsini é uma grande diretora de atores. E já trabalhou com nomes importantes – Kristin Scott Thomas, Sergi López, Emmanuelle Béart, Karin Viard, Catherine Frot –, mas, para este Três Mundos, escolheu atores ainda não muito famosos. Raphäel Personnaz tem longa filmografia, mas boa parte dos títulos é de filmes e/ou séries para a TV. Está excelente como o atormentado, angustiado Al.
Clotilde Hesme também não é estreante, mas ainda não é uma estrela. Está no elenco de Mistérios de Lisboa, de Raoul Ruiz (2010), e teve um pequenino papel em A Bela Junie, de Christophe Honoré (2008). Sua interpretação como Juliette é extraordinária.
Com estes dois filmes, Catherine Corsini me conquistou totalmente. Gostaria de ver os outros que fez anterior, e tentarei não perder os próximos.
Anotação em janeiro de 2014
Três Mundos/Trois Mondes
De Catherine Corsini, França, 2012.
Com Raphaël Personnaz (Al), Clotilde Hesme (Juliette), Arta Dobroshi (Vera), Reda Kateb (Franck), Alban Aumard (Martin), Adèle Haenel (Marion Testard), Jean-Pierre Malo (Testard), Laurent Capelluto (Frédéric), Noémie Dujardin (Daphné), Rasha Bukvic (Adrian), Virgil Aioanei (Oleg), Dorin Andone (Victor), Martine Vandeville (a mãe de Al)
Argumento e roteiro Catherine Corsini e Benoît Graffin
Com a colaboração de Antoine Jaccoud e Lise Macheboeuf
Fotografia Claire Mathon
Música Grégoire Hetzel
Montagem Muriel Breton
Produção Pyramide Productions, France 3 Cinéma, Canal+, France Télévision, Ciné+ . DVD Imovision.
Cor, 101 min
***1/2
comecei aver o filme depois da sua metade e fiquei preso aos acontecimentos, e achei sensacional até seu final. No google achei sua pagina e ela me desfilou o filme inteiro, com detalhes criticos. Acabei tendo ideia do filme todo, como um espetaculo. Parabens pelo excelente texto e acabei tambem encontrando uma nova diretora que nao conhecia. Parabens.
Caro Sibelius,
Muito obrigado por enviar o comentário – e pelo comentário tão gentil.
Vale muito a pena você ir atrás para ver o início do filme. É tudo muito bom, muito bem realizado.
Um abraço.
Sérgio
O filme é bom, mas acho que a diretora/roteirista perdeu a mão em certos momentos. E pelo jeito ela é chegada num dramaço!
Não entendo como homens com mais de 30 anos podem fazer uma brincadeira estúpida e perigosa, que como você bem disse é uma “diversão idiota, coisa de adolescente besta à procura de adrenalina.” Mas pode ser apenas um reflexo da nossa atual sociedade, onde pessoas de 30 se vestem e agem como adolescentes.
Ao fim e ao cabo me pareceu que o casalzinho à beira do casamento não se amava taanto assim: quando a noiva soube do ocorrido, só pediu que ele não “estragasse” a vida dela, não se importou em nenhum momento com o fato de ele ter atropelado um inocente, nem com as consequências que ele estava sofrendo. Só queria que houvesse casamento a todo custo, mesmo ele tendo acabado de traí-la com uma quase total desconhecida.
A desconhecida, por sua vez, grávida de um homem que ela também diz amar, igualmente topou transar com um cara que ela recém havia conhecido, e que ela sabe que atropelou gravemente um homem, cuja companheira ela está tentando ajudar. Toda uma tragédia e um clima fúnebre permeando a vida dos dois naquele momento, mas tudo o que eles queriam era transar no banco de trás do carro. Seriously? E o pior é que o cara que estava prestes a se casar se apaixonou pela grávida, e queria largar a noiva que ele tanto amava pra ficar com ela. Mas depois que ela conta que está grávida, ele não acredita e a paixão meio que acaba. Então tá.
Acho que eu esperava uma coisa, mas o roteiro foi por outro caminho, e ainda abarcou vários assuntos e misturou os gêneros de uma forma que deixou os personagens sem personalidade (ou vai ver nenhum deles era o que aparentava ser).
Os atores estavam todos bem, exceto a que faz a Vera, que ficou alguns tons acima; e concordo com você que ela pareceu mais apegada ao dinheiro que os outros.