Tempo de Recomeçar / Life as a House

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3.0 out of 5.0 stars

Este Life as a House, no Brasil Tempo de Recomeçar, que Irwin Winkler lançou em 2001, fala da relação pais e filhos. Vai fundo no assunto. Nesse sentido, é parecido com muitos outros filmes americanos, seja do cinemão comercial, seja dos independentes. E isso é muito bom: que venham mais e mais filmes sobre temas sérios, importantes, como as relações afetivas, a vida em família, a relação pais e filhos.

No entanto, me pareceu que ele se diferencia dos outros por uma série de aspectos. Ao contrário de muitos outros, vai fundo, também, em temas como drogas e sexo (tem até algum rock’n’roll), com uma naturalidade impressionante. Passa por pedofilia. Mas, sobretudo, é um filme que discute a sério a questão das posses materiais, os símbolos de bem estar, riqueza. A sociedade que tem como um de seus pilares a capacidade das pessoas, das famílias, de acumular bens materiais – coisas, trecos, teréns. Things, stuff. Bela casa, carro novo, roupa.

Não são muito comuns filmes que tratem disso com tanta clareza.

zzhouse2Em 1989, Danny DeVito lançou A Guerra dos Roses, que eu defini, quando revi em 2010, como “uma paulada fortíssima, vigorosíssima, em um estilo de vida – o apego a coisas, objetos, bens materiais que indicam riqueza, status social. É um panfleto contra o consumismo, o materialismo, essas faces lustrosas, brilhantes, do capitalismo”.

Em A Guerra dos Roses, quando o casamento dos belos e bem sucedidos Oliver e Barbara Rose acaba, os dois – interpretados por Michael Dougas e Kathleen Turner – iniciam uma guerra de verdade, violentíssima, cruel, pela posse dos objetos que haviam juntado ao longo da vida. Perdem completamente a razão na luta insana.

Um sujeito de temperamento difícil, de ego grande e que não dá bola para aparências

George Monroe, o protagonista deste Life as a House, interpretado pelo grande Kevin Kline, é exatamente o oposto de Oliver e Barbara Rose. George não dá a menor importância para as posses, os bens, os símbolos de bem estar. Muito ao contrário: faz questão de demonstrar seu imenso desprezo por tudo aquilo que caracteriza a vida da imensa maior parte das pessoas da sua cidade, de seu país, de seu tipo de sociedade. Tem um carro velho, mal tratado, sem valor. E mora num barraco favelento, horroroso – situado, no entanto, num lugar que se tornou riquíssimo, uma colina debruçada sobre o mar do Sul da Califórnia.

Tem um temperamento difícil, um ego grande – e muito amor pelas coisas simples e belas da vida, que estão aí, grátis, para quem quiser sorvê-las.

Com base em coisas que são ditas pelos personagens, dá para traçar algumas linhas básicas do passado de George, fatos que aconteceram bem antes da época em que se passa a ação.

zzhouse3O pai de George deve seguramente ter comprado aquele terreno, no topo de uma falésia diante do Oceano Pacífico, quando não havia nada, ninguém ali, e portanto era tudo barato. Construiu ali aquela casa absolutamente básica, simples, e ali viveu por décadas, com a mulher e o único filho. Era um sujeito autoritário, machista, mandão, que bebia muito e, quando bebia, tornava-se violento. George teve ódio do pai a vida inteira – um ódio que só aumentou quando o pai, bêbado, bateu o carro num outro, matando a si próprio, à sua mulher, a outra mulher que estava no outro veículo e deixando paraplégica a garotinha que estava no banco de trás.

George continuou vivendo na casa em frangalhos, enquanto em torno dele foram sendo construídas belíssimas casas, mansões espetaculares. A presença da casa favelenta era uma agressão constante aos novos ricos – mas eles não tinham como tirar aquele sujeito teimoso, renitente, do seu próprio terreno.

George ganhava a vida como criador de maquetes. Durante 20 anos, trabalhou numa grande empresa de arquitetura, criando, com paciência, cuidado e talento, maquetes perfeitas, lindíssimas, das casas projetadas pelo escritório.

Durante seis anos, foi casado com Robin (a sempre maravilhosa Kristin Scott Thomas), e viveram ali mesmo, naquela pocilga. Tiveram um filho único, Sam. Separaram-se quando Sam estava com uns 6 anos de idade; George continuou apaixonado pela ex-mulher; ela tocou a vida, casou-se de novo, com Peter (Jamey Sheridan), um sujeito em tudo o oposto de George, empresário, bem sucedido, bastante rico. No novo casamento, Robin teve dois filhos, Adam (Mike Weinberg) e Ryan (Scotty Leavenworth).

Sam é um adolescente tão perdido que até a mãe admite que o detesta

Tudo isso é passado. Toda essa descrição acima é de fatos que aconteceram antes do início da ação. Quando a narrativa começa, já se passaram 10 anos desde que George e Robin se separaram. Ela mora numa casa espetacular, não muito longe do casebre de George. O maridão é daquele tipo que trabalha demais e dá atenção de menos à mulher e aos dois filhos biológicos – dois garotos absolutamente normais, aí de uns 5 e 7 anos, talvez.

O maior problema – além da falta de afeto de Peter – é Sam, o filho mais velho, agora um aborrescente insuportável de 16 anos. (Ele é interpretado por Hayden Christensen, que, quando o filme foi lançado, 2001, estava com 20 anos.)

zzhouse4É a tal questão da adolescência sobre a qual escrevi ontem mesmo, depois de ter visto Meninas Não Choram, um belo drama alemão sobre adolescentes. “Formação de caráter é uma coisa absolutamente complexa; são infinitas variáveis agindo sobre o adolescente, esse ser em formação. Os pais podem fazer tudo da melhor forma possível e imaginável, e acontecer de o garoto ou a garota se perder.”

Por algum motivo, ou alguma combinação de diversos motivos, ao chegar à adolescência Sam se perdeu. Criou uma barreira intransponível entre ele e a mãe, ele e o pai, ele e o padrasto. Cedeu ao apelo das drogas, está quase sempre chapado com maconha e/ou anfetaminas. Optou por aquele estilo de procurar a aparência mais horripilante possível: neteu um piercing no queixo, dois na orelha, usa maquiagem preta em volta dos olhos. Quando está em casa, tranca-se no quarto, liga o som alto e não deixa ninguém entrar. Pior ainda: está sendo assediado por um amigo, Josh (Ian Somerhalder), para ganhar uma grana preta para fazer sexo com pedófilos da região.

Robin comenta, bem no início da narrativa, que é dureza uma mãe detestar o filho que tem.

Com 15 minutos de filme, o protagonista está condenado por um câncer fatal

As primeiras seqüências nos apresentam George Monroe, sua casa e sua relação tumultuosa com os vizinhos ricos. É de manhã, e George está acordando, seu gigantesco cachorro babando no rosto dele na cama. Levanta-se, está só de cueca. Caminha para fora da casa bagunçada, favelenta, e com cinco passos fica junto do precipício, da beirada da falésia, o mar lá embaixo, o mar diante dele, uma vista absolutamente espetacular.

A câmara mostra George de costas, o Oceano Pacífico à frente dele. George tira o pinto pra fora e faz xixi.

Da janela do segundo andar uma das boas casas vizinhas, uma garotinha simpática, adolescente aí da mesma idade de Sam, observa a figura. Chama-se Alyssa (Jena Malone, na foto abaixo), e será importante na história. A mãe de Alyssa, Colleen (Mary Steenburgen), vê a cena, e, evidentemente, demonstra contrariedade. Vai reclamar com George – tirar o pinto pra fora e fazer xixi no Oceano Pacífico, diante da casa em que vive uma adolescente não é algo aceitável.

Veremos que, no passado, depois que se separou de Robin, George tinha tido um caso com Colleen. Mas isso tinha ficado para trás; agora a presença de George incomodava um pouco Colleen – embora ela não fosse tão chata e nova-rica quanto a imensa maioria dos vizinhos.

zzhouse5George vai para o trabalho na grande empresa de arquitetura. Um dos sócios o chama, explica que agora tudo pode ser mostrado aos clientes no computador, não é mais necessário haver maquetes. George, que sequer mexe com computador, havia se tornado um dinossauro, e estava na hora da extinção.

Quando o filme ainda não chegou a 15 minutos, George Monroe está sem emprego e, tendo tido um desmaio e sido levado para um hospital, recebe o diagnóstico de câncer terminal. Não há o que operar, não há o que fazer.

Ele toma algumas decisões. Vai manter a doença em segredo; vai pegar Sam para ficar com ele naquelas férias de verão que estão exatamente para começar; vai destruir o barracão e, com o dinheiro da indenização e de um seguro que tinha, construir uma boa casa pré-fabricada no lugar. Nada pomposo, fresco – mas bom, confortável, para ser deixado para o filho. Deixar para o filho algo melhor do que o pai deixou para ele.

Um drama sério, honesto, bem intencionado, com, no final, uma belíssima lição de vida

Pai e filho que se reaproximam não é um tema pouco visto – muito ao contrário. Aborrescente insuportável, pentelho, que vai aprendendo com a vida e melhorando volta e meia aparece no cinema – ainda outro dia vimos um caso extremo disso em Minha Nova Vida/How I Live Now, em que a protagonista, Daisy, interpretada por Saoirse Ronan, passa em um curto período de tempo de aborrescente irritante, egocêntrica, a uma jovem firme, determinada, forte, disposta a ajudar os mais frágeis.

O que é bastante raro, repito, é a forma tão absolutamente natural com que este Life as a House trata de drogas e sexo, e, sobretudo, como a moral da história é tão virulentamente anti-consumismo, apego a bens materiais. Essas características tornam o filme de Irwin Winkler bastante especial.

Irwin Winkler é um velho homem de esquerda. Nascido em 1931,  em Nova York, estabeleceu-se primeiro como produtor, a partir de 1967. Diz o Dicionário de Cinema de Jean Tulard: “Os mais de 40 filmes que Irwin Winkler produziu receberam 11 Oscars e 39 indicações. Prêmio justo a um dos melhores produtores de Hollywood, responsável direto por trabalhos destacados de Sydney Pollack, Martin Scorcese, John G. Avildsen, Costa-Gavras e muitos outros. Seu primeiro ensaio de direção ocorreu por acaso. Ele queria filmar uma história ligada à perseguição macarthista em Hollywood, no começo dos anos 50.” Alguns diretores que ele procurou acabaram não aceitando a tarefa. “Com o apoio de Robert De Niro e Martin Scorcese (que atuou vivendo um personagem que lembrava Joseph Losey), Culpado por Suspeita provou que Winkler podia ser tão bom diretor quanto produtor”.

zzhouse7Fez, até agora, apenas sete filmes como diretor. Depois da estréia em 1991 vieram Sombras do Mal (1992), A Rede (1995), À Primeira Vista (1999), este Tempo de Recomeçar (2001) De-Lovely, a cinebiografia de Cole Porter, com exatamente Kevin Kline no papel do compositor (2004) e A Volta dos Bravos (2006).

Tempo de Recomeçar – eta titulinho ridículo para um filme que mostra os meses finais de um doente terminal. De qualquer forma, Life as a House se baseia numa história original de Mark Andrus, ele também o autor do roteiro. Da mesma maneira que Irwin Winkler é realizador de poucos filmes, esse Mark Andrus é homem do roteiro de poucos títulos. Apenas seis, que incluem Melhor é Impossível/As Good as it Gets (1997), a comédia deliciosa com Jack Nicholson e Helen Hunt, Divinos Segredos (2002), sobre conflitos entre mãe e filha com Sandra Bullock e Ellen Burstyn, Ela é Poderosa/Georgia Rules (2007), comedinha com Jane Fonda como mãe de Felicity Huffman e avó de Lindsay Lohan, e Um Amor de Vizinha/And So it Goes (2014), outra comédia, com Michael Douglas e Diane Keaton.

Basicamente um autor de comédias, portanto, o autor da história e do roteiro.

Este Life as a House parece ser sua história mais séria, mais dura, mais dramática. Ele coloca toques cômicos aqui e ali, muito bem colocados. Há comédia, sim – mas o tom que fica, que permanece quando o filme termina é de drama. E um drama sério, honesto, bem intencionado – no finalzinho, uma belíssima lição de vida.

Uma canção que deixou marca forte em toda uma geração – a minha

zzhouse8Um detalhinho: lá pelo meio do filme, enquanto estão a toda na construção da casa nova, George e Robin botam para tocar num aparelhinho de som a canção “Both Sides Now”, de e com Joni Mitchell. Contam para o filho Sam que costumavam botar a música para ele dormir, quando era bem garotinho.

É impressionante como Joni Mitchel deixou uma marca forte para toda uma geração – que é a de Kevin Kline, e também minha – em especial com as canções “Both Sides Now” e “The Circle Game”. Elas estão presentes em vários filmes. Eu as ouço sempre, e sempre com grande prazer.

Gostei bem deste filme, de que nunca tinha ouvido falar. Foi uma agradável surpresa.

Anotação em setembro de 2014

Tempo de Recomeçar/Life as a House

De Irwin Winkler, EUA, 2001.

Com Kevin Kline (George Monroe), Kristin Scott Thomas (Robin Kimball), Hayden Christensen (Sam Monroe), Jena Malone (Alyssa Beck), Mary Steenburgen (Colleen Beck), Mike Weinberg (Adam Kimball), Scotty Leavenworth (Ryan Kimball), Jamey Sheridan (Peter Kimball), Ian Somerhalder (Josh), Scott Bakula (policial Kurt Walker), Sandra Nelson (enfermeira), Sam Robards (David Dokos),

Argumento e roteiro Mark Andrus

Fotografia Vilmos Zsigmond

Música Mark Isham

Montagem Julie Monroe

Produção Winkler Films.

Cor, 125 min

***

8 Comentários para “Tempo de Recomeçar / Life as a House”

  1. Quantum Leap… Dean Stockwell… recomendo!
    Também fez a maravilhosa “Men of a certain age”.

  2. O filme é bom, achei algumas coisas meio pesadas, e outras chatas (não tenho paciência com adolescentes rebeldes, ainda mais os sem causa) mas deu pra encarar, mesmo com alguns clichês, como a música instrumental que sobe tentando fazer o espectador chorar etc.

    Acredito que para combater o consumismo não é preciso morar numa pocilga, ainda que a vista para o mar seja espetacular e faça valer todo o resto. Achei isso meio forçado, apesar da boa intenção, e de gostar do tema.

    Não sei se era o objetivo, mas o filme deixa claro como alguns pais não sabem nada da vida dos filhos durante a adolescência: com quem andam, o que estão usando/deixando de usar e fazer. Medo!

    Explorar conflitos entre pais e filhos pode ser interessante, desde que não caia no dramalhão. Acho que sem querer o personagem do Kevin Kline acabou deixando a relação com o filho se deteriorar por causa da sua própria relação com o pai; acontecimentos mal resolvidos que ele não soube elaborar ao longo da vida, e que de certa forma podem ter prejudicado seus outros relacionamentos.

    O roteirista pesou a mão nos dramas, e deu algumas saídas rápidas para certas situações. Isso é até comum em filmes desse tipo, e me irrita um pouco. De todo modo, é bom ver diretores velhinhos na ativa, com coragem para abordar assuntos polêmicos.

    Eu gosto da atuação da Jena Malone, ela é melhor que o ator que faz o carinha rebelde. Está muito bem também em “Stepmom”, um filme que eu adoro (fui olhar a idade dela, só por curiosidade, e já está com 30 anos. Estou ficando velha!).

    Fazia muito tempo que eu não via em um filme americano sobre classe média alta, uma família com empregada, ainda por cima de uniforme. Tudo bem que eles tinham grana, mas me surpreendeu. Gosto do estilo americano/europeu de cada um fazer uma coisa em casa, e principalmente, dos homens ajudarem nas tarefas domésticas.

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