Depois de rever agora Sweet and Lowdown, no Brasil Poucas e Boas, o Woody Allen de 1999, cheguei a me perguntar o que, afinal de contas, ele quis dizer com esse filme que é um tanto, um pouquinho estranho em sua obra. Aí, peguei um disco de Django Reinhardt e botei para tocar.
Acho que ouvir Django Reinhardt respondeu à minha pergunta. Ora bolas. Afinal de contas, o que Woody Allen deve muito provavelmente ter querido com Sweet and Lowdown foi isso mesmo: uma homenagem à música do fantástico cigano belga. Uma grande brincadeira com a figura desse músico extraordinário.
Precisa mais que isso?
Muita gente acredita que Emmet Ray – o personagem que Allen inventou – realmente existiu
Woody Allen é um artista tão fenomenal que o personagem que ele inventou para seu filme passou a ser considerado como uma pessoa real por muita gente boa.
Sweet and Lowdown começa com esta afirmação, antes mesmo dos créditos iniciais (que são sempre do mesmo jeito, as mesmas letras, na mesma tipologia de sempre, em branco sobre fundo preto):
“Emmet Ray: Pouco conhecido guitarrista de jazz que brilhou brevemente nos anos 1930. Gravou para a RCA Victor ‘I’ll see you in my dreams’, ‘My melancholy baby’, ‘I’m forever blowing bubbles’, ‘Exactly like you’, ‘Unfaithful woman’, ‘Dancing in the dark’. Ele era considerado o segundo melhor, perdendo apenas para o grande Django Reinhardt, e é mais conhecido entre os aficionados de jazz.”
Ao final dos créditos iniciais, aparece exatamente Woody Allen, que, em 1999, todo mundo sabia que, além de diretor e ator de cinema, era também um apaixonado por jazz, ele mesmo um instrumentista quase profissional. E Woody Allen, como se estivesse num documentário sobre Emmet Ray, fala sobre as histórias do músico. Em seguida, em meio à narrativa, outras personalidades falam sobre Emmet Ray – inclusive Nat Hentoff, famosérrimo crítico de jazz.
Lá pelo meio do filme há o depoimento de uma mulher identificada como Sally Jillian, autora, segundo informa o letreiro, do livro Guitar Kings. Com ar muito sério, ela diz para a câmara: “Eddie Durham, um dos pioneiros do jazz, conheceu Emmet em Chicago, na década de 30. Eis o que ele disse sobre Emmet em seu livro: ‘Conheci Emmet em Chicago. Era o auge da Depressão. O trabalho era escasso. Muitos davam aula de música para ganhar algum dinheiro. Emmet se recusava. Na época, ele estava casado com uma mulher chamada Blanche.”
Parece piada – e é! –, mas, se o eventual leitor der um google com o nome Emmet Ray, verá que há vários textos afirmando que esse foi de fato um importante músico.
Emmet Ray jamais existiu, moçadinha boa, a não ser na imaginação de Woody Allen e na narrativa de Sweet and Lowdown!
Aliás, Eddie Durham, citado por essa estudiosa Sally Jillian, existiu de fato: nasceu em 1906 e morreu em 1987; foi guitarrista, trombonista, compositor e arranjador. Mas Sally Jillian é ficção pura – ela é interpretada no filme por Sally Placksin.
Woody Allen dirige aqui dois dos maiores atores do cinema, Sean Penn e Samantha Morton
Emmet Ray vem na pele de Sean Penn. Foi a única vez em que se encontraram, esse realizador excepcional e esse ator igualmente excepcional, ele mesmo grande diretor de alguns poucos filmes. Imagino que devam ter se trombado durante as filmagens, dois gênios fortes, dois egos bem grandinhos. As trombadas, se é que existiram, não fizeram mal nem ao diretor nem ao ator – Sean Penn está brilhante, de aplaudir de pé como na ópera, no papel do violinista de jazz absolutamente genial que sabe que, infelizmente, não é o melhor de todos porque na Europa existe Django Reinhardt.
“Eu toco melhor do que qualquer outro guitarrista… exceto aquele cigano”, diz o personagem, mais de um vez, ao longo da narrativa.
Além de Sean Penn, Sweet and Lowdown tem ainda Samantha Morton.
Woody Allen é um dos melhores diretores de atores que o cinema já teve nestes cento e tantos anos de História. Já passaram por seus filmes dezenas de atores de talento descomunal. Para não ser muito repetitivo, lembraria apenas que Meryl Streep teve um de seus primeiros papéis importantes em Manhattan (1979), o gênio britânico Keneth Brannagh fez o papel principal de Celebridades (1998) e o bergmaniano Max von Sydow aceitou fazer um pequeno papel em Hannah e Suas Irmãs.
Neste aqui, que não é um de seus melhores filmes, o cara dirigiu Sean Penn e Samantha Morton, dois dos melhores atores da História do cinema. Não à toa, tiveram, os dois, indicações ao Oscar.
Talvez Allen estivesse querendo nos lembrar que arte e artista são coisas distintas
Woody Allen, assim como Steven Spielberg (para não falar de Federico Fellini, Ingmar Bergman e François Truffaut), tem imensa fascinação pelo passado, pelos anos em que ele era criança, ou ainda sequer tinha nascido.
Ele nasceu em 1935, no meio da Grande Depressão. A Grande Depressão está muito presente neste seu filme aqui, assim como em A Rosa Púrpura do Cairo. Há várias referências à pobreza, ao desemprego, à onipresença do gangsterismo. Só não se fala muito da Lei Seca. Bem ao contrário: como bebe, o tal do Emmet Ray!
Na verdade, é um sujeito absolutamente insuportável, esse Emmet Ray. Sua única qualidade é a arte de tocar divinamente o violão. É pernóstico, presunçoso, se crê o centro do mundo. É cafetão: no início da narrativa, o vemos pegando dinheiro de duas prostitutas. Ao conhecer Hattie (o personagem de Samantha Morton), sente desprezo por ela ser pobre e muda. Demora a se afeiçoar por ela, e a abandona quando aparece em sua vida uma mulher rica e terrivelmente afetada, Blanche (Uma Thurman, linda como sempre),
De uma certa forma, foi um choque ver um protagonista tão desprezível, após ter visto, poucas semanas atrás, Broadway Danny Rose, um filme em que Woody Allen mostra imensa simpatia pelos seres que cria.
Me ocorreu agora, enquanto fazia esta anotação, que talvez Woody Allen tenha feito esse Emmet Ray tão desprezível, tão idiota, tão mesquinho, um ser humano horroroso, para, propositalmente, enfatizar aquela verdade que tantas vezes esquecemos: a arte que uma pessoa cria é uma coisa, a vida pessoal daquele artista é outra completamente diferente. O fato de fulano ser um grande artista não significa necessariamente que ele seja uma bela pessoa.
Aquela velha história: Rimbaud foi traficante de armas e de escravos. Dizem que Erza Pound flertou com o nazismo. Isso não desmerece a poesia que fizeram – assim como o apego ao PT e à ditadura caquética dos irmãos Castros em Cuba não torna feios os versos maravilhosos de Chico Buarque.
A gente deveria ter isso sempre em mente, mas em geral nos esquecemos disso, e misturamos obra com vida do artista.
É. Talvez Woody Allen estivesse também querendo nos lembrar disso.
Nas músicas, Sean Penn é dublado pelo guitarrista Howard Alden
Para situar: Poucas e Boas/Sweet and Lowdown veio depois de Desconstruindo Harry (1997) e Celebridades (1998); depois dele viriam Trapaceiros (2000) e O Escorpião de Jade (2001).
Detalhinhos sobre o título do filme: vejo no IMDb que no Uruguai e na Argentina os exibidores usaram como título a tradução literal de Sweet and Lowdown: Dulce y melancólico. Os franceses foram mezzo poéticos e mezzo trocadilhescos, com Accords & Désaccords – que tanto pode ser Acordos & Desacordos como Acordes & Desacordos.
Já os exibidores portugueses viajaram e inventaram um Através da Noite. Poucas e Boas, o título brasileiro, sei lá o que significa. Por que não Doce e Melancólico, meu Deus do céu e também da terra?
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em cinco, e definiu o filme como uma diversão de Woody Allen sobre um guitarrista de jazz fictício dos anos 30 (brilhantemente interpretado por Sean Penn) que é um músico genial mas um ser humano podre. (Boa definição, essa.) “Samantha Morton está estupenda como uma inocente (e muda) mulher com quem ele tem uma improvável relação. A música é maravilhosa, o clima da época é impecável, mas a história vagueia.”
Maltin acrescenta uma informação importantíssima que eu ainda não tinha dado: o guitarrista Howard Alden – que é um dos que aparecem dando depoimentos sobre Emmet Ray, como se ele tivesse de fato existido – é quem toca a guitarra que Sean Penn dubla.
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard (vai sem aspas para me desobrigar de ser literal): Um verdadeiro falso guitarrista de jazz do fim dos anos 1930, saído do nada por um Woody Allen iluminado. Uma doce e melancólica história de amor com o encontro com Hattie, uma gentil jovem. O herói dessa fábula elegante atormentada nascida do imaginário de um poeta é um homem inconstante. Tudo é soberbamente acompanhado por arranjos musicais de Dick Hyman, pela incomparável presença de Sean Penn e de sua frágil parceira Samantha Morton. Sem esquecer a real beleza das imagens de uma pequena cidade balneária ou de um cabaré de jazz com a atmosfera enfumaçada dando um charme impetuoso a esta obra que nos leva muito mais longe que um simples documentário sobre um guitarrista imaginário.
É isso aí.
Anotação em setembro de 2014
Poucas e Boas/Sweet and Lowdown
De Woody Allen, EUA, 1999
Com Sean Penn (Emmet Ray), Samantha Morton (Hattie), Uma Thurman (Blanche), Brian Markinson (Bill Shields), Anthony LaPaglia (Al Torrio), Gretchen Mol (Ellie), Vincent Guastaferro (Sid Bishop). John Waters (Mr. Haynes), Woody Allen (ele mesmo), Nat Hentoff (ele mesmo)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Zhao Fei
Música Dick Hyman
Montagem Alisa Lepselter
Casting Laura Rosenthal e Juliet Taylor
Produção Jean Doumanian, Sweetland Films, Magnolia Productions. DVD Alpha Filmes.
Cor, 95 min
R, ***
Título na França: Accords & Désaccords. Em Portugal: Através da Noite.
Algumas ponderações: não achei o protagonista tão insuportável assim. Cara, ele “antecipou” o “Trainspotting”!
E amava Hattie, a personagem de Samantha Morton; deixou de ser cômico para tornar-se trágico no final. Acho que nem ele mesmo se conhecia até então.
Mas o mais legal são as situações inusitadas que ele se envolve. Que têm diferentes versões, como uma verdadeira lenda pop. A fuga pelo telhado e a queda no meio dos falsificadores é impagável.
Allen é de fato um gênio. Dá umas mancadas, mas acho que aqui ele acertou. Dou nota 4/5
P.S. Sabe um dos meus favoritos dele, que acho subestimado? “Tiros na Broadway”. Que elenco, que divertido!