Pais e Filhos, do realizador Hirokazu Koreeda, é uma obra-prima.
Drama familiar adulto, sério, sóbrio, profundo, sensível, trata de questões importantíssimas, fundamentais – com uma maestria de deixar o espectador profundamente tocado pelos personagens, por seu destino, e, ao fim e cabo, admirado, enlevado por tanto talento e tanta sabedoria.
Koreeda, nascido em Tóquio em 1962, diretor, roteirista, montador, produtor, é figura respeitada. Com 19 títulos como realizador no currículo, tem 35 prêmios, fora outras 38 indicações. Pais e Filhos, produção de 2013, colecionou 18 prêmios e 38 indicações. Apresentado na mostra competitiva do Festival de Cannes, ganhou o prêmio especial do júri.
Qualquer premiação, qualquer loa que se faça ao filme é pouco. Pais e Filhos é uma obra superlativa.
Não há nada, absolutamente nada fácil, quando se trata de crianças
Quem são o pai e a mãe de uma criança – os ditos naturais, ou biológicos, ou os que cuidam dela durante longos anos? Pai é o homem de quem saiu o sêmen, ou o homem que convive todos os dias com a criança? Mãe é a mulher que teve o bebê no ventre por nove meses, ou a mulher que durante anos e anos tomou conta do pequeno, cuidou dele, fez tudo por ele?
Não são questões fáceis.
Não há nada, absolutamente nada fácil, quando se trata de crianças.
A questão da definição de paternidade/maternidade, no caso de crianças adotadas, é difícil, dura, pesada. Há centenas, milhares de histórias de mães biológicas que dão o filho para a adoção e, mais tarde, reaparecem na vida dos pais de criação reclamando de volta a criança.
Quem tem direito a ficar com o filho? As duas famílias? Então, quem tem mais direito? O que é melhor para a criança? Como decidir cada caso, já que cada caso é um caso?
Milhares e milhares de casos de disputas vão parar na Justiça. Às vezes arrastam-se por anos, provocando profunda dor entre todos os envolvidos.
Muitas dessas histórias já foram contadas nos livros, nos filmes, e vão continuar sendo, exatamente porque é um tema importante demais na vida das pessoas.
Me impressionou profundamente um filme que não teve, creio, a repercussão que merecia, O Destino de uma Vida/Losing Isaiah, de 1995, de Stephen Gyllenhaal, o pai dos atores Jake e Maggie. Nele, Margaret, uma assistente social, interpretada por Jessica Lange, encontra, no hospital em que trabalha, um bebê, abandonado pela mãe numa caixa de lixo com três dias de idade, e o adota como seu filho. A mãe, Khaila, interpretada por Halle Berry, era uma sem-teto drogada, viciada em crack, um zumbi, um trapo. Khaila é presa por algum delito, passa um tempo na cadeia, livra-se do vício e, muito tempo depois, vai à Justiça pedir a guarda da criança.
O Destino de uma Vida procura – e consegue – não ser um panfleto a favor de uma tese ou da outra, a favor da mãe biológica ou da mãe de fato. Apresenta os argumentos a favor de um lado e a favor de outro.
Senti a dor daquelas pessoas como se elas fossem minhas amigas queridas
Pais e Filhos conta uma história ao mesmo tempo fascinante e lancinante a respeito dessas questões – mas não há, aqui, criança adotada. É uma tragédia ainda maior, ainda mais complexa, se é que isso é possível: quando duas crianças estão com seis anos de idade, o hospital em que elas nasceram descobre que houve um erro, uma troca. O filho criado por um casal é biologicamente filho do outro casal.
Só pode existir na vida uma tragédia maior – a perda de um filho. Só a perda pode ser pior.
Hirokazu Koreeda mostra isso muito claramente, ao longo de toda a narrativa – e envolve o espectador naquela tragédia absurda. Sou um velho experiente, um assistidor de filme com imensa quilometragem – e me envolvi na história como se fosse um adolescente, todas as sensações à flor da pele. Senti a dor daquelas pessoas como se elas fossem minhas amigas queridas, ou minhas mesmo. Mary também.
“Ele não é nada competitivo. Como pai, fico preocupado com isso”
O casal Ryota e Midori Nonomiya (ele interpretado por Masaharu Fukuyama, ela por Machiko Ono) é extremamente dedicado ao pequeno Keita (feito por Keita Nonomiya), seu único filho. Ele é único não propriamente por uma opção racional dos pais: Midori teve problemas no final da gravidez, e ficou impossibilitada de ter outros filhos.
Concentra todo o amor maternal no pequeno Keita – e é muito amor que ela tem para dar.
Estão bastante bem de vida. Ryota, arquiteto de boa formação, tem uma posição de destaque na grande empresa em que trabalha, tem toda a confiança do patrão, de quem é braço direito. A família mora muito bem, num ótimo apartamento classe média alta de uma metrópole. (O filme não diz explicitamente se é Tóquio, ou Osaka, ou pelo menos não pude perceber; parece que é intencional não especificar; é uma cidade grande, poderia ser qualquer uma.)
A primeira sequência do filme mostra a família Nonomiya – pai, mulher, filho – diante de dois experientes, maduros funcionários de uma escola cara, exigente, muitíssimo requisitada por quem pode pagar. A entrevista dos pais e do garoto parece ser um dos pré-requisitos para que a escola admita – ou não – a criança. Um vestibular em várias etapas.
O homem pergunta a Keita seu nome completo e sua data de nascimento. O garoto responde com perfeição.
A mulher pergunta: – “Com quem ele se parece mais, o pai ou a mãe?”
E Ryota responde: – “Pela calma e pela bondade, ele se parece mais com a minha esposa.”
É um casal bonito, elegante, educadíssimo. Ryota é um homem alto, belas feições, terno perfeitamente talhado. Midori, belíssima, veste tailleur preto, corretíssimo. Gente que teve boa educação, que está bem na vida. Um detalhezinho mostrará que Ryota havia estudado naquela mesma escola.
O homem: – “Ele tem alguma característica reprovável?”
Ryota (sorrindo educadamente): – “Na verdade, ele é um menino diferente. Ele é tranquilo demais. Não é nada competitivo. Como pai, fico preocupado com isso.”
Os interrogadores perguntam a Keita qual é sua estação do ano preferida, e o garoto responde que é o verão. E o que Keita fez no último verão?
Keita: – “Eu fui acampar com meu pai e a gente empinou pipas.”
O pai sabe empinar pipas bem?
Keita: – “Ele é muito bom nisso”.
Entram os créditos iniciais – os candidatos a uma vaga na exclusiva escola são reunidos para algumas atividades. Ryota e Midori aguardam num amplo salão. Ao fim dos créditos iniciais, os garotos são devolvidos aos pais. O pai pergunta a Keita por que ele falou que haviam acampado no verão, já que aquilo não havia acontecido. E Keita explica: – “Foi o professor do cursinho que mandou”.
Viver para trabalhar versus trabalhar para viver
O tema central de Pais e Filhos será a questão da paternidade biológica, o sangue do meu sangue versus paternidade de fato, de direito, do dia-a-dia, do cuidado, do amor. Claro, esse é o tema central. Mas, já nessa sequência inicial do filme brilhante, fica claro que serão discutidas também outras questões básicas, fundamentais.
A dedicação cega à carreira, ao trabalho, à ascensão profissional versus a atenção ao filho, o tempo dedicado ao filho.
Viver para trabalhar versus trabalhar para viver.
Vencer na vida é ter dinheiro? Ou procurar a felicidade, o prazer dos afetos?
A competição.
Sim, todos sabemos que a competição é uma das bases das sociedades capitalistas. Mas algumas exageram demais na competição, e todo exagero é ruim – e a japonesa, sabe-se, é uma das mais competitivas de todas. As crianças são forçadas desde cedo, muito cedo, a se preparar para as melhores escolas; exigem-se as melhores notas, sempre. Foram muito comentadas, alguns anos atrás, estatísticas alarmantes de casos de crianças e adolescentes enfrentando graves problemas psicológicos por causa desse incentivo à competição feroz – até mesmo o número de suicídios era apavorante.
Keita – vê-se pela afirmação que ele faz no iniciozinho do filme – fez, aos seis anos de idade, um cursinho preparatório para tentar ser admitido no colégio bom, caro, exclusivo.
Aos seis anos!
Aos seis anos, as crianças deveriam brincar, ser crianças! Não deveriam fazer cursinho para vestibular!
Ryota não acampou com o filho no verão – o garoto mentiu, treinado para dar a aparência de família feliz, absolutamente ajustada.
A família Nonomiya parece feliz e ajustada, no início da narrativa; pai e mãe se gostam, se respeitam, e ambos gostam do filho, o tratam bem, querem o melhor para ele. Mas o pai não empina pipa junto com o garoto – porque não tem tempo, porque trabalha demais. Ryota trabalha todos os sábados; às vezes, em casa, ainda trabalha mais um pouco até à noite, e mesmo aos domingos. Midori abandonou a carreira para cuidar da casa e do filho: é toda atenção para ele. Mas Ryota tem, na prática, muito pouco tempo para ficar com o filho e a mulher.
Pode haver dor maior na vida?
Quando estamos com exatos 11 minutos do filme (que tem 121), Ryota e Midori são chamados ao hospital onde Keita nasceu e informados de que houve um erro, uma troca. Os exames de DNA confirmam: o filho biológico foi entregue a um outro casal, Yukari e Yudai Saiki (interpretados por Yôko Maki e Rirî Furankî). E foi esse casal que criou o filho biológico deles, que ganhou o nome de Ryusei (Shôgen Hwang).
O hospital mediará um primeiro encontro entre os dois casais que haviam passado seis anos amando, alimentando, embalando, fazendo dormir, fazendo acordar, fazendo comer uma criança que, ao contrário do que supunham, não tinha o seu próprio sangue.
E um administrador do hospital avisa: em 100% dos casos de trocas de bebês registradas no Japão (e haviam sido muitas, algumas décadas atrás, tendo diminuído bastante nos anos mais recentes), os casais acabaram trocando novamente os filhos. Ou seja: cada casal tinha até então resolvido ficar com o filho de sangue, e não aquele que amaram durante anos.
O/a eventual leitor/a pode imaginar uma situação dessas?
Pode haver dor maior na vida?
Os pais são de classes sociais diferentes, e têm diferentes aspirações
As questões não existem isoladamente: há muitas variáveis no contexto de cada vida.
No caso da tragédia que se abate sobre os casais Nonomiya e Saiki, há, além de tudo, a questão da diferença social. Bem diferentemente de Ryota, os Saiki levam vida bastante mais humilde, em termos materiais. O pai tem uma pequena loja de material elétrico num subúrbio distante – e, depois de Ryusel, o primogênito, o casal teve mais dois filhos. Moram os cinco numa casa muitíssimo mais simples do que o elegante, confortável apartamento dos Nonomiya.
E o pai dos três garotos, muito ao contrário do arquiteto yuppie, não tem grandes ambições profissionais. Adora os filhos, adora ter tempo para brincar com eles, tomar banho com eles, soltar pipa com eles.
Numa das mais belas canções que já foram feitas sobre pais e filhos, Joan Manoel Serrat escreveu:
A menudo los hijos se nos parecen,
así nos dan la primera satisfacción;
Cargan con nuestros dioses y nuestro idioma,
nuestros rencores y nuestro porvenir.
Les vamos trasmitiendo nuestras frustraciones
con la leche templada y en cada canción.
Dá até a impressão de que Hirokazu Koreeda ouviu “Esos locos bajitos”, porque o que ele mostra no filme é o que o compositor espanhol/catalão escreveu em sua canção magnífica.
Passamos para nossos filhos – sejam os de sangue, sejam os de fato – nossa língua, nossos deuses, nossos rancores, nossas frustrações.
Pouco a pouco, a narrativa de Pais e Filhos vai revelando que muito do que Ryota mostra hoje, muito de seu caráter, veio da sua própria criação, da sua própria família, da sua própria formação.
Muitas vezes é muito duro, muito difícil aprender, somar os pontos, juntar os pedaços.
Ryota faz muita gente sofrer. Mas ele mesmo sofre como uma mula chicoteada demais – até que começa a aprender.
O machismo continua firme – essa chaga horrorosa
Disse mais acima que O Destino de uma Vida não é um panfleto a favor de que o filho deve ficar com a mãe biológica ou a mãe de fato. Apresenta os argumentos a favor de um lado e a favor de outro.
Pais e Filhos também apresenta os argumentos a favor da nova troca dos garotos Keita e Ryusei, e os argumentos contrários a ela. Mas o realizador Hirokazu Koreeda não tenta, de forma nenhuma, posar de neutro nessa questão tão complexa, tão polêmica. Ele demonstra claramente o que acha que é o mais certo.
E é tudo tão inteligente, tão correto, no desenrolar da narrativa, que, por várias vezes, o filme demonstra que, em geral, as mulheres são mais sábias, mais sensíveis, que seus maridos. Mais preparadas para os embates que o destino cria para todos nós. Mais maduras. Até porque, ao contrário do que em geral acontece com os homens, privilegiam a emoção, o que manda o coração.
Pelo que se sabe, e pelo que o próprio filme mostra claramente, a sociedade japonesa ainda é machista, mesmo hoje em dia, nas grandes cidades, e entre as pessoais mais bem informadas. São os pais dos dois garotos que tomam as decisões. As mulheres, mais sensíveis, mais sábias, tomariam desde mais cedo decisões diferentes das que os homens tomam.
É uma pena imensa, uma chaga horrorosa, essa coisa do machismo. Vem à cabeça a pergunta antiga, eterna, do grande Pete Seeger: When will they ever learn?
Algum dia vamos aprender?
Grande cinema é isso aí: uma bela história bem contada
Três pequenas observações.
Nos créditos finais, em letras pequenas, aparece o seguinte: “Referência: Laços trocados – ‘17 anos de um caso de troca de bebês’, por Okuno Shuji”. Numa rápida busca pela internet, não encontrei referências nem ao autor, nem ao título, que não sei se é um artigo de revista e/ou jornal, ou eventualmente um conto, uma novela. Os créditos dizem que o filme é escrito e dirigido por Hirokazu Koreeda.
Achei fascinante a presença das Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach, executados por Glenn Gould, na trilha sonora. O que é imortal é global.
E, finalmente, o mais importante: não há, em Pais e Filhos, uma única invencionice formal, um criativol, um lance de fogos de artifício. Nenhuma câmara torta, nenhuma câmara de mão exagerada, nenhuma montagem acelerada de tomadas curtas, nenhum truque com a ordem cronológica, com a narrativa. Não há, nem de longe, coisa alguma parecida com os modismos, tipo o Dogma 90 dos dinamarqueses. É tudo absolutamente reto, direto, simples, convencional, “acadêmico” – esse adjetivo que os críticos adoram usar para xingar as obras. É tudo, simplesmente, clássico. Uma belíssima história muitíssimo bem contada.
Grande cinema é isso aí.
Anotação em julho de 2014
Pais e Filhos/Soshite chichi ni naru
De Hirokazu Koreeda, Japão, 2013
Com Masaharu Fukuyama (Ryota Nonomiya), Machiko Ono (Midori Nonomiya), Yôko Maki (Yukari Saiki), Rirî Furankî (Yudai Saiki)
E os garotos Keita Ninomiya (Keita Nonomiya) e Shôgen Hwang (Ryusei Saiki)
Roteiro Hirokazu Koreeda
Fotografia Mikiya Takimoto
Música Takeshi Matsubara, Junichi Matsumoto, Takashi Mori
Montagem Hirokazu Koreeda
Produção Amuse, Fuji Television Network, GAGA. DVD Imovision.
Cor, 121 min
****
Título em inglês: Like Father, Like Son. Na França: Tel père, tel fils.
Vamos ver se conseguimos alugá-lo no próximo sábado. Fiquei com muita vontade de assistir.
Não sei porque, mas temos ultimamente revisto muitos filmes.
O engraçado é que eu não gosto mais de cinema, mas é só ler uma resenha dessas e morrer de vontade de ver o filme. Discordo do seguinte: machismo não é tão ruim. Assim como feminismo também não é. É tudo uma questão de medida. Tudo demais passa.