O Bom Pastor, que Leo McCarey lançou em 1944, foi um tremendo, extraordinário sucesso de público e crítica. Foi o filme de maior bilheteria nos Estados Unidos no ano de seu lançamento, com faturamento de US 6,5 milhão de dólares, segundo o livro Box Office Hits.
Foi também o grande vencedor do Oscar de sua temporada. Teve 10 indicações, e ganhou em sete categorias: filme, direção, ator para Bing Crosby, argumento (havia esse prêmio em 1944), roteiro e canção. Só não levou os prêmios de ator para Barry Fitzgerald, fotografia em preto-e-branco e montagem.
O título original, Going My Way, tem um clima assim da letra que Paul Anka criaria, décadas mais tarde, sob medida para o outro cantor e ator de voz extraordinária como a de Bing Crosby, e que na época já rivalizava com este, Frank Sinatra.
Assim como Sinatra na vida real, o personagem de Bing Crosby no filme fazia as coisas do jeito dele. Chuck O’Malley (este é o nome do protagonista da história) tinha um jeito todo seu de resolver pendências, solucionar problemas. Era um jeitinho quase brasileiro, quase do malandro carioca do imaginário popular.
Tinha tido uma vida cheia – muitas experiências, muitas aventuras, muitos amores – quando resolveu se dedicar ao sacerdócio. Ao tornar-se padre, tinha muito mais experiência mundana do que qualquer outro. Muito de sua habilidade, de seu jeito – o My Way do título original – vinha dessa característica.
Leo McCarey não é bobo, e então aproveitou para botar Bing Crosby cantando
Quando a ação começa, o padre O’Malley está assumindo o posto para o qual foi designado – o de auxiliar na paróquia do veterano padre Fitzgibbon (interpretado pelo ótimo, inimitável Barry Fitzgerald, o inesquecível Michaleen Flynn de Depois do Vendaval/The Quiet Man). Padre Fitzgibbon está na paróquia de St. Dominic há 45 anos. As coisas não vão bem: nos últimos anos, a paróquia havia perdido muitos fiéis e acumulado dívidas altíssimas.
Como em geral acontece nas histórias em que um veterano tem como auxiliar um novato – as da ficção e as da vida real –, a princípio o velho padre Fitgibbon não vai muito com a fuça do padre O’Malley. Mas este aqui é esperto, vivido, malandro (no bom sentido da palavra), e aos poucos vai dobrando as resistências do veterano.
Ter como protagonista de um filme Bing Crosby e resistir à tentação de botar o homem para soltar sua voz fantástica, excepcional, maravilhosa, é desafio para poucos. Leo McCarey, que não é bobo nem nada, não quis resistir à tentação. Seguiu o ensinamento de Oscar Wilde, que consta ter criado a frase “a melhor forma de resistir à tentação é ceder a ela”, e então Bing Crosby brinda os espectadores com algumas canções – inclusive, é claro, uma de nome idêntico ao título original do filme, “Going My Way”, e “Swingin on a Star”, ambas com música de Jimmy Van Heusen e letra de Johnny Burke. Esta última levaria o Oscar de melhor canção do ano.
A música entra no filme da forma mais natural possível. Na trama, diversos garotos da vizinhança da igreja St. Dominic estão perigosamente próximos da marginalidade. O padre O’Malley, com seu jeitinho de quem não quer nada, mas absolutamente persuasivo, incentiva os garotos a formarem um coral. Não só abandonam a fronteira da marginalidade como cantam danado de bem, os guris.
“Foi um papel que Bing abraçou com toda a sua vida”
O já citado livro Box Office Hits, de Susan Sackett, conta que o papel do padre O’Malley foi primeiramente oferecido a dois atores do primeiríssimo time de Hollywood, conhecidos por atuações em dramas, Spencer Tracy e James Cagney. Como os dois não estavam disponíveis, com outros compromissos, o diretor Leo McCarey (1898-1969), um veterano vindo do cinema mudo, decidiu chamar Bing Crosby. Foi, diz o livro, o primeiro papel dramático do cantor-ator. Bing Crosby trabalhava como ator desde 1930; havia feito pelo menos um filme a cada ano, em alguns anos até três filmes, mas eram sempre comédias e musicais.
Não que O Bom Pastor seja assim propriamente um drama. Não é. A rigor, a rigor, ele é uma utopia, um conto de fadas, uma cantiga natalina – tudo temperado por um excelente humor. Mas, vá lá, está muito longe de ser uma comédia musical como os filmes que Crosby fazia antes.
(Sujeito de imenso talento em tudo em que botava a cara e especialmente a voz, Bing Crosby teria, exatos dez anos mais tarde, em 1954, um extraordinário papel dramático em The Country Girl, no Brasil Amar é Sofrer, ao lado de Grace Kelly e William Holden, como um ator decadente e alcoólatra.)
A autora Susan Sacket afirma em Box Office Hits que Bing Crosby parece ter nascido para interpretar o padre O’Malley. E conta que Bob, irmão de Bing, afirmou, numa entrevista feita em 1969: “Ele interpretou Bing Crosby, porque ele frequentou escola de jesuítas a vida inteira”. E aí Susan Sacket diz: “Foi um papel que Bing abraçou com toda a sua vida, personificando os valores com os quais havia crescido, seu inato charme irlandês – tudo combinando para fazer sua atuação premiada pela Academia um clássico americano.”
Dois filmes com o mesmo personagem, dois sucessos extraordinários
No ano seguinte, 1945, Leo McCarey e Bing Crosby retomariam o personagem do padre O’Malley e fariam Os Sinos de Santa Maria. Todos os alfarrábios chamam o segundo de filme de continuação, seqüência de O Bom Pastor. A rigor, a rigor, não é propriamente uma continuação: é uma segunda história sobre o personagem central. Não há referências ao primeiro filme, a fatos mostrados no primeiro filme, e o espectador não precisa ter visto O Bom Pastor para ver Os Sinos de Santa Maria. São histórias absolutamente independentes uma da outra.
De novo foi um sucesso extraordinário. Foi o filme de maior bilheteria de 1945, assim como O Bom Pastor havia sido em 1944. Teve oito indicações ao Oscar, mas a Academia só deu a ele um prêmio técnico, de melhor som.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra; nem “Metamoforse ambulante”, nem “Opinião”
Agora, um mea culpa – e algumas considerações bem pessoais.
Vi este grande clássico pela primeira vez em 2000. Muito antes, portanto, de sequer imaginar que um dia teria um site sobre filmes.
Sempre anotei os filmes que vi. No mínimo, no mínimo, registrava a ficha técnica, o dia em que vi, onde, e dava uma cotação. Muitas vezes ficava só nisso. Muitas outras, eu fazia de fato anotações, comentários sobre eles, para mim mesmo. O tamanho dos comentários variava demais, de acordo com a disponibilidade de tempo, o impacto do filme sobre mim.
Depois que vi O Bom Pastor, fiz uma anotação bem pequena – e, vejo agora, bastante ruim, bastante equivocada.
É muito bem intencionado, sentimental, à la Capra – os padres são bons e fazem o bem, o dono do banco tem coração de pedra mas ao final mostrará que também pode ser – ou virar – bom.
No entanto, é longo sem necessidade, e se perde em detalhes de personagens paralelos e em números musicais que entram meio forçadamente no roteiro. Deve ter ganhado tantos Oscars porque, afinal, era guerra e precisava-se de um filme positivo.
Em suma: não entendi o filme. Não entrei no espírito dele. Não sintonizei com ele.
Agora, em dezembro de 2013, vi pela primeira vez Os Sinos de Santa Maria. Fui atrás do que havia escrito sobre O Bom Pastor – e fiquei bastante envergonhado. Chocado.
Embora, a rigor, a rigor, bem a rigor, não seja o caso de ter vergonha, ou choque.
Essas coisas acontecem. Já escrevi isso diversas vezes, mas insisto: é muito comum o fato de o espectador não entrar em sintonia com um filme.
Às vezes vemos um filme num momento errado. Falta sintonia.
Depende da hora, do momento, do nosso estado de espírito.
Devo seguramente ter visto O Bom Pastor num momento em que não estava preparado para aquela utopia, aquele conto de fadas, aquela cantiga natalina.
Quando vimos Os Sinos de Santa Maria, aconteceu de haver sintonia. Entramos no espírito do filme – e adoramos.
É longo sem necessidade, e se perde em detalhes de personagens paralelos e em números musicais que entram meio forçadamente no roteiro, escrevi sobre o filme de 1944.
Ao ver o filme de 1945 agora, sequer achei longo (os dois têm exatamente a mesma duração, 125 minutos). Os detalhes das subtramas, dos personagens paralelos, me pareceram agradáveis, gostosos; compõem, com a trama principal, um conjunto perfeito.
Opiniões são apenas opiniões, e refletem o momento. E temos todo o direito (talvez até o dever) de mudar de opinião, com o passar do tempo.
Ao contrário de Raul Seixas, Paulo Coelho e Lula, não prefiro ser uma metamorfose ambulante, que muda sempre de opinião a cada momento. Mas também discordo, e já faz muito tempo, dos versos de Zé Kéti, perfeitos para aquele momento exato, 1964, quarta-feira de Cinzas sobre o país – “podem me prender, podem me bater que eu não mudo de opinião”.
Não me fascinam nem uma coisa, a metamorfose ambulante, nem a outra, o eu não mudo de opinião.
Estou cada vez mais longe dos radicalismos, dos fundamentalismos, de um extremo ou de outro. Acho que a sabedoria está no meio termo, no bom senso. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como recitava minha mãe.
Às vezes este site recebe mensagens iradas, virulentas: você é um idiota, você não entendeu nada do filme.
Acontece de eu não entender um ou outro filme, sim. É verdade, é a mais pura verdade. Acontece com todo mundo. Até o jovem crítico François Truffaut deve ter escrito algumas barbaridades.
Opiniões são apenas opiniões. E as minhas, digo e repito sempre, não valem mais do que uma nota furada de três guaranis paraguaios.
Até porque posso jogá-las fora, e ter uma outra.
Nova anotação em dezembro de 2013
O Bom Pastor/Going My Way
De Leo McCarey, EUA, 1944
Com Bing Crosby (padre Chuck O’Malley), Barry Fitzgerald (padre Fitzgibbon), Rise Stevens (Genevieve Linden), Frank McHugh (padre Timothy O’Dowd), Gene Lockhart (Ted Haines, Sr.), William Frawley (Max Dolan), James Brown (Ted Haines, Jr.), Jean Heather (Carol James)
Roteiro Frank Butler e Frank Cavett
Baseado em história de Leo McCarey
Fotografia Lionel Lindon
Direção musical Robert Emmett Dolan
Montagem Leroy Stone
Figurinos Edith Head
Produção Leo McCarey, Paramount.
P&B, 125 min
***
Vi esse filme quando jovem, no Cine Ipiranga em São
Paulo. Revejo-o depois de sessenta anos com a mesma emoção .
Obrigado ao responsável pela postagem dessa jóia.
Vi O Bom Pastor na TV, nos anos 60, e adorei. Continuo adorando. Acabei de revê-lo agora mesmo, 1 de janeiro de 2022. Não gosto de Os Sinos de Santa Maria. Achei longo e chato. Que coisa, não?