Eis aí um belo filme de suspense, quase terror, que vem da Escandinávia. O diretor Pål Sletaune, ele próprio autor da história e do roteiro, é norueguês. A atriz principal, a sueca Noomi Rapace, tornou-se conhecida por interpretar a racker Lisbeth Salander nos três filmes escandinavos baseados na Trilogia Millennium, de Stieg Larsson – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, A Menina Que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar, todos de 2009.
A Escandinávia tem se mostrado pródiga em belos livros e filmes de suspense, mistério, histórias policiais, thrillers. O sueco Stieg Larsson (1954-2004) foi e é um fenômeno mundial, com um monte de milhões de livros vendidos. O norueguês Jo Nesbø, nascido em 1960, seis anos, portanto, depois de Larsson, segue pelo mesmo caminho (seu livro lançado mais recentemente no Brasil, Boneco de Neve, fala em 20 milhões de exemplares vendidos no mundo), com a vantagem de que não morreu tão jovem quanto o colega sueco, e continua produzindo abundantemente.
Esse Pål Sletaune, do mesmo ano de Jo Nesbø, poderia perfeitamente ter escolhido a carreira de escritor – é autor de quatro roteiros originais. Preferiu escrever suas histórias diretamente para as telas.
Pelo que mostra neste Babycall, tem imaginação, capacidade, talento para contar histórias. Assim como tem talento e segurança para contá-las no cinema.
Babycall é o título original do filme – assim, com a expressão em inglês. No mercado de língua inglesa, Babycall foi exibido como The Monitor; aparentemente não teve lançamento no circuito comercial brasileiro; foi exibido pelo canal Max com o título de Babá Eletrônica. Uma tradução correta – literal. Essa engenhoca que parece um walkie-talkie, e que as mães usam para ouvir os ruídos do quarto do bebê, tem função importante na trama.
Um terror que não vem de outro mundo, e sim de dentro da cabeça
É uma história de suspense, quase terror, daquele tipo em que o terror é psicológico. Não está em seres de outro mundo ou outra dimensão (embora haja um pequenino passo nesse território), e sim na cabeça das pessoas.
Essa cabeça que, como dizia o jovem Walter Franco, pode explodir.
Ou seja: está muito mais perto de O Inquilino e Repulsa ao Sexo de Polanski, O Iluminado de Kubrick, do que de Os Outros de Amenábar e O Sexto Sentido de M. Night Shyamalan.
Começa com a tela negra, enquanto ouvimos uma voz masculina chamar por Anna e perguntar onde está Anders.
A primeira imagem que se vê é um close-up de uma mulher aparentemente agonizante, caída no chão, sangue na boca, no nariz.
E em seguida volta-se no tempo. Não há letreiros para indicar isso, mas fica absolutamente claro que é um flashback. Aquela mulher que estava agonizante – Anna, o papel dessa extraordinária Noomi Rapace – está no banco de uma van.
A van a deixa diante de um gigantesco prédio de apartamentos.
Ela e o filho Anders (Vetle Qvenild Werring, na foto), garoto de oito anos, vão se instalar num apartamento do prédio enorme.
Para os padrões brasileiros, seria um prédio classe média média; para os padrões escandinavos, deve ser um conjunto “popular”, simples, sem ostentação mas com conforto, limpo, bem cuidado.
Ao entrar no apartamento, Anna fecha todas as cortinas.
Anna tem no rosto uma permanente expressão de pavor, de um medo profundo.
O espectador fica torcendo por aquela mulher apavorada
A conta-gotas, bem pouco a pouco, através de diálogos não absolutamente explícitos, o espectador vai sabendo que o marido de Anna é violento, bateu nela e no filho. Anna e Anders estão agora em endereço desconhecido para que o marido não possa encontrá-los; a Justiça proibiu o marido de chegar perto deles, mas Anna teme que ela desrespeite a sentença. Está sob a vigilância de agentes sociais do Estado.
O pavor de Anna é tamanho que ela a princípio não quer permitir que Anders freqüente escola; os agentes a convencem de que isso é impossível, o garoto tem que ir à escola. Anna então o leva, mas fica junto do pátio – recusa-se a sair de perto do filho ameaçado.
O espectador se compadece daquela mulher apavorada, se simpatiza com ela, torce por ela.
Uma tomada indica que há ali algo mais estranho do que se pensava
Um funcionário da escola vai ao pátio para conversar com Anna. Ela foge dele, entra num ônibus – mas assim que entra aperta a campainha para poder descer na parada mais próxima, para então voltar para perto de Anders.
Um homem sentado no ônibus percebe a aflição da mulher. Explica que mudaram o ponto, mas que ele está logo ali à frente. Descerão os dois na mesma parada.
O homem se chama Helge (Kristoffer Joner), e trabalha como vendedor numa grande loja de departamentos, no setor de eletro-domésticos e eletrônicos. Anna comprará dele uma babá eletrônica. Ele pergunta a idade do bebê, Anna responde que o filho tem oito anos.
Helge simpatiza com aquela mulher visivelmente transtornada.
No apartamento, Anna ouvirá choro de criança, súplica de criança, voz ameaçadora de adulto. Mas os sons não vêm do quarto de Anders – ali tudo parece estar em paz.
Anna volta à loja, conversa com Helge. Ele explica que às vezes ruídos de casas próximas entram na babá eletrônica; mas basta sintonizar nas duas caixinhas o mesmo canal para que isso não aconteça.
Quando a narrativa já está ali pela metade, há uma tomada que indica para o espectador que há algo ainda mais estranho do que tudo que havia sido mostrado antes.
A câmara faz close-ups do rosto de Noomi Rapace-Anna, e o espectador vê o pavor
A história é fascinante. Lançam-se muitas dúvidas ao longo da narrativa, o espectador tem todo o direito de ficar confuso, perplexo – mas todas as pontas serão competentemente ligadas. Não restará furo algum.
Babycall é um belo filme por causa da trama perturbadora, da maneira com que o diretor Pål Sletaune a relata – madura, sem efeitos fáceis, fogos de artifício –, e, sobretudo, pela interpretação extraordinária dessa jovem atriz.
Lisbeth Salander, a personagem criada pela imaginação desvairada de Stieg Larsson, é de fato extraordinária, completamente fora de série. É uma das personagens mais fascinantes da literatura e do cinema dos últimos muitos anos. Gruda na cabeça da gente, como se fosse alguém real, de carne e osso.
Ao ser levada para o cinema, Lisbeth Salander foi encarnada por duas atrizes igualmente fora de série, primeiro essa sueca Noomi Rapace, depois pela americana Rooney Mara. Me recusei a ver a refilmagem americana de Os Homens Que Amavam as Mulheres (para que, se a sueca era ótima?), mas todo mundo elogiou o desempenho de Rooney Mara como Lisbeth Salander; e depois ela nos impressionou demais, a mim e a Mary, por seu desempenho fantástico em Terapia de Risco/Side Effects, de Steven Soderbergh (2013).
Noomi Rapace está estrondosamente brilhante como essa Anna, essa mãe em permanente pavor, mãe abnegada que faz de tudo para proteger seu filho do monstro brutal que é o próprio pai dele.
Ela não é uma mulher de beleza esplendorosa – e isso ajuda. Tem um rosto forte, de feições marcantes; o corpo parece frágil, pequeno, indefeso, e a postura corporal dela, e todo o seu rosto, exalam pavor. A câmara faz close-ups do rosto de Noomi Rapace-Anna, e o espectador vê o pavor ali.
O rapaz que se compadece de Anna pode não ser exatamente o que aparenta
Também Helge, o vendedor da loja que se aproxima da pobre Anna, é um personagem muito interessante, bem construído e bem interpretado por Kristoffer Joner. Helge é educado, prestativo, percebe que Anna é uma mulher tremendamente angustiada – mas ele também tem problemas. Seu comportamento, seu jeito não muito à vontade, nervoso, às vezes faz o espectador suspeitar de que ele pode não ser o que aparenta.
Em ações paralelas à história de Anna, vemos que a mãe de Helge está em estado vegetativo em um hospital. O médico conversa com ele – tenta, de maneira educada, polida, fazer Helge compreender que não há volta para a mãe, e que depende apenas dele a decisão de continuar mantendo-a viva com auxílio das máquinas, ou terminar com aquela agonia.
No final da narrativa, haverá uma surpreendente revelação sobre Helge.
São muito loucos, esses escandinavos
Há muito tempo venho vendo filmes no DVD ou gravados no HD do cabo, de tal forma que me habituei a dar rewind, voltar atrás para ver de novo uma sequência, um detalhe, uma frase, uma expressão, um movimento de câmara. Este Babycall vimos enquanto passava no Max; estava gravando, e por isso tinha a consciência de que poderia rever um detalhe ou outro, se quisesse, quando quisesse – mas a experiência de ver um filme sem poder usar o controle para dar rewind ajudou a me deixar fascinado e perplexo com essa obra.
Quando terminou, ficamos por uns momentos atordoados, atônitos. Passado algum tempo, Mary fez um daqueles comentários certeiros dela.
Mais ou menos assim:
São muito loucos, esses escandinavos. IDH alto demais, problemas materiais de menos. Conforto material demais, sol de menos. Aí criam histórias apavorantes assim.
Verdade. Verdade.
Revimos o início do filme logo em seguida. Revimos com atenção a cena da van. É tudo certinho, bem feitíssimo, não há furo. Se o espectador for extremamente atento, naquela seqüência da van ele poderá intuir o que virá.
Conforto material demais, sol de menos. São muitos loucos, esses escandinavos. E talentosos.
Anotação em novembro de 2013
Babá Eletrônica/Babycall
De Pål Sletaune, Noruega-Suécia-Alemanha, 2011
Com Noomi Rapace (Anna), Kristoffer Joner (Helge), Vetle Qvenild Werring (Anders), Stig R. Amdam (Ole), Maria Bock (Grete)
Argumento e roteiro Pål Sletaune
Fotografia John Andreas Andersen
Música Fernando Velázquez
Montagem Jon Endre Mork
Produção 4 1/2 Film, Pandora Filmproduktion, BOB Film Sweden AB
Cor, 96 min.
***
Título em inglês: The Monitor.
Sérgio, fiquei muito confusa, mas por agora não tenho paciência para revê-lo.(mea culpa).
O seguinte, achei que Anders e Anna são Helge adulto e a mãe em estado terminal. Os quadro formam são na verdade dois. O filme pertence aquela categoria de mães castradoras e esquizofrênicas… Vou parar que já falei muita bobagem. Desculpe não tenho a sua inspiração para escrever. Abraços
Caríssima Maria Teresa,
você não falou nenhuma bobagem.
Pode até ser que sua interpretação seja correta.
Ou pode perfeitamente ser que o filme seja mais obra aberta do eu supus. Ou seja: que ele possa ser interpretado de mais de uma maneira.
ATENÇÃO: SPOILER BRAVO! Quem não viu o filme não deve ler isto.
De qualquer forma, aí vai a forma com que eu entendi:
No final, revela-se que Hegel havia sido abusado quando criança. E a mãe dele tinha conhecimento disso.
Revela-se também que o garoto Anders estava morto fazia já dois anos, assassinado pelo pai. O filho que Anna tentava proteger estava só na imaginação dela.
Um abraço, Maria Teresa!
Sérgio