A Garota de Trieste / La Ragazza di Trieste

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2.0 out of 5.0 stars

Os créditos iniciais mostram que A Garota de Trieste, que Pasquale Festa Campanile lançou em 1982, baseia-se no romance de sua autoria. É bem interessante, isso, porque, ao ver o filme, o espectador fica com a nítida sensação de que toda a história foi escrita especialmente para Ornella Muti interpretar o personagem que dá o título da obra.

O filme é inteiramente em torno de Ornella Muti e sua beleza estupenda, acachapante. Campanile e seu diretor de fotografia Alfio Contini não são bobos nem nada, e então a beleza de Ornella Mutti preenche a tela de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Os olhos de um azul fulgurante, o rosto perfeito, os cabelos gigantescos; o corpo todo, as pernas, os seios, a bunda, a floresta negra e densa no encontro das coxas lindíssimas.

zztriste4Ornella Muti, esse monumento romano, tão imponente quanto o Coliseu, estava na fina flor dos 27 aninhos de idade. Era experiente, com uma carreira de 12 anos e mais de uma dezena de filmes, vários deles com diretores respeitáveis, como Mario Monicelli, Franco Rossi, Marco Ferreri, Damiano Damiani. Um ano antes, com Ferreri, e ao lado do mesmo Ben Gazzara deste filme aqui, havia feito Crônica de um Amor Louco/Storie di ordinaria follia, grande sucesso de crítica.

Quando A Garota de Trieste termina, Ornella Muti fica na cabeça do espectador. Bem, ficou na minha – e imagino que fica também na de muita gente.

O filme, no entanto, não me pareceu nada memorável.

Com exceção da beleza de Ornella Muti, não me parece que ele tenha lá grandes qualidades.

Não há menção ao filme em diversos guias

No entanto…

Pois é. No entanto, também não me pareceu uma porcaria. Embora não conheça a obra de Pasquale Festa Campanile, vi o filme com a maior boa vontade, sem pé atrás, de forma alguma. Na verdade, acho que até fiquei torcendo para que fosse um bom filme. Não é, mas, repito, também não é um abacaxi – e então, diferentemente do que em geral faço, que é primeiro despejar minhas opiniões, e só depois ir atrás das de outras pessoas, quis transcrever logo o que dizem os autores dos guias.

zztrieste3Minha busca pelos alfarrábios se mostrou estranhamente infrutífera. O filme não está no fantástico CD-ROM Cinemania, que reunia diversos guias, inclusive o de Pauline Kael, crítica americana antenada com a produção européia. Não consta do Guide des Films de Jean Tulard, que traz a sinopse e uma avaliação sobre 15 mil títulos. Não consta do Dicionário de Filmes de Georges Sadoul, nem do Movie Guide de Leonard Maltin, que fala sobre 17 mil títulos. Não está no guia de Steven H. Scheur nem no de Mick Martin e Marsha Potter. Nem no ótimo Guia de Vídeo e DVD da Nova Cultural, que infelizmente deixou de ser publicado depois de 2002.

Só fui encontrar referências ao filme no Cinéguide francês e no TimeOut Film Guide inglês. O guia da TimeOut é chato de galocha – parece ter sido escrito por um bando de gente mal humorada que odeia o fato de ter que ver filmes e comentar sobre eles. Sua sinopse sobre The Girl from Trieste é de uma chatice atroz, e não vou perder mais tempo com ela.

O Cinéguide não traz apreciações sobre os 18 mil filmes que abrange – faz apenas curtíssimas sinopses. Sobre La Fille de Trieste, diz apenas: “Um desenhista de histórias em quadrinhos assiste ao afogamento de uma jovem e apaixona-se por ela”.

O melhor cinema do mundo nos anos 50 a 70 era o italiano

Ou seja: meu passeio pelos mais diversos alfarrábios revelou apenas que A Garota de Trieste é hoje um filme pouco conhecido, pouco comentado. Um filme obscuro.

Sobre Festa Campanile (1927-1986), diz Jean Tulard no Dicionário de Cinema – Os Diretores: “Jornalista, escritor, tornou-se cineasta em 1963. Festa Campanile filmou bastante e de preferência assuntos ousados, o que explica que não goze da fama dos ‘grandes’ da comédia italiana. Tratava-se, no entanto, de um espírito cultivado (…), que não cai jamais na vulgaridade. (…) ‘Meus filmes’, diz ele, ‘comédias paradoxais, não são o espelho da moral, mas vão além dela’.”

E aqui me permito uma consideração – e até um viajandão.

O melhor cinema que se fez no mundo entre o final da Segunda Guerra Mundial e pelo menos o início dos anos 70 foi, sem dúvida, o italiano. Não apenas porque o neo-realismo italiano foi o movimento mais influente sobre tudo o que viria depois (o novo cinema inglês, a nouvelle vague francesa, o cinema novo brasileiro, o cinema independente americano, até o chato do Decálogo dinamarquês, até o cinema iraniano do final do século XX), mas também porque houve naquele paiseco em forma de bota uma extraordinária geração de gênios e mestres – Visconti, Antonioni, Fellini, De Sica, Scola, Monicelli, Risi, Germi, Petri.

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A quantidade de talentos do cinema italiano entre, digamos, 1948 e 1970, só teria talvez paralelo com a concentração de compositores de música popular geniais nos Estados Unidos entre os anos 20 e 40 e no Brasil entre os anos 1930 e 1960.

Numa cinematografia tão rica quanto a italiana daquela época, Pasquale Festa Campanile não figura no primeiro time. Mas também, meu, isso não chega a ser realmente um demérito.

Como diz o personagem de Burt Lancaster (um americano que o cinema italiano sempre adorou) em Minha Esperança é Você/A Child is Waiting, do realizador símbolo do então jovem cinema independente americano John Cassavetes, “como você se sentiria se estivesse numa classe composta apenas por Einsteins?”

Não conheço, repito, a obra de Festa Campanile. Mas o respeito. O cara não teve culpa de nascer numa geração de Einsteins.

Uma mulher misteriosa, que finge se afogar e gosta de exibir o corpo em público

Tá, mas e o filme?

Bem, é como diz o Cinéguide: “Um desenhista de histórias em quadrinhos assiste ao afogamento de uma jovem e apaixona-se por ela”.

O artista gráfico Dino Romani é um americano expatriado em Trieste, onde tem uma belíssima casa. O nome dele indica que é um americano descendente de italianos – como o próprio ator que interpreta o personagem, Ben Gazzara.

zztrieste6Na primeira sequência do filme, Dino Romani-Ben Gazzara está sentado em um bar bem simples diante da praia, desenhando. Acontece então que algumas pessoas salvam uma mulher que estava se afogando. Retiram a mulher da água, a levam para a praia, fazem respiração boca-a-boca.

Daí a bem pouco ela está tomando um conhaque no mesmo bar em que Dino faz seus desenhos.

Dino se aproxima dela, coloca sobre ela um cobertor. Por que raios teria ele levado um cobertor para a praia? Mas o fato é que ele coloca sobre ela o cobertor que, sabem lá as musas dos roteiristas por que, havia levado para a praia. E diz para ela, com um ar muito blasé: se você não devolver o cobertor em três dias, dou queixa de roubo à polícia.

A moça comparece dias depois à belíssima casa do desenhista americano, vestida com o cobertor. Daí a pouquinho trepam.

A garota de Trieste interpretada por Ornella Muti faz o tipo misterioso. Obviamente, o americano expatriado apaixona-se por ela – mas ela é cada vez mais misteriosa. Diz a Dino, por exemplo, que na verdade não estava se afogando; sabe nadar muito bem; fingiu que se afogava, para atrair a atenção dos outros e ser salva.

Num restaurante burguês, puxa para cima a saia, exibe para o espectador e para quem jantava ali as belas coxas e tira as meias de nylon.

Quando o filme está ali por uns 30 minutos, ela se senta numa praça central de Trieste e exibe as coxas, todinhas. Os homens que passam ficou zonzos.

Estamos com exatos 40 minutos de filme quando o espectador fica sabendo algo muito importante sobre a garota misteriosa de Trieste.

Spoiler! Spoiler!

Poetas não costumam se dar bem na prosa. Prosadores em geral não são grandes poetas.

É provável que Festa Campanile, aparentemente diretor de mão cheia de comédias, tenha se atrapalhado neste drama.

A partir do que o espectador fica sabendo quando o filme está com 40 minutos, o filme parece se perder.

Me pareceu que, para fazer o filme, não pesquisaram direito sobre doença mental.

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As sequências passadas no hospital não são apenas ruins – me parecem grotescas. O personagem do psiquiatra, o professor Martin (interpretado por um Jean-Claude Brialy extremamemte pouco à vontade), é tão entendedor de psiquiatria quanto eu sou de física quântica.

Duvide-o-dó que o diretor e autor do romance Festa Campanile e o roteirista Ottavio Jemma tenham feito alguma pesquisa séria sobre doenças mentais.

Mas eles foram capazes de uma esperteza. Na sequência final, abrem a possibilidade de que tudo, tudo, tudo, tenha sido apenas fruto da imaginação de um atordoado americano expatriado.

Aí é perfeito. Diz-se adeus à lógica, a tudo. Era apenas um sonho, um viajandão, moçadinha boa!

Pensando bem, estão certos os guias todos ao ignorarem solenemente este filme. Ele merece permanecer obscuro.

Mas, credo em cruz, que Ornella Muti!

Anotação em janeiro de 2014

A Garota de Trieste/La Ragazza di Trieste

De Pasquale Festa Campanile, Itália, 1982

Com Ben Gazzara (Dino Romani), Ornella Muti (Nicole),

e Mimsy Farmer (Valeria), Jean-Claude Brialy (Professor Martin), Andréa Ferréol (Stefanutti), William Berger (Charly), Consuelo Ferrara (Francesca), Romano Puppo (Toni)

Roteiro Ottavio Jemma

Baseado no livro de Pasquale Festa Campanile

Fotografia Alfio Contini

Música Riz Ortolani

Montagem Amedeo Salfa

Produção Faso Film. DVD Lume Filmes.

Cor, 113

**

3 Comentários para “A Garota de Trieste / La Ragazza di Trieste”

  1. Ótima resenha. É um filme obscuro que só comprei pela capa e depois me interessei porque tenho um amigo que desenha profissionalmente e é bom especialmente com mulheres. E eu e ele achamos a mesma coisa que você.. rs.
    Parabéns!

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