Acho que nem os maiores fãs de Woody Allen diriam que Small Time Crooks, no Brasil Trapaceiros, é um dos melhores filmes do realizador. Sou um dos maiores fãs de Woody Allen que pode haver, e não acho que este seja dos melhores dos filmes que o cara faz a cada ano, sem pular um sequer.
Não é dos melhores. Mas é uma delícia de filme, engraçadíssimo, cheio de boas piadas, da primeira à última seqüência.
Só tinha visto Trapaceiros uma única vez, no cinema, na época do lançamento, em 2002; na época, dei 3 estrelas, e não comentei absolutamente nada. Acho que andava bastante ocupado naquela época, porque não anotava muito sobre os filmes que via, apenas o nome, os dados básicos da ficha técnica e a data. Checo agora e vejo que assisti ao filme entre dois do grande mestre indiano Satyajit Ray, Três Mulheres e A Grande Cidade, e não anotei uma única linha sobre eles. E na vida é assim: se não anotou, dançou.
Ao rever Small Time Crooks agora, duas coisas me impressionaram mais que tudo. Uma: como Woody Allen evitou close-ups neste filme. De uma maneira geral, Allen não é chegado a close-ups. Mas neste filme aqui ele vai fundo nisso. Se há um ou dois close-ups ao longo de todo o filme é muito.
Small Time Crooks é um filme todo feito de planos mais distantes, em que se vêem as pessoas da cintura para cima (o plano americano) ou os corpos inteiros das pessoas (o plano de conjunto). Creio que uns 80% do filme são feitos em plano de conjunto.
Dessa maneira, o espectador demora bastante a ver direito o rosto da atriz que faz o principal papel feminino, Franchy, a mulher do protagonista, Ray (interpretado por Allen).
A segunda coisa que me impressionou demais, nessa revisão, foi exatamente a atriz que faz Franchy, Tracey Ullman. Tracey Ullman rouba cada cena em que aparece.
A rigor, ela é a melhor coisa do filme.
Não que seja a única, de forma alguma. Como já falei acima, há ótimas piadas do começo ao fim, e a trama é gostosa, bem engendrada, e permite que Woody Allen faça excelentes observações sobre essa coisa doida, maluca, absurda que é o comportamento humano.
Mas a verdade é que Tracey Ullman é a melhor coisa de Small Time Crooks. Ela consegue deixar Woody Allen em segundo plano.
Ray, o personagem de Allen, é um malandrinho que se acha genial
Ray e Frenchy discordam sobre quase tudo, discutem muito, falam demais, o tempo todo, sem parar (como quase todos os personagens que o próprio Woody Allen interpreta, na verdade) – mas são um casal que se dá bem. Amam-se bastante, lá do jeito deles. Estão casados há 25 anos, não têm filhos, vivem num pequeno mas razoavelmente confortável apartamento em Nova York. Conheceram-se jovens, em New Jersey. Frenchy era dançarina, Ray já era o que sempre foi – um bandidinho, um malandrinho. Exatamente o que diz o título original: small time crook.
Ray já esteve preso. Hoje faz um trabalho aqui, outro ali, está sempre passando de um emprego ruim para outro pior. Nos últimos tempos, trabalha lavando pratos. Quem sustenta a casa é Frenchy, que trabalha como manicure.
Ray se acha muito esperto; na verdade, se acha genial. Quando a ação começa, ele está bolando um plano sensacional. Descobriu que uma pizzaria das vizinhanças fechou. Ao lado dessa pizzaria agora fechada há uma loja de roupas, e depois dela… um banco.
E então bolou o plano para ser executado por ele e seus amigos Denny (Michael Rapaport) e Tommy (Tony Darrow): alugar o imóvel onde funcionou a pizzaria, e cavar um túnel até o banco.
Fácil demais.
Para isso, só precisam de US$ 18 mil; Denny e Tommy deram um jeito de arranjar US$ 6 mil cada um. O problema é que US$ 6 mil é tudo que o casal Ray e Frenchy têm de economia da vida inteira, e na verdade quem ganhou esse dinheiro foi ela.
Ray compra uma caixa de chocolates belgas para amaciar Frenchy. Quando chega em casa com o pacote, ela percebe de cara que o marido prepara alguma coisa ruim. O diálogo entre os dois, bem no início da narrativa, é longo, e dá o tom do que virá pela frente. Falam desesperadamente; saem palavras da boca dos dois como cai água das cataratas do Iguaçu na época das chuvas.
Uma vez Woody Allen disse que gostaria de imitar a rapidez com que Cary Grant e Rosalind Russell falam em Jejum de Amor/His Girl Friday, que o mestre Howard Hawks fez em 1940. Bem, em diversos de seus filmes ele consegue essa proeza. Em Trapaceiros, ele e Tracey Ullman conseguem falar mais depressa ainda que a maravilhosa dupla Grant e Russell.
Ray diz que eles vão ficar ricos, muito ricos, e Frenchy pergunta: – “É? Como? Você vai roubar um banco?” Ray fica surpreso: – “Como foi que você adivinhou?”
Um quarteto que é mais atrapalhado que os Trapalhões, que os personagens de Jerry Lewis
O trio Ray-Denny-Tommy vai virar um quarteto, com a chegada de Benny (Jon Lovitz).
Ray e Benny haviam se conhecido na prisão. Ray conta para ele seu plano, e pergunta se o outro não se lembrava do apelido que ele tinha no presídio – O Cérebro.
Benny: – “Mas era sarcasmo.”
Ray: – “Não, não era, era verdade.”
Denny também considera Ray um gênio. Mas, segundo Frenchy, comparada a Denny, uma cadeira é um gênio
O quarteto Ray-Denny-Tommy-Benny é mais atrapalhado que os Trapalhões, que Jerry Lewis em todos os seus filmes em que faz papel de trapalhão. A rigor, em vez de Trapaceiros os exibidores brasileiros poderiam ter dado a Small Time Crooks o título de Trapalhões.
Eles conseguem alugar o imóvel bem perto do banco. No momento em que começam a escavar o túnel, furam um cano gigantesco. Entra tanta água no subsolo do que era a pizzaria quanto no Titanic.
No térreo, para dar uma fechada legal ao empreendimento, Frenchy cozinha biscoitos. Ganhava a vida como manicure, mas sabia cozinhar biscoitos que as visitas adoravam.
A escavação lá embaixo vai muito mal, mas a loja de biscoitos vira uma sucesso colossal.
Frenchy chama uma prima, May (Elaine May), para ajudá-la. May consegue ser mais burra que Denny, o gajo que segundo Frenchy transforma uma cadeira em gênio.
Para um policial que passa a frequentar a loja de biscoitos, Ken (Brian Markinson), ela vai logo contando que lá embaixo há uns homens construindo um túnel para expandir os negócios.
Quando estamos com 28 minutos de narrativa, o filme dá uma guinada absoluta.
Um imenso desprezo pelos milionários da cidade que é o umbigo do capitalismo
Woody Allen faz uma virulenta gozação dos pobres que de repente viram milionários – seu terrível mau gosto, sua falta de cultura. Mas, a rigor, o alvo dele não são os pobres que viram milionários, e sim os milionários.
O cineasta mostra que tem um imenso desprezo pelos muito ricos da cidade que é o umbigo do capitalismo.
Não era a primeira vez, é claro. Me lembro de ter lido, muito tempo atrás, um crítico dizer algo do tipo: mas se Woody Allen tem tanto ódio e desprezo pelos ricos de Nova York, por que então continua a fazer filmes sobre eles?
Por que ele tem o direito de fazer o que bem entender, uai! E porque tudo, ou quase absolutamente tudo que ele faz é ou brilhante, ou, no mínimo, engraçadíssimo.
Para situar: Small Time Crooks veio depois de Desconstruindo Harry (1997), Celebridades (1998) e Poucas e Boas (1999). Em seguida viriam O Escorpião de Jade (2001), Dirigindo no Escuro (2002) e Igual a Tudo na Vida (2003).
É impossível deixar de notar que a trama do filme é uma volta ao passado para o realizador. Faz lembrar, sem dúvida, Take the Money and Run, seu filme de 1969, a rigor seu primeiro filme como diretor, que no Brasil teve o título de Um Assaltante Bem Trapalhão.
Trapaceiros foi o primeiro filme de Allen para a Dreamworks, o estúdio criado por Steven Spielberg. Pelo contrato que eles assinaram, Allen faria cinco filmes para a Dreamworks.
O grande Roger Ebert deu 3 estrelas em 4 para o filme, e conclui assim sua crítica:
“Allen interpreta uma versão operária de sua persona básica, e se coloca entre duas das mulheres mais engraçadas da América, Tracey Ullman, que é vista muito raramente nos filmes, e Elaine May, que quase nunca é vista. (As duas trabalham basicamente na TV, embora Tracey Ullman tenha diversos filmes em seu currículo.) Os personagens secundários são construídos de maneira mais aguda do que costuma acontecer nas comédias (em que o astro fica com todas as melhores falas), e há uma lição um tanto escondida por ali, sobre como o dinheiro não consegue comprar a felicidade e pode até fazer você perdê-la. Burros como (supostamente) são, os personagens em Small Time Crooks são mais espertos, mais tensos e mais originais que as monótonas multidões em tantas novas comédias.”
Perfeito. É exatamente isso aí.
Anotação em agosto de 2013
Trapaceiros/Small Time Crooks
De Woody Allen, EUA, 2000
Com Woody Allen (Ray), Tracey Ullman (Frenchy), Elaine May (May), Hugh Grant (David), Michael Rapaport (Denny), Tony Darrow (Tommy), Jon Lovitz (Benny), Brian Markinson (Ken, o policial)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Zhao Fei
Montagem Alisa Lepselter
Produção DreamWorks SKG e Sweetland Films. DVD Europa Filmes.
Cor, 94 min
R, ***
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