O Emissário de Mackintosh, no original The Mackintosh Man, que John Huston lançou em 1973, só conta para o espectador o que, afinal de contas, estava acontecendo quando estamos com exatos 45 minutos de filme. É quase a metade dos 98 minutos de duração.
Ao longo dos primeiros 45 minutos, o espectador fica sem entender exatamente o que está se passando.
Não que isso seja um defeito, de forma alguma. Na verdade, achei até que foi um bom achado, este, do roteiro, que se baseou numa novela de Desmond Bagley, chamada The Freedom Trap, a armadilha da liberdade.
O espectador fica com a pulga atrás da orelha. Sabe que está faltando alguma informação, que há ali alguma armadilha, algo que ainda não foi revelado. Como assim?, ele se pergunta. Como é isso de o protagonista, interpretado por Paul Newman, que nos é apresentado como Joseph Rearden, ser interrogado e preso aos 13 minutos de filme, julgado e condenado a 20 anos de prisão aos 19 minutos?
Talvez, se o diretor fosse outro, pudesse incomodar o fato de o espectador ficar um tanto boiando durante 45 minutos. Como é John Huston, não incomoda nada. A gente sabe que está em boas mãos.
Um membro do Parlamento britânico discursa contra os inimigos da pátria
O filme abre em preto-e-branco. Uma tomada fixa de uma rua, com postes bem antigos, enquanto vão aparecendo os créditos iniciais.
Embora eu seja fã de John Huston desde sempre (chequei: vi o meu primeiro filme de John Huston quando tinha 13 anos – A Lista de Adrian Messenger), nunca tinha visto este O Emissário de Mackintosh. Cheguei até a achar que veria um inédito do realizador em glorioso preto-e-branco, mas é apenas uma brincadeira do grande brincalhão. Quando estamos chegando ao fim dos créditos iniciais, a câmara se move, focaliza um rio, o filme passa a ser em cores, e vemos o Big Ben e o Parlamento britânico, às margens do Tâmisa.
Antes mesmo que haja um corte e surja uma tomada lá dentro do prédio do Parlamento, o Palace of Westminster, o espectador já ouve a voz inimitável de James Mason. O grande ator interpreta Sir George Wheeler, um membro da House of Commons – para simplificar, o equivalente à Câmara dos Deputados.
Sir George Wheeler está discursando – um discurso patriótico, bastante direitoso, contra os inimigos da pátria.
Ah, pensei então: é um filme sobre a guerra fria, algo sobre espionagem. Um discurso na Câmara dos Comuns contra os inimigos da pátria, 1973, o mundo enfiado na guerra fria. Deve ser isso. (É um barato ver um filme sem saber absolutamente nada sobre a história.)
A câmara focaliza um senhor nas galerias. Ele ouve com interesse o discurso do membro do Parlamento. Veremos em seguida que ele é o Mackintosh do título, e é interpretado por Harry Andrews.
E então vemos Paul Newman chegando a um pequeno escritório em um prédio. Na porta externa está escrito “Anglo-Scottish Ltd”. O personagem de Paul Newman, que conheceremos então como Joseph Rearden, vê a secretária sentada em sua mesa. A secretária diz: – “Sr. Rearden. Ele está esperando pelo senhor. Pode entrar”.
Rearden entra no escritório de Mackintosh. Cumprimentam-se afavelmente. O dono do escritório pergunta ao visitante como foi sua viagem, depois como está seu sotaque. Rearden diz, agora com forte sotaque, que o sotaque está bom – e pergunta se o outro quer que ele cante “Waltzing Matilda”.
“Waltzing Matilda” – Austrália! Ah, então Rearden vai se passar por um australiano!
Rearden pergunta sobre a secretária. Mackintosh diz que ela, a srta. Smith, esta a par de tudo – e pede que ela traga chá.
A srta. Smith traz o chá, e senta-se ao lado de Rearden, diante da mesa de Mackintosh, o qual, generosamente, abre uma garrafa de uísque. Ele e seu visitante vão tomar chá com uísque! Esses ingleses são uns malucos mesmo…
Mackintosh pergunta Rearden: – “Qual é a propriedade mais notável do diamante?”
Rearden fica surpreso com a pergunta, pede para o outro repetir, o outro repente: – “Diamante”.
E Rearden cita o slogan publicitário: – “É para sempre”.
Ninguém ri da piada. Muito a sério, a srta. Smith diz: – “Seu tamanho. É possível colocar diamantes no valor de 100 mil libras esterlinas em um pacote grande o bastante para que você escreva nele um endereço e deixe espaço para um selo.”
Rearden: – “Quer dizer que enviam diamantes pelo Correio?”
A srta. Smith: – “Todos os dias. As companhias de seguros confiam muito nos Correios.”
Quem, meu Deus do céu e também da terra, diria não para Dominique Sanda?
A srta. Smith vem na pele de Dominique Sanda, essa atriz que foi uma lenda para todos os apreciadores de filmes nos anos 1970. Dominique Sanda, mulher de beleza elegante, postura refinada – a heroína de O Conformista e de Novecento de Bernardo Bertolucci, de O Jardim dos Finzi Contini de Vittorio De Sica.
Bela, maravilhosa Dominique Sanda.
Antes que o filme chegue aos dez minutos, a srta. Smith chega ao quarto de hotel em que Rearden está hospedado. Entrega a ele uma passagem, um passaporte, e dá instruções sobre como retirar, de uma conta bancária na Suíça, até 40 mil libras esterlinas.
Isso feito, a srta. Smith dá um rápido beijo em Rearden, levanta-se e encaminha-se para a porta. Chega a pegar na fechadura, mas aí pergunta:
– “Quer que eu fique?”
Quem, meu Deus do céu e também da terra, diria não para Dominique Sanda?
Com 20 minutos de filme, o protagonista está preso, condenado a 20 anos de prisão
Corta, e daí a pouco Rearden dá dois murros num carteiro num corredor de um prédio que ele já havia visitado, e pega um pequenino pacote – obviamente, um pacote com um diamante. Caminha pelas ruas de Londres, entra no metrô. Numa estação, passa pela srta. Smith e entrega o pacote para ela. Não se falam, não dizem nada.
E então, quando estamos com 12 minutos de filme, dois policiais chegam ao quarto de hotel de Rearden.
Quando o filme está com 20 minutos, Rearden está num bem guardado presídio inglês, condenado a 20 anos de prisão pelo roubo de um diamante e um ataque a um funcionário dos Correios.
Evidentemente, não vou dar spoiler, não vou revelar o que acontece a partir daí.
É um filme sobre guerra fria que não é anti-comunismo, anti-soviético
É um filme gostoso de se ver. Não é um drama, um filme muito sério – é mais uma aventura, um filme de ação, uma diversão leve, agradável, muitíssimo bem realizada. Sim, fala de espionagem, guerra fria, mas é basicamente um divertissement.
E o absolutamente fascinante, quando se examina essa diversão com seriedade, é que não é um filme anti-comunismo, anti-soviético.
Isso é muitíssimo interessante.
Em 1966, sete anos antes, portanto, deste filme aqui, o próprio Paul Newman havia sido o protagonista de Cortina Rasgada/Torn Curtain, que na época ficou conhecido como o filme “reacionário” do mestre Alfred Hitchcock. Cortina Rasgada é um filme sobre a guerra fria rasgadamente anti-comunismo, anti-soviético. Esculacha com os russos, mostra-os como ou horrorosos ou débeis mentais. Como nos anos 1960 e 1970 éramos todos comunistas, ou socialistas, ou no mínimo simpatizantes, todo mundo malhava Cortina Rasgada por esse tom agressivamente “americanóide”, “reacionário”, como se dizia na época. (Bem, há muita gente que usa esses termos até hoje.)
O roteirista Walter Hill e o eterno aventureiro John Huston, ao contrário do que havia feito o mestre Hitchcock, não fizeram um filme que poderia, mesmo naqueles anos 1970, ser tachado de “americanóide”, “reacionário”. Ao contrário. O filme, assim como o protagonista interpretado por Paul Newman, mostra respeito pelas pessoas do outro lado da guerra fria. Entende que eles defendiam a causa que consideravam justa.
O final do filme mostra isso de maneira claríssima.
É fascinante esse aspecto do filme de Huston.
O próprio John Huston não gostou nem um pouco do filme
“Dirigi uma série de filmes entre 1968 e 1973 que foram absolutos fracassos ou, no máximo, sucessos apenas moderados”, escreveu John Huston no capítulo 32 de sua deliciosa autobiografia, Um Livro Aberto. Ele inclui O Homem de Mackintosh entre esses fracassos.
Huston não gostou nada de seu filme.
Ele dedica apenas dois parágrafos a O Homem de Mackintosh:
“John Foreman produziu Roy Bean, o Homem da Lei, e ficamos amigos íntimos. Com o tempo, faríamos juntos The Man Who Would Be King (O Homem Que Queria Ser Rei), mas antes – para nossa desgraça mútua – nos metemos num filme chamado O Emissário de Mackintosh. Alguém, lá na Warner, chamou a atenção de Paul Newman para o livro. Como já tinha um compromisso com o estúdio, Paul, por sua vez, passou a bola para nós. Tanto John quanto eu recebemos boas propostas financeiras para filmá-lo. Acho que Foreman estava precisando de dinheiro. Quanto a mim, nem tem dúvida. Além disso, nós três havíamos nos divertido tanto com Roy Bean que não sentíamos a menor vontade de nos separarmos. Por isso aceitamos e fizemos o máximo que pudemos com ele.
“Desde o início, nos incomodamos com as fraquezas do roteiro. O pior é que a trama não tinha desfecho satisfatório. Passamos o tempo todo quebrando a cabeça para encontrar uma maneira aceitável de terminar a história. Finalmente, durante a derradeira semana de filmagens, nos veio uma idéia. Era, sem qualquer possibilidade de comparação, a melhor coisa do filme, e desconfio que, se tivéssemos podido começar tudo com esse final já previsto, O Emissário de Mackintosh teria sido realmente ótimo. Mas não foi o que aconteceu. E assim não conheço praticamente ninguém que sequer tenha ouvido falar dele.”
“Um bom filme de espionagem, baseado no jogo duplo”
Com todo respeito pela opinião do autor, não concordo com ela. Acho que é um bom filme, uma agradável diversão. O roteiro não me pareceu ter falhas. Ao contrário. E o final realmente é muito bom.
Tudo bem: não está entre os melhores de Paul Newman, nem entre os melhores de John Huston. Mas mesmo um filme mediano com um e dirigido pelo outro é sempre agradável.
Um detalhinho: Paul Newman e James Mason voltariam a contracenar nove anos mais tarde, na obra-prima O Veredito, de Sidney Lumet.
Outra opinião, então. Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 e sintetizou: “Thriller de espionagem bem feito tem só um problema: tudo já tinha sido feito antes. Filmado na Irlanda, Inglaterra e Malta; roteiro creditado a Walter Hill”.
O IMDb traz uma explicação sobre essa questão de o roteiro ter sido creditado a Walter Hill. Segundo o sitezão, embora Walter Hill – mais tarde diretor de vários filmes – apareça nos créditos como o único autor do roteiro, mais tarde ele afirmou que escreveu apenas a primeira metade do filme. Outras pessoas que trabalharam no roteiro, em vários pontos, são o dramaturgo William Fairchild, o novelista Gerald Hanley, o historiador Alan Moorehead e a grande colaboradora e assistente de Huston Gladys Hill, além do próprio diretor.
Na França, o filme chamou Le Piège, a armadilha. O Guide des Films de Jean Tulard diz que é “um bom filme de espionagem, baseado no jogo duplo”, e que, no elenco brilhante, James Mason eclipsa Paul Newman.
Me permito estar com a opinião do guia de Tulard, e não com a do próprio autor. É um bom filme. Gostei bastante de vê-lo.
Anotação em maio de 2013
O Emissário de Mackintosh/The Mackintosh Man
De John Huston, Inglaterra-EUA, 1973
Com Paul Newman (Joseph Rearden), Dominique Sanda (Mrs. Smith), James Mason (Sir George Wheeler), Harry Andrews (Mackintosh), Ian Bannen (Slade), Michael Hordern (Brown), Nigel Patrick (Soames-Trevelyan), Peter Vaughan (Brunskill), Roland Culver (juiz), Percy Herbert (Taafe)
Roteiro creditado a Walter Hill
Baseado na novela The Freedom Trap, de Desmond Bagley
Fotografia Oswald Morris
Música Maurice Jarre
Produção Newman-Foreman Company. DVD Paragon Multimedia.
Cor, 103 min
**1/2
Título na França: Le Piège. Em Portugal: O Misterioso Mr. Mackintosh.
Duas palavras:
PAUL
NEWMAN
ou
JOHN
HUSTON
ou
JAMES
MASON
Concordo com a colunista, em parte, mas respeito sua opinião. para mim, é um filme brilhantes, especialmente se assistido na tela grande. A fotografia é maravilhosa. A abertura sensacional, música tema, excepcional e grandes atuações. Também com Mason e Newman, nada poderia dar errado eles foram espetaculares. Mas o elenco de apoio também é excelente. Quanto ao diretor, dispensa apresentações. O final é espetacular, especialmente o olhar de Newman, para a deusa Sanda. Para mim, um dos mais brilhantes filmes da guerra fria. Correção, creio= não é uisque, mas gin, na cena inicial, acho.