Deus da Carnificina, no original apenas Carnage, de Roman Polanski, é um filme excelente, que esbanja talento. No entanto, é um filme difícil de se ver. Dá uma tremenda agonia, um imenso mal-estar.
Há pessoas que têm mal-estar com aquele barulho de giz quebrado sendo esfregado em uma lousa. Sabe como é? Pois Carnage é assim: um baita, altíssimo, fortíssimo barulho de giz quebrado sendo esfregado em uma lousa.
O melhor é vê-lo sem saber de nada sobre a trama. Assim haverá surpresa. Bem, a rigor, acho que isso vale para todos os filmes, todos os livros. Eu, pessoalmente, gosto de ver filmes sem saber nada da trama; prefiro não ler sinopse alguma antes de ver. Deixo para ler a opinião das pessoas depois que tiver eu mesmo formado minha opinião. Mas claro que cada um é cada um, e há quem prefira saber um pouco sobre as obras antes de vê-las.
No caso específico de Carnage, fiz a besteira de ler a rápida sinopse da caixinha do DVD. Então, já nos primeiros minutos sabia um pouco do que iria acontecer – e já nos primeiros minutos fui tomado pela agonia.
Naturalmente, não vou aqui adiantar o que acontece a partir de, digamos, 15 minutos de ação. Mas a verdade é que qualquer coisa que se adiante a respeito dos primeiros minutos já é um spoiler.
Que o eventual leitor fique avisado disso. Para que possa abandonar este texto agora mesmo – e retornar, se for o caso, após ter visto o filme.
A autora da peça, Yasmina Reza, tem várias obras muito aclamadas
O filme se baseia numa peça teatral, Le Die du Carnage, de autoria de Yasmina Reza – e ela é co-autora do roteiro, juntamente com o próprio Polanski. Como sou ignorante, nunca tinha ouvido falar em Yasmina Reza, nascida em Paris, em 1959. Vejo agora que é autora de oito peças, várias das quais que receberam prêmios ou indicações para prêmios prestigiosos. Art, por exemplo, venceu o Tony (o Oscar do teatro de Nova York) de melhor peça em 1998, e a encenação de God of Carnage na Broadway levou o Tony de melhor peça em 2009.
Danadinha, a moça. Já atuou como atriz em cinco filmes, e até dirigiu um longa-metragem, Chicas, de 2010, baseado em peça dela mesma, com três grandes atores – André Dussollier, Emmanuelle Seigner e Carmen Maura. Emmanuelle Seigner, é bom lembrar, é desde 1989 e até hoje a sra. Roman Polanski.
O nome iraniano vem do pai, um engenheiro judeu descendente de russos e iranianos. A mãe é uma violonista judia húngara que se exilou na França fugindo da ditadura comunista.
Quatro atores de imenso talento dirigidos por um gênio
Deus da Carnificina, o filme, tem quatro atores maravilhosos: Jodie Foster, Kate Winslet, John C. Reilly e Christoph Waltz. Quatro atores maravilhosos, dirigidos por um dos melhores diretores de atores do cinema mundial – todas as interpretações são primorosas. Se eu fosse jurado de festival, não saberia votar. Não consigo dizer quem está melhor do que quem; para mim, não há destaque especial para um ou outro – são quatro interpretações igualmente magníficas.
Jodie Foster e Kate Winslet foram indicadas para o Globo de Ouro na categoria – credo em cruz! – de melhor atriz em comédia ou musical feita para o cinema. Comédia! Como assim, comédia?
Deus da Carnificina, para mim, é um filme de terror. Um drama de terror, duro, pesado, denso, triste, apavorante.
Levou o César, o Oscar francês, de melhor roteiro.
A abertura e o final são ao ar livre; todo o resto se passa num apartamento
Bem, agora vou falar um pouco do início do filme, dos personagens. Ainda é tempo de quem não viu o filme parar de ler a anotação.
Em seu roteiro, Polanski e a autora Yasmina Reza conceberam o filme assim como uma espécie de peça de teatro cercada por dois bookends, seguradores de livros: a primeira e a última sequências se passam num parque. Entre as duas, acontece toda a ação – e toda a ação se dá dentro de um apartamento, em que estão quatro pessoas, dois casais.
Dentro do apartamento, a câmara se movimenta. Enquadra os personagens de diversas maneiras: há close-ups aqui e ali, mas a maior parte das tomadas é em plano americano, aquele em que os personagens são mostrados da cintura para cima, ou em plano de conjunto, em que vemos o corpo inteiro das pessoas.
Já as sequências de abertura e do final são estáticas. A câmara está parada, fixa, e vemos um plano geral de um parque – na história, especificamente, é o Brooklyn Bridge Park.
Na sequência de abertura, enquanto rolam os créditos iniciais, vemos um grupo de garotos, bem ao longe. Ao final da sequência de abertura e dos créditos iniciais, um dos garotos ataca outro com um porrete.
Corta, e estamos no apartamento dos pais do garoto agredido, Ethan. O pai, Michael Longstreet, é interpretado por John C. Reilly, e a mãe, Penelope, é feita por Jodie Foster.
Eles estão recebendo a visita dos pais do garoto agressor, Zachary. O pai é Alan Cowan (Christoph Waltz) e a mãe, Nancy (Kate Winslet) – e eles visivelmente, muito visivelmente, são bem mais ricos que os donos da casa.
Veremos que Alan é um advogado bem de vida, que trabalha para grandes corporações. Nancy é corretora de investimentos.
Já Michael se define como um “fornecedor de utilidades domésticas” – a rigor, um vendedor. Sua mulher Penelope trabalha meio período numa livraria, com livros de arte e história; foi co-autora de um livro, e está escrevendo outro, sobre a tragédia de Darfur.
Não que sejam pobres, Michael e Penelope, de forma alguma. Seu apartamento no Brooklyn é bastante confortável, a sala é bem ampla, há livros de arte espalhados nela.
Mas os pais do menino agressor são muito mais ricos que os do agredido.
Não que isso seja fundamental para o desenrolar da história. Não é – mas ajuda o espectador a conhecer aqueles quatro personagens.
Dois casais educados, civilizados, tentando resolver uma questão da melhor maneira
Na primeira tomada no apartamento dos Longstreet, Penelope está sentada diante de um computador, redigindo um documento a respeito do acontecido. Explica que aquele é o deles – os Cowan depois redigirão o documento deles.
Ela lê enquanto digita:
“Após uma disputa verbal no Brooklyn Bridge Park, Zachary Cowan, 11 anos, armado de um bastão, bateu em nosso filho, Ethan Longstreet, no rosto. Além do inchaço e hematoma no lábio superior de Ethan, tal ato levou à quebra de dois dentes incisivos, causando danos ao nervo incisivo direito.”
Nesse ponto, Alan intervém: – “Armado?”
Os pais do agredido se mostram extremamente compreensivos. Não gostou do armado? Que tal carregando?
Penelope troca a palavra “armado” por “carregando”.
Não fica absolutamente claro por que, afinal, os pais de agressor e agredido se reuniram para redigir cada casal seu documento a respeito dos fatos. Para apresentar na escola em que os garotos estudam? Para terem um comprovante de que estão de acordo e ninguém exigirá na Justiça pagamento por danos?
De fato não fica absolutamente claro. Veremos que a idéia da reunião foi de Penelope, muito mais do que seu marido. E que foi de Nancy a decisão de comparecer à casa dos pais do agredido – contra a vontade do marido.
De qualquer forma, fica claro que são pessoas educadas, civilizadas, tentando resolver um possível conflito da melhor maneira possível.
Os donos da casa levam os visitantes até a porta do apartamento. Penelope diz que gostaria que Zachary, o agressor, pedisse desculpas a Ethan.
Estamos nesse ponto com oito minutos de filme.
Deus da Carnificina é curto – apenas 80 minutos. Menos de uma hora e meia. Ainda bem. Ao final do filme, estávamos exaustos, Mary e eu.
Não porque o filme seja ruim, repito. Mas porque são 80 minutos de um baita, altíssimo, fortíssimo barulho de giz quebrado sendo esfregado em uma lousa.
Lá pelo meio do filme, me lembrei de O Anjo Exterminador, de Buñuel. Deus da Carnificina tem um pouco de O Anjo Exterminador, com bastante do Bolero de Ravel, e uma boa pitada de A Morte e a Donzela – outro filme de Polanksi passado praticamente inteiro dentro de uma casa, entre quatro paredes, huis clos. O inferno são os outros.
Um filme claustrofóbico, em que personagens e espectadores se sentem sufocados
Já que falei em Bolero de Ravel, um detalhe sobre a trilha sonora. Ao longo de toda a ação dentro do apartamento, não se ouve música alguma. Só se ouve o tema composto para o filme pelo grande Alexandre Desplat na sequência inicial e na sequência final, que emenda com os créditos finais.
A melodia que Desplat criou para o filme cai nele como uma luva. Ao final dos créditos iniciais, quando o grupo de garotos começa a se movimentar como num início de briga, o volume se amplia, a melodia original desparece num solo poderoso de bateria e percussão.
Um brilho.
Tudo no filme é brilhante.
Diz o IMDb que Polanski filmou praticamente em tempo real, ou seja, como se os atores estivessem representando a peça num teatro.
Deve ser verdade – e isso ajuda a explicar como a tensão vai num crescendo absurdo, sem parar.
Um detalhinho de nada: quem interpreta Zachary Cowan, o garoto agressor – cujo rosto não vemos, porque o grupo de meninos está bem longe da câmara que filma um plano geral – é Elvis Polanski. O filho do diretor e de Emmanuelle Seigner.
Então, em resumo, para fechar: mais uma vez, como já havia feito em Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary, O Inquilino, A Morte e a Donzela, Roman Polanski faz um filme claustrofóbico, aterrorizante, apavorante, em que personagens e espectadores se sentem sufocados.
É uma beleza de filme, com talento saindo pelo ladrão. Mas é um filme em que o espectador sofre – quase como se estivesse sendo torturado.
Anotação em dezembro de 2012
Deus da Carnificina/Carnage
De Roman Polanski, França-Alemanha-Polônia-Espanha, 2011
Com Jodie Foster (Penelope Longstreet), Kate Winslet (Nancy Cowan), Christoph Waltz (Alan Cowan), John C. Reilly (Michael Longstreet)
e Elvis Polanski (Zachary Cowan), Eliot Berger (Ethan Longstreet)
Roteiro Roman Polanksi e Yasmina Reza
Baseado na peça teatral Le Dieu du Carnage, de Yasmina Reza
Traduzida para o inglês por Michael Katims
Fotografia Pawel Edelman
Música Alexandre Desplat
Montagem Hervé de Luze
Produção SBS Productions, Constantin Film Produktion, SPI Film Studio, Zanagar Films, France 2 Cinéma. DVD Swen Filmes.
Cor, 80 min
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que filme, hein, Sérgio?!!!!!! li sua crítica e já cismei que tinha que ver logo. Super certeira a pedida… fico impressionada como se fazem bons ou ótimos filmes com uma ideia tão simples. Vale muito ver!
Abraço
Realmente um filme estupendo. Tambem nao entendo porque o classificam como comedia. Pra mim foi sufocante a experiencia. O ser humano as vezes e muito desprezivel e basta um pouco de alcool para as verdades literalmente sairem de suas bocas. Excelente.