Depois de Lúcia / Después de Lucía

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Nota: ★★★☆

Depois de Lúcia é um filme em tudo e por tudo impressionante. O diretor e roteirista mexicano Michel Franco, em seu segundo longa-metragem, fez uma obra seca, de uma secura estranha, forte, brutal. Seca, crua – e que corta o espectador como lâmina afiada.

O tema é de importância fundamental para pais e seus filhos adolescentes. Pais e os garotos deveriam vê-lo, de preferência juntos, para depois conversar. É uma experiência dura, mas tem que ser enfrentada.

É um filme econômico, enxuto, daquele tipo de obra que, se fosse um texto, dispensaria os adjetivos e até os advérbios: Michel Franco se concentra basicamente nos fatos crus – sujeito e predicado. Algo como a linguagem que Ernest Hemingway procurava, que Graciliano Ramos perseguia.

Depois de Lúcia foge das explicitudes como o diabo da cruz. Fala mais nas entrelinhas que nos diálogos. É povoado por longos silêncios. Muitas vezes, quando os personagens falam, não dizem nada parecido com a verdade.

O filme surpreende, impressiona desde bem o início. A primeira seqüência mostra um homem – grandalhão, alto, forte, cheio – numa oficina de carros, conversando com o mecânico. Ou melhor, ouvindo o mecânico falar. O mecânico vai explicando tudo o que a oficina fez pelo carro: na verdade, praticamente reconstruiu o carro.

A câmara está postada, firme, no banco de trás. Vemos os dois homens conversando lá fora, no pátio da oficina, aproximando-se do carro.

zzdepois9O mecânico pede que o homem – veremos mais tarde que ele se chama Roberto (Hernán Mendoza) – assine um recibo, e entrega a ele a chave do carro refeito, reconstituído.

Roberto entra no carro, dá a partida, sai da oficina. A imagem se move pela primeira vez – mas o que se move é o carro, não a câmara. A câmara permanece fixa no banco de trás, mostrando a nuca e a cabeça de Roberto à esquerda e a rua na maior parte da tela.

Não há corte. É um plano-seqüência.

O carro entra numa avenida larga, grande, e vai andando. Não há corte.

O carro pára num sinal fechado. Roberto tira a chave do contato, coloca-a no painel, abre a porta do carro, sai, e caminha em frente, para longe do carro.

Aí então aparecem os créditos iniciais, em versão absolutamente minimalista: o nome do filme, Después de Lucía, e o nome do diretor e roteirista.

Pai e filha se mudam para bem longe de onde moravam antes

Depois desses rapidíssimos créditos iniciais, Roberto viaja de carro – um outro carro – com uma garota aí de uns 15 anos, Alejandra (o papel de Tessa Ia). Fazem uma viagem de dez horas até uma outra cidade, deixando para bem longe aquela em que viviam, Puerto Vallerta.

Instalam-se em um apartamento que parece novo, confortável.

zzdepois0Veremos que Roberto é um chef; na nova cidade, bem distante da outra, já era esperado para tocar um restaurante.

Alejandra é matriculada num bom colégio, de classe média para média alta. Como é o México, o portal das drogas para o maior mercado consumidor do mundo, o Império situado acima do Rio Grande, a escola aplica a todo novo aluno um teste anti-doping.

O teste de Alejandra indica que ela fumou maconha no período da semana anterior. Roberto é chamado para ouvir a informação. O homem da escola aconselha que casos assim devem ser encaminhados a alguma clínica de reabilitação, e avisa que se em novo exame o resultado der positivo, Alejandra será expulsa.

Roberto e Alejandra se dão bem, aparentemente. Não conversam muito, não abrem os corações, mas mostram-se afetuosos um com o outro. À saída da dura entrevista com o homem da escola, o pai questiona a filha; Alejandra garante que não é viciada, que fumou maconha umas poucas vezes, por influência dos amigos na cidade em que vivia. Promete que não voltará a fumar.

Nos primeiros contatos com os novos colegas de escola, tudo parece certo. Uma turma de amigos se aproxima dela, e logo ela estará saindo com eles.

O filme só mostra claramente seu tema quando está com exatos 40 minutos

Depois de Lúcia não tem pressa de chegar ao seu tema principal. Isso aí que relatei acima acontece nos primeiros 20, 30 minutos do filme.

Só aos 38 minutos o espectador começa a perceber onde a narrativa vai chegar. Aos 40 minutos fica claro.

O tema é o bullying.

O diretor optou por um estilo absolutamente seco, cru

zzdepois00Quanto mais velho fico, mais aprecio as narrativas clássicas, tradicionais, aquilo que a imensa maioria dos críticos chama, horrorizada, nauseada, de “acadêmicas”. Cada vez mais aprecio o estilo simples, clássico, escorreito, de se contar bem uma boa história. Cada vez menos me encanta o que chamo de fogos de artifício, os maneirismos de câmara e/ou de mexer com a cronologia dos fatos, as fórmulas que os jovens diretores, em especial, gostam de usar para demonstrar que são diferentes.

Quando, no entanto, um realizador usa fogos de artifício mas os usa bem, com talento, não há como reconhecer, aplaudir, tirar o chapéu.

Depois de Lúcia é um filme estiloso, sim; sua narrativa é diferente da clássica. Mas não é que o diretor Michel Franco use e abuse de fogos de artifício, que fique como que o tempo todo berrando “vejam como eu sou genial”. Não. Nada disso.

Ele optou por um estilo seco para contar sua história trágica, apavorante. Cru, seco. A forma se casa à perfeição com o que ele tem a dizer.

Todo o filme é composto por sequências em que a câmara fica fixa, parada. Não reparei um único movimento de câmara. E sua preferência é pelos enquadramentos mais amplos. Praticamente não há close-up; quando muito, há planos americanos, aqueles em que vemos os personagens da cintura para cima. Mas a imensa maioria do filme é feito de planos de conjunto, em que vemos o corpo inteiro de uma ou de várias pessoas. Em geral, aqui, de várias pessoas.

E são, na maioria, planos longos. Nada a ver com a estética MTV que o cinemão comercial adotou em especial a partir dos anos 80, tomadas bem curtas, montagem acelerada.

Não. Depois de Lúcia é o contrário da estética MTV: são planos longos.

É bem provável que muitos espectadores sequer reparem nisso. Não é uma forma berrante, gritante, bem diferente do normal, do usual. Reparei nisso porque reparo especialmente nesse tipo de coisa, mas é algo que pode perfeitamente passar desapercebido pelos espectadores – ao contrário dos filmes em que a câmara é nervosa, é carregada na mão, treme, entorta pra cá, entorta pra lá, busca ângulos esquisitos, pouco usuais, perde o foco, perde a iluminação.

O estilo escolhido por Michel Franco não causa dor de cabeça no espectador. Ao contrário: faz o espectador pensar.

Planos longos, com vários atores, exigem mais ensaios. O elenco está muito bem

zzdepois6Planos longos, em que há vários atores atuando ao mesmo tempo, exigem, é óbvio, mais treino, mais empenho, mais ensaios. Porque todos eles precisam estar bem ao mesmo tempo; se um deles falha, põe a perder a tomada inteira.

São ótimas as atuações que Michel Franco consegue obter de seus atores. O elenco está homogeneamente bem.

É claro que os atores que interpretam os dois protagonistas – Hernán Mendoza como o pai, Tessa Ia como a filha – são mais exigidos do que todos os demais, já que estão presentes na maioria das cenas. Estão ótimos, os dois.

Hernán Mendoza tem 18 títulos na filmografia, que inclui várias séries para a TV. A garota Tessa Ia estava em seu terceiro filme: havia feito antes uma série de TV e tinha tido um papel em Vidas Que Se Cruzam/The Burning Plain, de 2008, o primeiro longa-metragem de Guillermo Arriaga, conhecido por seus roteiros para filmes de Alejandro González Iñárritu: Amores Perros, 21 Gramas, Babel.

São belos atores, os dois. Fascinantemente, não são em especial belos no sentido de fina estampa. São, os dois, tipos comuns, de gente como a gente – não propriamente George Clooneys ou Charlize Therons da vida. Hernán Mendoza é daquelas figuras grandes, como tantas e tantas que há na vida real e muito menos nas telas do cinemão comercial.

A garota Tessa Ia é bela, sim – embora longe de algo escultural, especial. Tem a maravilhosa capacidade, tão necessária aos atores, de ser camaleônica. Do tipo Meryl Streep, Bridget Fonda – atrizes capazes de ter diferentes caras, de acordo com o papel. Na pele da garota Alejandra, Tessa Ia mostra, ao longo do filme, umas quatro ou cinco caras completamente diferentes uma da outra.

O diálogo pode não evitar tragédias – mas é o melhor meio de enfrentá-las

zzdepois7Não quero, de forma alguma, apresentar spoilers. Talvez a menção a uma palavra que fiz lá atrás, e que se refere a algo que o espectador só vai ver a partir dos 38 minutos de filme, já tenha sido um spoiler.

Mas gostaria de enfatizar que este é, de fato, um filme que pais e seus filhos adolescentes deveriam ver – até para abrir a conversa entre eles sobre a questão.

É fundamental que pais e filhos adolescentes conversem – por mais que isso seja difícil.

Roberto e sua filha Alejandra conversam, se tratam de modo afável, amistoso – mas é pouco. Na realidade, cada um deles está fechado em si mesmo, depois de Lúcia, e é natural que isso acontecesse. Mas a obrigação dos pais é lutar contra o fechamento, o distanciamento. É preciso conversar muito, e sempre.

Me sinto meio ridículo falando o óbvio dos óbvios, mas é só com muito diálogo que é possível ajudar o adolescente a atravessar esse período conturbado, perigoso, apavorante.

O diálogo pode não evitar tragédias – mas seguramente é o meio melhor de enfrentá-las, de tentar sair delas.

Quando as pessoas agem em grupo, estão sujeitas ao efeito manada

Outra verdade clara que o filme mostra com brilhantismo é como, quando estão em um grupos, as pessoas são sujeitas ao efeito manada.

Mesmo pessoas que em princípio têm bom caráter podem acabar, quando fazem parte de um grupo, tendo atitudes agressivas, violentas, criminosas.

zzdepois8A lucidez, a inteligência, a razão correm o risco de ficar obscurecidas, esquecidas, quando um grupo atua.

A gente vê isso em atitudes de torcidas de futebol, em manifestações populares como estas recentes do Brasil, que resultam em quebra-quebra, depredação, insanidade.

É o que se vê no filme.

Nesse sentido, ele faz lembrar uma outra obra, um filme pouco conhecido e comentado, feito para a TV americana, Pacto de Silêncio/Bond of Silence, dirigido por Peter Werner. Baseia-se em um caso real que envolve álcool, violência e crime entre adolescentes bem de vida, wasps – brancos, anglo-saxões e protestantes –, numa cidade pequena da Costa Leste americana.

Depois de Lúcia ganhou três prêmios e teve outras quatro indicações. Ganhou o prêmio de melhor direção no Un Certain Regard, mostra paralela ao Festival de Cannes, e teve indicação para o Goya, o Oscar espanhol, de melhor filme ibero-americano.

É um belo filme. Merece ser visto.

Anotação em agosto de 2013

Depois de Lúcia/Después de Lucía

De Michel Franco, México-França, 2012

Com Hernán Mendoza (Roberto), Tessa Ia (Alejandra),

e Gonzalo Vega Jr. (José), Tamara Yazbek (Tamara), Paco Rueda (Javier),

Paloma Cervantes (Irene), Juan Carlos Barranco (Manuel),

Argumento e roteiro Michel Franco

Fotografia Chuy Chávez

Montagem Antonio Bribiesca Ayala

Produção Pop Films, Filmadora Nacional, Lemon Films, Stromboli Films. DVD Imovision.

Cor, 103 min.

***

5 Comentários para “Depois de Lúcia / Después de Lucía”

  1. Incrível, concordo em td!!!! Sabe, Sérgio, eu tenho vontade tbm de ter um blog sobre cinema, mas aí eu leio uma critica dessas… e penso… ih caramba… ele disse tudo o que eu queria dizer 😉

  2. Tenho (ainda bem) em minhas anotações que vi este filme em 1 de maio deste ano.
    Assim como voce , também gostei muito, muito mesmo. Acho até que comentei alguma coisa contigo.
    É como voce diz, eles eram afetuosos um com o outro mas se conversassem mais, se eles se abrissem mais,com certeza seria outra coisa.
    Mas aí não haveria motivo para o filme.
    Merecia ser visto e eu vi, que bom.
    E que final , assim como a história , forte, duro, seco. E eu aprovei por completo esse final.
    Um abraço !!

  3. Claudia, agradeço muito a sua mensagem.
    Mas não pense assim, não.
    Faça seu blog sobre cinema!
    E, Ivan, obrigado por seu comentário. Você está se tornando meu leitor mais fiel!
    Um abraço aos dois.
    Sérgio

  4. Como sempre, você disse tudo e disse bem: o filme é cru e seco. Senti vontade de parar de assistir várias vezes, pois não aguentava mais ver a menina sofrer passivamente, sem contar para o pai (eles tinham mesmo uma boa relação, faltava só um pouco mais de diálogo, como você falou; e como vinham de um acontecimento super triste e trágico, isso só piorou as coisas, já que nem sobre o ocorrido eles falavam).

    Se um dos objetivos do diretor era incomodar o espectador, ele conseguiu. Em alguns momentos tive vontade de puxar aqueles adolescentes cruéis pelos cabelos, dar uns tapas, colocar de castigo, coisa pela qual eles certamente não passaram, pois acredito que quem pratica bullying foi criado sem limites. Pode-se até agir sob o efeito da manada numa situação de risco, mas se não for da natureza da pessoa, não há comportamento de grupo que a fará atuar de modo contrário aos seus princípios.

    No começo pensei que fossem persegui-la por ser pobre, mas logo vi que ela não era pobre, pois ela e o pai foram morar num bairro classe média alta da Cidade do México, vizinho do bairro onde o pai dela trabalhava (ambos considerados bairros “descolados e modernos”).
    É espantoso ver como a escola e os professores são omissos, e por isso também criminosos. E durante a reunião, os pais do carinha não terem dado um pio me impressionou muito.
    Gostei bastante do ator e da menina também.

    Sobre o diálogo entre pais e filhos, você está certíssimo; mas é complicado para os pais se aproximarem dos filhos nessa fase, há um afastamento e confronto naturais; é algo que tem que vir sendo trabalhado desde a infância, para que o adolescente se sinta seguro e acolhido (não é fácil se abrir com os pais numa situação daquela, até pq ela devia sentir culpa, embora não tivesse).
    “Mas a obrigação dos pais é lutar contra o fechamento, o distanciamento. É preciso conversar muito, e sempre.” Falou tudo.

    Spoiler:

    Só para descontrair: o final foi meio a la Dexter, hein? Só faltou o corpo enrolado em plástico preto, e tocar a música do Daniel Licht.

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