Eis aí um filme que faz uma pouco usual mistura de thriller & romance com discussões sobre religião, fé, fanatismo religioso.
Deve provavelmente ter sido pela presença forte de questões religiosas que os distribuidores brasileiros escolheram o título A Tentação. O título original é absolutamente distante disso – The Ledge, a borda, o parapeito.
Bem no início da ação, um rapaz sobe até o último andar de um prédio bem alto, vai até junto de uma edícula, e encosta-se na parede dela, os pés na borda, no parapeito, a menos de dez centímetros da morte.
O rapaz – veremos que se chama Gavin, e é interpretado por Charlie Hunnam, um jovem ator inglês que eu não conhecia, ou de quem não me lembrava – é boa-pinta, usa barba, tem cabelos longos e claros. Não parece miserável, de forma alguma, nem bêbado, nem chapado. Uma pessoa normal, classe média, gente como a gente.
O prédio fica no centro de uma cidade, se não grande, pelo menos média. Não muito longe do prédio de onde Gavin parece pronto para pular há a torre de uma grande igreja.
Na primeira tomada do filme, um plano geral da cidade, já havia aparecido, no alto de outro prédio, uma cruz.
Só nos letreiros finais o espectador ficará sabendo que o filme foi rodado em Baton Rouge, na Lousianna, às margens do imponente Mississipi, não muito distante de Nova Orleans.
Na edícula em que Gavin está encostado há uma janela. Nela aparece um policial, que havia sido destacado por seus superiores para ser o negociador com o suicida em potencial.
Não era um bom dia para o detetive da polícia Hollis Lucetti (o papel de Terrence Howard) ser escalado para convencer alguém a não pular do alto de um prédio. Pouco antes, naquela mesma manhã, Hollis havia ficado sabendo que seus dois filhos do casamento que parecia perfeito com Angela (Jaqueline Fleming) não eram seus filhos.
The Ledge começa no momento em que Hollis fica sabendo disso. Depois dos planos iniciais dos prédios da cidade, primeiro de noite, e depois ao amanhecer, vemos Hollis conversando com uma médica, no consultório dela. Ele conta que um grande amigo pediu para ele doar sêmen para que o amigo e a sua mulher possam ter filho, já que eles mesmos não podiam ter. E então a médica é obrigada a dizer a Hollis que ele não pode ser pai – nunca. Assombrado, pasmo, ele pergunta se sempre foi estéril. A resposta é positiva.
Quando, na delegacia de polícia, o superior manda Hollis negociar com o suicida, ele bem que tenta dizer que aquele não é um bom dia. Mas tem que ser ele – e ele vai.
Um policial em choque destacado para convencer um suicida de que a vida vale a pena
Convenhamos: é um belo início de narrativa. Um homem devastado pelo choque da notícia de que seus filhos não são seus, e portanto sua mulher o traiu, e por pelo menos duas vezes, tendo que convencer um suicida de que a vida vale a pena.
O diálogo inicial entre o detetive Hollis e o suicida Gavin é extraordinariamente bem construído.
O tema Deus, religião, fé, vem à baila. O tema fidelidade – o que está corroendo a alma do policial naquele momento – também.
Depois de algumas poucas frases, um já sabe o nome do outro. Haverá pausas, momentos de silêncio, ao longo do diálogo.
Estão a menos de um metro um do outro, Hollis com a cabeça para fora da janela, Gavin de pé encostado à parede da edícula, mas com os pés a uns 10 centímetros da borda.
Hollis: – “Você é casado, Gavin?”
Gavin: – “Não.”
Hollis: – “Então que diabos está fazendo aqui em cima?”
Gavin: – “Isso foi uma piada?”
Hollis: – “É, uma tentativa de piada.”
Gavin: – “Você, obviamente, é casado.”
Hollis: – “Veja, sou treinado para conversar com você por horas. Posso ficar enrolando até você ficar tão confuso que cai daí. Mas algo me diz que você é esperto demais para essa baboseira. Então que tal encurtar a conversa e você me dizer qual é o problema?”
Gavin: – “Não, acho que quero enrolar um pouco. (Uma longa pausa.) Há quanto tempo você e sua mulher estão juntos?”
Hollis: – “15 anos.”
Gavin: – “O sexo ainda é bom?”
Hollis: – “Temos mesmo que falar disso, Gavin?”
Gavin: – “Não. Eu posso pular.”
Daí a uma ou duas frases, Gavin volta ao assunto que Hollis gostaria de esquecer: – “Você tem sido fiel?”
Aqui há algo que se perda na tradução. Fiel, em inglês, é faithfull – a soma de duas palavras, fé e cheio, cheio de fé.
Hollis: – “Sim. Mas, no campo da fé… Você tem alguma?
Gavin: – “E você?”
Hollis: – “Sim. Sou católico. (Pausa.) Você não tem fé alguma, não é? (E Gavin confirma com a cabeça.) Tem namorada?”
Gavin: – “Não exatamente.”
Hollis: – “Entendo. Você é gay?”
Gavin (com um sorriso): – “Não. Embora eu viva com um. Foi demitido quando descobriram que ele era HIV positivo. Eu o acolhi, ajudei a arranjar um novo trabalho, e agora ele…
Gavin percebe a chegada, lá embaixo, na rua, onde a polícia já fez um cordão para afastar os curiosos da área mais próxima ao prédio, de uma moça, em uniforme de trabalho, que grita alguma coisa para ele. Gavin chega mais para perto da borda, olha lá embaixo. Hollis fica inquieto, pede para que o outro se afaste, se encoste novamente na parede. Gavin faz isso, e deixa escapar a frase: – “Por que é tão difícil?”
Hollis: – “Você não precisa fazer isso. Não precisa mesmo.”
Gavin: – “Na verdade, eu preciso, sim. Depois que eu me for, você tem que cuidar de uma coisa para mim, tá?
Aí cai a ficha para o policial. – “Você não está aí por escolha própria, não é?”
E Gavin: – “Não. Tenho que ficar aqui até o meio-dia. Se eu não pular, outra pessoa vai morrer.”
A câmara mostra o relógio na torre da igreja: 10h40.
Estamos com dez minutos de filme.
Um cristão fundamentalista, de um fundamentalismo perigoso, nocivo
Interessante: 10h40. O prazo fatal é o meio-dia. Exatamente como em Matar ou Morrer/High Noon, uma das maiores obras-primas do cinema.
A partir daí, Gavin vai contar sua história para o detetive Hollis – e o espectador a verá na tela. A história que Gavin conta começa num dia em que ele está saindo de seu apartamento para ir para o trabalho e fica conhecendo os novos vizinhos, que se mudaram havia pouco para o apartamento ao lado. É um jovem casal, Joe e Shana Harris – interpretados por Patrick Wilson e Liv Tyler.
Por uma dessas absurdas coincidências de que é feita a vida, Shana vai tentar achar um emprego exatamente no lugar em que Gavin trabalha: um hotel na área central da cidade. Apesar de muito jovem, Gavin é subgerente do hotel. Como – mesmo sendo uma boa pessoa, e a princípio não pensando em nenhuma segunda intenção – negar um emprego a uma mulher bela daquele tanto?
Joe vai convidar Gavin para jantar na casa do casal. Gavin, claro, leva seu amigo Chris, o gay. Joe revela-se um cristão fundamentalista, desses que entendem que ser gay é viver em pecado mortal.
Seu fundamentalismo vai se provar muito mais nocivo do que apenas essa demonstração de homofobia.
O fundamentalismo cristão é uma seriíssima ameaça à vida em sociedade
A ameaça do fundamentalismo cristão à vida em sociedade é uma preocupação presente entre muita gente boa nos Estados Unidos. Me lembro que minha sobrinha Valéria, que mora lá há muitos anos, se apavora – como milhares e milhares e milhares de pessoas – com o intenso lobby dos fundamentalistas contra, só para dar um exemplo, o ensino do darwinismo nas escolas públicas.
A ameaça do fundamentalismo cristão é grave, séria, perigosíssima – assim como a de qualquer outro fundamentalismo, seja muçulmano, seja comunista, seja fascista.
Muito en passant, em um diálogo no filme se falará do fundamentalismo muçulmano, os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Embora seja uma co-produção EUA-Alemanha, e tenha no elenco três atores importantes, Liv Tyler, Terrence Howard e Patrick Wilson, The Ledge é um típico filme do cinema independente. Custou US$ 10 milhões, uma quantia imensa em comparação com o cinema brasileiro, ou o argentino, ou o mexicano, mas que é pequena para um filme americano. O filme participou do Sundance Festival, o festival de Cannes do cinema independente dos Estados Unidos.
The Legde foi escrito e dirigido por Matthew Chapman, inglês de nascimento, mas desde os anos 1980 radicado nos Estados Unidos, primeiro em Los Angeles, depois em Nova York. Chapman foi autor ou co-autor do roteiro de 12 títulos, e já dirigiu cinco filmes – este The Ledge é seu quinto filme como diretor.
É também escritor. Publicou um livro com título imenso – 40 Days and 40 Nights – Darwin, Intelligent Design, God, OxyContin, and Other Oddities On Trial in Pennsylvania – que relata fatos acontecidos em uma pequena cidade americana dividida entre o fundamentalismo e a ciência.
O tema fundamentalismo, como se vê, está presente em mais de uma obra de Matthew Chapman. Ele escreveu também Trials Of The Monkey – An Accidental Memoir, em que relata uma viagem que fez à cidade em que aconteceu o famosíssimo julgamento de um professor acusado do crime de ensinar o evolucionismo em uma escola, nos anos 1920, e que deu origem ao extraordinário filme O Vento Será Tua Herança/Inherit the Wind, de Stanley Kramer, de 1960.
Tive uma surpresa grande ao ver que Matthew Chapman é, desde 1989, o marido de Denise Dumont; o casal tem um filho.
Tem preocupações corretas, aborda com coragem esse tema importantíssimo que é o perigo do fundamentalismo, tem talento – e bom gosto e sorte na vida, Denise Dumont que o diga.
Há tragédias demais no passado de cada um dos personagens
De início, A Tentação/The Ledge me deixou com sensações um tanto divididas. Por um lado, vi todos os méritos do filme, a boa posição ideológica em relação ao fundamentalismo, o início da narrativa extremamente atraente. Por outro lado, algo me incomodava – e eu não sabia definir com clareza o que era. Me pareceu… um tanto artificial demais, a trama muito bem feita demais, mas talvez pouco crível, pouco verossímil.
Talvez tenha ajudado o fato de que os atores não parecem estar em seus melhores momentos. Já vi Terrence Howard e Patrick Wilson em interpretações melhores. Liv Tyler é aquela beleza acachapante, mas não me pareceu estar muito bem no papel. Não é que as interpretações sejam ruins, não. Não chega a tanto – mas não passam do simplesmente correto, me pareceu.
E também me assustou um pouco a quantidade de tragédias, de histórias tristíssimas, no passado de todos os principais personagens.
Mas acho que esses senões todos que enxerguei de início são bobagem, são coisa pouca – ou foram pura implicância minha.
Ao rever o início do filme, para anotar aquele belíssimo diálogo, vi que é, de fato, um bom filme. Bem bom. E importante.
Anotação em dezembro de 2012
A Tentação/The Ledge
De Matthew Chapman, EUA-Alemanha, 2011
Com Charlie Hunnam (Gavin Nichols), Terrence Howard (detetive Hollis Lucetti), Liv Tyler (Shana Harris), Patrick Wilson (Joe Harris),
e Jaqueline Fleming (Angela Lucetti), Christopher Gorham (Chris)
Fotografia Bobby Bukowski
Música Nathan Barr
Montagem Alex Hall e Anne McCabe
Produção Foresight Unlimited, VIP Media Group, Michael Mailer Films. DVD Vinny Filmes.
Cor, 101 min
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