O cinema em geral, e especialmente o americano, tem imensa fascinação pelo jornalismo. Há dezenas e dezenas de filmes sobre jornalismo e jornalistas, diversos deles muito bons. Há os que mostram a profissão e os profissionais com deslumbramento, outros com admiração, outros com respeito, alguns com olhar crítico.
A Montanha dos Sete Abutres – dá para dizer com bastante certeza – é o mais cruel de todos os filmes jamais feitos sobre jornalismo.
Deveria ser mostrado e discutido em todas as escolas de jornalismo do mundo.
É uma paulada violentíssima, um soco no estômago, sem dó ou piedade. Sem analgésico.
Um jornalista que, como tantos outros, tem o rei na barriga
Chuck Tatum, o protagonista do filme que Billy Wilder fez em 1951, interpretado por Kirk Douglas, tem diversos defeitos, como se verá ao longo dos eletrizantes 111 minutos de duração de Ace in the Hole, mas o primeiro que ele mostra é um bastante típico de sua profissão: a soberba. Acha-se genial, um dos melhores de todos, ou – por que não? – o melhor.
Na primeira sequência do filme, ele está nas ruas de Albuquerque, Novo México, sentado em um carrão conversível puxado por um caminhão-guincho. Folheia displicentemente um jornal. Manda o motorista do guincho parar diante do prédio em que funciona o jornal, o Albuquerque Sun Bulletin, e entra na redação como Napoleão gostaria de ter entrado em Moscou.
Tem o rei na barriga, e mostra isso na cara.
Já trabalhou nos grandes jornais das maiores metrópoles, e por isso se acha um gigante diante daqueles anõezinhos da cidadezinha acanhada do Estado distante e empoeirado.
Há um índio na redação, e Chuck o olha com imenso desprezo enquanto o cumprimenta com um Ráu!
Depois observa um quadro na parede com palavras bordadas, junto da mesa de uma simpática senhorinha. As palavras são “Conte a verdade”, e a senhorinha diz para o forasteiro que elas são de autoria do patrão, e o bordado foi ela que fez.
Chuck aborda a pessoa mais jovem que há na redação, um garoto aí de uns 20 e poucos anos – veremos depois que ele se chama Herbie Cook (Robert Arthur) – e diz que quer falar com o patrão. Quer oferecer ao patrão a chance de ganhar 200 dólares por semana.
O sr. Jacob Q. Boot (Porter Hall, numa interpretação extraordinária) manda entrar o forasteiro.
O diálogo que vem a seguir entre Boot, proprietário e editor do jornal de província, simpático, de aparência simples, e o jornalista com o rei na barriga que se acha o melhor do mundo é um brilho acachapante – dos mais brilhantes de tantos escritos por Billy Wilder e seus parceiros. É rápido – na tela, não dura mais que uns dois minutos, três no máximo. Transcrito, parece um tanto longo, mas não consigo resistir à idéia de tê-lo neste site. Aí vai:
– “Bem, Mr. Boot, estou de passagem por Albuquerque. Tomei o café da manhã aqui. Li o seu jornal. Imaginei que poderia se interessar em saber o que achei.”
– “De fato estou interessado.”
Chuck Tatum está de pé na sala, fumando, Jacob Q. Boot está sentado à sua mesa de trabalho.
– “Bem, para ser honesto, me fez vomitar. Eu não esperava mesmo o New York Times, mas, mesmo para Albuquerque, isso (está com um exemplar do jornal na mão) é Albuquerque demais.”
Boot pega no bolso uma moeda, o preço de um exemplar de seu jornal, e a estende para o Grande Jornalista das Metrópoles.
– “Tá certo. Eis o seu dinheiro de volta. Agora, que história é essa de eu ganhar 200 dólares por semana?”
– “Pelo visto, o senhor não conhece meu nome.”
– “Não posso negar.”
– “É porque não recebem os jornais do Leste por aqui.”
Se fosse brasileiro e estivesse em Rondônia, ou no Piauí, diria “os jornais do Sudeste.”
Entrega a Boot algumas páginas de jornais com matérias assinadas por ele, uma espécie de seu portfólio.
– “Já trabalhei em Nova York, Chicago, Detroit…”
– “E quanto aos 200 dólares?”
– “Estou chegando lá, sr. Boot. Sou um jornalista de 250 dólares por semana. Mas posso aceitar 50.”
– “Por que seria tão generoso?”
– “Conheço jornais de trás para a frente. Posso escrever, editar, imprimir, encadernar, vender. Sei lidar com notícias grandes e notícias pequenas. E, se não houver notícias, vou lá fora e mordo um cachorro.”
É uma variante de umas das frases mais clássicas do jornalismo: se um cachorro morde um homem, não é notícia; se um homem morde um cachorro, é notícia. Décadas atrás, num dclicioso programa humorístico, a Rádio Jovem Pan dizia, sobre uma fictícia Rádio Camanducaia: Se não tem notícia, nóis inventa.
E Tatum dá seu preço final:
– “Aceito 45.”
– “Por que tão pouco?”
– “É uma pergunta justa, já que me sobressaí em todos os jornais em que trabalhei. O senhor ficará feliz em saber que fui demitido 11 vezes de jornais com circulação de 7 milhões de exemplares, por motivos que iriam aborrecê-lo.”
– “Vá em frente: me aborreça.”
– “Já menti muito por aí. Menti para homens que usavam cintos. Menti para homens que usavam suspensórios. Mas nunca fui tão estúpido de mentir para um homem que usa tanto cinto quanto suspensório. Em Nova York, fui processado por difamação. Em Chicago, tive um caso com a mulher do editor. Em Detroit, fui pego bebendo. Em Cleveland…
– “Já entendi.”
– “Agora estou em Albuquerque sem dinheiro. Rolamentos gastos, pneus ruins e uma péssima reputação.”
– “Pneus ruins são um perigo.”
Que maravilha de frase, interrompendo o discurso cheio de soberba, de empáfia, do Grande Jornalista das Metrópoles! Pneus ruins são um perigo!
Mas o Grande Jornalista das Metrópoles não ouve, ou finge não ouvir, e prossegue seu discurso. Os jornalistas costumamos ter esse outro defeito: adoramos ouvir o som de nossa própria voz, e não somos muito afeitos a ouvir a voz dos outros.
– “Tenho apenas uma chance de retomar meu lugar: arrumar um emprego em um jornal pequeno como o seu e esperar, e rezar para que algo aconteça, algo em que eu possa pôr as mãos, algo que faça as agências de notícias correrem atrás de mim novamente. Apenas um furo, um toque especial de Tatum, e eles me estenderão o tapete vermelho. Porque quando eles precisam de você, eles esquecem e perdoam.”
Em inglês, a frase é mais sonora, uma aliteração, como no verso buarquiano “esperando parada pregada na pedra do porto”, ou no dylaniano “sea sick sailors”: forget and forgive.
– “Mas até lá, senhor Boot, o senhor terá o melhor jornalista que já viu em sua vida. Por 40 dólares por semana. Quando eu começo?”
Durante as perorações de Chuck Tatum, Boot esteve dando uma folheada no material que o outro havia trazido. Com calma, voz suave, ele diz:
– “Não temo seus processos, porque sou advogado. Eu checo e recheco cada palavra antes de publicá-la. E, quanto à mulher do editor, devo alertá-lo de que a sra. Boot é avô de três crianças. Se quiser ter um caso com ela, ela certamente ficará lisonjeada.”
Faz uma pausa:
– “E quanto à bebida? O senhor bebe muito?”
– “Não muito – só frequentemente.”
– “Temos uma regra aqui: não se bebe na redação. Pago 60 dólares por semana.”
Abre a porta da sala, os dois passam para a redação.
– “Onde fica minha mesa?”
– “Aquela perto da porta. Você pode estar fora daqui lá pelo sábado.”
Um repórter disposto a qualquer coisa por um furo, um editor íntegro
Que maravilha de diálogo, que extraordinário início de narrativa!
Dá vontade de dizer, como Audrey, a ex-mulher de Joe Giddeon em All That Jazz, ao ouvir o texto da nova peça que ele escreveu, de um brilho tão absurdo que a deixa exasperada: “Filho da puta!” Ou como Caetano declarou, solenemente, após ouvir um solo de Milton Nascimento, a seu lado, no show que fizeram juntos na época do lançamento da trilha do filme O Coronel e o Lobisomem: “Puta que pariu!”
Às vezes, diante de uma centelha tão brilhante, só mesmo um sonoro palavrão.
Uma das genialidades do diálogo de abertura de A Montanha dos Sete Abutres, escrito por Billy Wilder e seus co-roteiristas Lesser Samuels e Walter Newman, na minha opinião, é que ele mostra que Chuck Tatum acha que venceu a parada, que chegou e abafou. Na verdade, o mais esperto ali, o tempo todo, foi o editor humilde, simples, quase simplório, do jornalzinho do interior que o Grande Jornalista das Metrópoles despreza.
Se fosse uma luta de boxe, o vitorioso, nesse embate, seria, sem dúvida alguma, o homem do interior. Se não por nocaute, por uma diferença imensa de pontos.
“Pneus ruins são um perigo!” “A sra. Boot é avô de três crianças. Se quiser ter um caso com ela, ela certamente ficará lisonjeada!”
Boot – o filme mostrará isso com clareza, limpidez – é um jornalista honrado, íntegro, ético. Faz um jornal simples, pequeno, humilde, numa cidade de um Estado distante – mas é um jornalista honesto.
O sujeito cheio de empáfia, soberba, rei na barriga é movido não pela vontade de contar a verdade, mas pelo desejo, pela necessidade de brilhar. De alimentar o rei que carrega na barriga.
Esse é um enorme perigo, em qualquer profissão. No jornalismo, em que os egos são gigantescos, incomensuráveis, é um perigo que pode ser fatal.
“Notícias ruins vendem mais. Porque boas notícias não são notícias.”
Para os jornalistas, assim como para os goleiros e os artilheiros, não basta ter talento e esforço. Também é preciso ter sorte, estrela.
Cai no colo de Chuck Tatum exatamente aquilo que ele esperava, que ele rezava para que acontecesse.
Boot o manda cobrir, juntamente com o garoto Herbie, que trabalhará como fotógrafo e motorista, um festejo tradicional do interior do Novo México, que inclui um concurso de caça a cascavéis. Lá vão elas, pelas estradas cercadas de imenso nada do Estado gigantesco – Herbie dirigindo, Chuck morrendo de tédio na cadeira do carona.
Para se distrair, Chuck conta histórias de suas matérias. Jornalistas adoram contar como suas matérias foram feitas.
Conta sobre certa vez em que 50 cobras foram soltas em Oaklahoma City. A cidade entrou em pânico, as ruas ficaram desertas. Começou uma grande caçada, e as cobras foram sendo presas – até que ficou faltando uma.
– “Onde está a última cobra?”, pergunta Chuck, agora já não mais morrendo de tédio, porque está falando, ouvindo o som de sua própria voz. “Na creche? Na igreja? Em um elevador lotado? Onde?”
E Herbie: – “Não sei. Diga.”
– “Na gaveta da minha mesa, meu amigo. Escondida, sem ninguém saber. Entendeu? A história rendeu por mais uns três dias. E aí então soltamos uma baita edição extra: ‘Sun Bulletin encontra a cobra de número 50!”
Em A Primeira Página, de 1974, refilmagem que Billy Wilder fez de Jejum de Amor/His Girl Friday, de 1940, um repórter tão competente e anti-ético quanto Chuck Tatum esconde na gaveta de sua mesa o preso que estava para ser executado e conseguiu fugir em plena delegacia central. Na vida só existem duas ou três histórias, dizia Claude Lelouch.
E aí o garoto Herbie pergunta a Chuck de onde ele tira essas idéias. Chuck zomba da faculdade de jornalismo que Herbie cursou, e sentencia:
– “Eu não fiz nenhuma faculdade, mas sei criar uma boa matéria, porque antes de trabalhar em um jornal, eu os vendia nas ruas. Sabe a primeira coisa que aprendi? Notícias ruins vendem mais. Porque boas notícias não são notícias.”
Chuck Tatum, o Grande Jornalista das Metrópoles, vai reger um sensacional reality show
Param num posto para reabastecer. Ao lado do posto, e de uma humilde, pobre edificação em que funcionam uma lanchonete e uma loja de souvenirs indígenas, há uma placa: “Visite velhas moradias indígenas na montanha – 450 anos de idade – Entrada grátis”.
Herbie entra na lanchonete, chama, não vê ninguém. Ao fundo da lanchonete há uma porta aberta: uma senhora reza diante de uma imagem sagrada.
Herbie volta até o carro para dizer a Chuck que há algo estranho ali – e, naquele exato momento, um carro de polícia entra no portão ao lado da placa.
O faro de Chuck o faz mandar Herbie seguir o carro de polícia.
Ao fundo do terreno há uma montanha, na qual havia as tais moradias indígenas de séculos atrás, dentro da rocha, como se fosse uma mina abandonada.
Leo Minosa (Richard Benedict), o dono do posto, da lanchonete e do sítio arqueológico que quase ninguém visita, havia entrado mais uma vez nos caminhos dentro da montanha, atrás de artefatos indígenas para vender em sua lojinha – e havia ficado preso com o desmoronamento de uma estaca sobre suas pernas.
Pessoas do local estão acorrendo para tentar retirar Leo do fundo da mina. A idéia é reforçar com estacas o local – em algumas horas de trabalho, pensa-se que ele poderia ser retirado.
Chuck e Herbie são as primeiras pessoas de fora a chegar ao local.
Se, em vez de reforçar com estacas o local, se fizesse uma perfuração desde o alto da montanha, o trabalho poderia levar alguns dias. O tempo necessário para Chuck Tatum ter matéria exclusiva. Notícia nacional.
Levei um tempão para chegar até aqui, mas Billy Wilder leva apenas 15 enxutos – brilhantes – minutos.
Vai começar um gigantesco espetáculo midiático composto, regido e orquestrado por Chuck Tatum, o Grande Jornalista das Metrópoles.
Um sensacional reality show.
Uma loura, que, como outras louras de filmes noir, não é flor que se cheire
Um posto de gasolina e uma lanchonete pobre, quase miserável, numa estrada pouquíssimo movimentada, no meio do nada. É humanamente impossível ver ou rever A Montanha dos Sete Abutres e não lembrar de O Destino Bate à Sua Porta/The Postman Always Rings Twice, que Tay Garnett dirigiu em 1946 – cinco anos, portanto, antes do filme de Wilder – com base no romance de James M. Cain. O mesmo James M. Cain que escreveu Double Idemnity, no Brasil Pacto de Sangue, que, em 1944, o mesmo Billy Wilder transformou em outra obra-prima.
Em Pacto de Sangue há uma loura (interpretada por Barbara Stanwyck), que surge pela primeira vez na tela com as pernas e coxas à mostra, uma tornozeleira à vista. Vai despertar no pobre corretor de seguros Walter Neff o desejo, a cobiça, a loucura – e o resultado será a tragédia.
Em O Destino Bate à Sua Porta também há uma loura (interpretada por Lana Turner), que surge pela primeira vez na tela com as pernas e coxas à mostra, toda, todinha de virginal branco. Vai despertar no pobre andarilho sem eira, beira ou destino Frank Chambers o desejo, a cobiça, a loucura – e o resultado será a tragédia.
Em A Montanha dos Sete Abutres também há uma loura (interpretada por Jan Sterling). É Lorraine, a mulher de Leo, o homem que está lá dentro da mina com uma estaca desmoronada impedindo seus movimentos. Chuck e Herbie topam com ela quando entram na área cercada, em direção à montanha, seguindo o carro de polícia, para ver o que está acontecendo ali.
Ao contrário das femmes fatales interpretadas por Barbara Stanwyck e Lana Turner, Lorraine Minosa não está com as pernas e coxas à mostra. Veste-se como qualquer pessoa naquele lugar perdido no meio do nada do Oeste americano – calças jeans, camisa xadrez. Está carregando um cobertor e uma garrafa de café para levar para o marido preso lá embaixo.
Também ao contrário das duas outras atrizes citadas acima, Jan Sterling não é uma mulher de grande beleza e sensualidade. É uma pessoa comum. E a lourice de seus cabelos é falsa, segundo ela mesma dirá a Chuck um pouco mais tarde.
Exatamente como a Phyllis Dietrichson de Barbara Stanwyck e a Cora Smith de Lana Turner, no entanto, Lorraine Minosa não é flor que se cheire. Exatamente como as outras duas, Lorraine acabou se casando na falta de opção melhor. Exatamente como as outras duas, não ama seu marido. Não gosta da vida que leva. Tem sonhos de uma vida melhor, com mais glamour – e, claro, mais riqueza – muito longe daquele buraco em que se encontra.
A diferença fundamental entre Loraine e as outras duas, na minha opinião, é que Phyllis e Cora são as agentes provocadoras, são as femmes fatales que botam fogo nos homens que aparecem à sua frente, que incitam neles a cobiça sem fim.
Aqui, é a fúria desmedida de Chuck Tatum por um furo jornalístico que incendeia Lorraine, que põe para funcionar a máquina da ambição que já havia nela, mas que até então permanecia quieta.
Como em tantas histórias – da vida real e da ficção –, a aprendiz se demonstrará, ao fim e ao cabo, maior que seu mestre. Maior, aqui, significando mais vil, mais desprezível, mais abjeta.
“É uma boa história hoje. Amanhã, vão embrulhar peixe com ela.”
Lorraine pensa em cascar fora dali bem cedo. Chuck mostra a ela que, se ficar, poderá ganhar muito dinheiro – hordas de pessoas chegam de todos os lugares do país para acompanhar de perto o trabalho de resgate de Leo Mimosa. A loura falsa demora a aceitar os argumentos do Grande Jornalista das Metrópoles, e então ele diz:
– “Quando tingiram seu cabelo, devem ter tingido seu cérebro também.”
Chuck diz que ela tem que ir à igreja rezar, para aparecer nas fotos. Lorraine, a loura falsa cujo cérebro também foi tingido, diz:
– “Eu não vou à igreja. Ajoelhar estraga minhas meias de nylon.”
Mais tarde, Chuck dirá para ela uma outra pérola antológica:
– “É uma boa história hoje. Amanhã, vão embrulhar peixe com ela.”
Meu Deus do céu e também da terra, quantas vezes, nos meus 37 anos de jornalismo, não disse e ouvi a frase: Amanhã o jornal vai servir para embrulhar peixe!
“Ninguém quer ver a si mesmo no papel de canalha”
E agora chega das minhas opiniões e descrições. Vamos aos alfarrábios, aos fatos.
Começo a ler o capítulo que trata de A Montanha de Sete Abutres no maravilhoso livro Billy Wilder – e o resto é loucura, de Hellmuth Karasek, e me espanto ao ver que ele diz que o filme foi um fracasso comercial, “o primeiro fracasso de Wilder”, “um fracasso clamoroso”.
Pois é o que diz o livro de Karasek, uma obra escrita com o total apoio do próprio Billy Wilder – o cineasta faz longos depoimentos sobre praticamente todos os tópicos abordados pelo autor, um professor e pesquisador alemão.
Karasek lembra que o filme foi lançado durante os anos loucos, pirados, paranóicos do macarthismo, em que se viam comunistas ou, no mínimo, anti-americanos debaixo de cada cama, dentro de cada armário. E transcreve a seguinte frase publicada no Hollywood Reporter, na época do lançamento:
“O filme se baseia na premissa de que os americanos são um monte de imbecis que se podem enganar com toda a facilidade. São vítimas de pura histeria de massa, e os sentimentos deles podem ser satisfeitos com compensações baratas.”
Wilder, diz Karasek, jamais procurava culpados, se um de seus filmes não fosse bem recebido. Não transferia responsabilidades a outras coisas, circunstâncias. Responsabilizava-se pelo que tinha feito.
O depoimento do próprio Billy Wilder no livro é absolutamente extraordinário:
“Disseram que o filme foi um fracasso porque a esposa se revela como um monstro frio – nenhuma mulher convidaria o marido para ver este filme. Acredito mais numa outra razão para o fracasso, a de que o verdadeiro canalha, em A Montanha dos Sete Abutres, não seja nem Kirk Douglas no papel do repórter, nem Jan Sterling no papel da esposa – mas o público. O jornalista é aquele que dá comida à fera, mas não é ele mesmo a fera. É esta a causa do fracasso: ninguém quer ver a si mesmo no papel de canalha. Como é que se pode despertar a curiosidade das pessoas para ver o filme, se o que se mostra a elas é a que bestiais consequências a curiosidade leva? (…) Digamos assim: era o filme errado para aquela época. Ninguém tinha vontade de dar 5 dólares para saber, pelo cinema, que era um indivíduo horrível.”
Atrás da imprensa ruim estão as pessoas ávidas por notícias sensacionalistas
A inteligência, a agudeza do raciocínio de Billy Wilder é acachapante.
Sim, sim, sim – A Montanha dos Sete Abutres vai além do exame do jornalismo em si, a diferença entre o jornalismo responsável (representado por Jacob Q. Boot) e o jornalismo sensacionalista (personificado por Chuck Tatum).
Ele se aprofunda nisso, sem dúvida alguma. A imensa diferença entre o jornalismo, digamos, de um William Bonner, de um lado, e um Datena, do lado oposto, ou de um William Waack do de um Ratinho, ou de uma Folha de S. Paulo e de um Agora, para pegar dois veículos do mesmo grupo.
Na imprensa inglesa, a diferença é absolutamente nítida, entre, por exemplo, de um lado, The Guardian, The Independent, e os tablóides populares, The Sun et caterva.
Mas, de fato, o filme vai – como mostra o depoimento de Wilder a seu biógrafo-analista – além da diferença entre o jornalismo sério e o jornalismo que aqui chamamos de marrom, e os americanos, de yellow. Além da diferença tantas vezes mostrada em belos filmes entre o jornalismo sério e o infotainment da TV americana, essa praga que mistura informação com entretenimento, os fantásticos shows da vida que exploram as misérias humanas na busca louca pelo melhor ibope.
Ao mostrar o grande circo que Chuck Tatum constrói num canto perdido do Novo México como forma de seu retorno fenomenal ao grande jornalismo das metrópoles, Billy Wilder colocava na mesa a discussão ainda mais profunda, mais séria, mais grave: o que vem primeiro, o ovo ou a galinha? O jornalismo de merda, ou a imensa quantidade de leitores/espectadores que procuram merda no jornalismo?
É uma discussão que não tem fim. Belos filmes passaram por ela – como Bastidores da Notícia/Broadcast News, de James L. Brooks, de 1987, Íntimo e Pessoal/Up Close & Personal, de Jon Avnet, de 1996. É o tema central, parece, da elogiada série The Newsroom, de Aaron Sorkin, de 2012.
O próprio Billy Wilder passou por ela – escrachadamente – no já citado A Primeira Página, de 1974. O Jornal/The Paper, de Ron Howard, de 1994, também fez rir desse tema sério, seriíssimo.
No seu livro Film World, o inglês Ivor Montagu escreveu que Sergei Mikhailovich Eisenstein gostaria de ter filmado A Tragédia Americana, de Theodore Dreiser, mostrando, como o livro, que o responsável pelo crime não é apenas o rapaz que o comete, mas sim toda a sociedade que, em última instância, o leva a cometê-lo. Fico imaginando que Eisenstein teria aprovado a forma com que Billy Wilder mostra que tão ruim quanto a imprensa nojenta é o público que exige que a imprensa produza nojo.
Não importa se um filme faz sucesso ou não; se é bom, fica para sempre
Enfim, o que A Montanha dos Sete Abutres vem provar, como tantas outras obras, é que o fato de um filme ser sucesso ou fracasso de público na época de seu lançamento significa muito pouco.
Se foi um tremendo fracasso de bilheteria na época do lançamento nos Estados Unidos, o filme foi sucesso de público e crítica na Europa. Teve apenas uma indicação ao Oscar – o de melhor roteiro. Mas obteve prêmio no Festival de Veneza, um dos três mais importantes do mundo, ao lado dos de Cannes e Berlim, naquele mesmo ano de 1951.
E, ao longo destes mais de 60 anos que se passaram, tornou-se um indiscutível clássico, reverenciado de forma quase unânime. Está, por exemplo, nos livros 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer e 501 Must-see Movies.
É uma obra-prima.
Anotação em janeiro de 2013
A Montanha dos Sete Abutres/Ace in the Hole
De Billy Wilder, EUA, 1951
Com Kirk Douglas (Chuck Tatum),
e Jan Sterling (Lorraine Minosa), Robert Arthur (Herbie Cook), Porter Hall (Jacob Q. Boot), Richard Benedict (Leo Minosa), Ray Teal (xerife Gus Kretzer), John Berkes (Papa Minosa), Frances Dominguez (Mama Minosa), Frank Cady (Al Federber)
Roteiro Billy Wilder, Lesser Samuels e Walter Newman
Baseado em história de Victor Desny, não creditado
Fotografia Charles B. Lang Jr.
Musica Hugo Friedhofer
Montagem Arthur P. Schmidt
Figurinos Edith Head
Produção Paramount Pictures. DVD Paramount.
P&B, 111 min
R, ****
4 estrelas merecidas. Este filme é simplesmente maravilhoso. Assisti pela primeira vez quando tinha 18 anos, em 2003 (Isso tem dez anos!!! Preciso ver de novo!!!), sem saber quem era Billy Wilder, só tendo visto o Kirk Douglas (lindo, maravilhoso, talentoso e felizmente ainda vivo) em “Spartacus” e este filme foi um dos alicerces do meu vício em filmes antigos. Desta vez não foi um comentário curto, mas adorei vê-lo aqui, ainda mais com essa cotação. 4 estrelas para você também, pelo bom gosto e pelo texto sublime.
Agora o comentário curto: Kirk Douglas era uma gracinha com essa covinha no queixo =)
Sérgio,
Outro dia, você falou que as pessoas se dividem em seres humanos e jornalistas, então eu já estava esperando a publicação de suas impressões acerca do “A Montanha…”.
O Billy Wilder é um monstro! Essa capacidade de torturar o espectador é impressionante. Eu particularmente acho que só o Hitchcock consegue ser igualmente sádico.
Abraço!
André
Senhorita, você só tem 28 anos?????
Desculpe, mas você parece ter mais.
Não quero ser ofensivo, e sei que toda mulher detesta parecer mais velha.
(Uma vez, numa reunião de pauta da Marie Claire, eu chamei as editoras “jovens senhoras” e elas ficaram fulas da vida, não pelo jovens, é claro, mas pelo senhoras…)
O que quis dizer é que você demonstra uma grande maturidade em tudo o que você escreve.
Você é uma garota jovem muito madura!
Um abraço.
Sérgio
André,
Adoro os seus comentários.
Acho que Hitch é sádico, mas não vejo Billy Wilder assim. Wilder é provocador, quer deixar o espectador instigado, provocado, inquieto, confuso, sem certezas.
Wilder quer mexer com a inteligência do espectador. Hitch, com as emoções.
Hitch é gênio da forma. Wilder é gênio da inteligência.
Aliás, como muita gente diz, um dos melhores filmes hitchcockianos foi Wilder que fez – Testemunha de Acusação…
Um abraço.
Sérgio
E, Senhorita, que genes fortes tem o Kirk, né? O Michael a cada dia que passa mais parece o pai…
Sérgio,
Eu tenho 27, ainda – faço 28 mês que vem, hehehe.
Obrigada pelo elogio, mas não mereço tanto!!!
PS: Kirk Douglas era gatinho!!! Ah, se eu fosse 60 anos mais velha!!!
A Montanha… é um filme fantástico. Aliás, vendo os filmes dos anos 40 até 60, a quantidade de obras primas do Wilder, em todo tipo de gênero, me faz crer que ele é o melhor diretor da história do cinema, mesmo sendo muito menos conhecido que vários dos outros grandes.
E entre as muitas maravilhas que Wilder fez, A Montanha é o melhor.
E Kirk Douglas… fantástico do começo ao film. Fiquei com vontade de rever.
Vi vários filmes com o Kirk mas, este aqui não estou lembrado, acredito que não.
Vou tentar encontrar “online”. Nas locadoras com certeza não terei sorte.
Até porque sempre fui um grande admirador do Kirk.
Exato Sergio, o Michael é a xerox do pai.
Inclusive no talento.
Abraço !!
Sérgio,
Muito obrigado pela paciência! Estamos aí…
Em primeiro, lugar, devo dizer a Senhorita pelo jeito também gosta de torturar seus interlocutores. Ainda no estágio pré-balzaquiano e já aprecia a atuação do Kirk Douglas. É de matar a turma!
Eu classifiquei o Billy Wilder como “sádico”, mas a rigor isso só serve para os filmes em que ele queria demonstrar o patético da situação a partir das crueldades que eram produzidas a partir dela. Em geral, ele oferece uma experiência leve e divertida mesmo quando está falando de coisas tenebrosas.
Estava revendo o “A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies” (http://www.imdb.com/title/tt0112120/), e o Scorsese usa uma frase do próprio Wilder para resumi-lo: “Sou acusado de ser ordinário. Tanto melhor. Isso prova que estou mais perto da vida”. Então, aparentemente a preocupação dele era mesmo produzir obras eminentemente instigantes, independentemente a ojeriza provocada na “crítica”.
Grande abraço!
André
P.S.: quando fiz o comentário sobre a Senhorita, dei a entender que era um ancião japonês de 90 anos. No entanto, sou alguns anos mais novo do que ela…
Sérgio,
Esqueci de dizer que o episódio da Marie Clair denota que você já passou por momentos à la “O Diabo veste Prada”…
Abraço!
André
Entre tantas críticas brilhantes, essa é uma das mais luminosas, a altura desse filme estupendo. Considero que, junto com “A Embriaguez do Sucesso”, são os mais ásperos e contundentes filme sobre a imprensa marrom. Duros e crus como a incomparável acidez de Balzac nas “Ilusões Perdidas”. E, afinal, mais e mais o jornalismo – notadamente o televisivo – se aproxima da sordidez moral que, magistralmente, é aqui exposta por Wilder. Um filme chocante e memorável, que retrata à perfeição uma prática jornalística que vai se consagrando com a cumplicidade doentia da massa ávida pelo escabroso.
Por fim, um reparo pela não citação de “Ausência de Malícia”, que entendo muito superior a “Bastidores da Notícia” e a “Íntimo e Pessoal”, o que não invalida nem deslustra a excelência de sua
crítica, a qual, sem hesitação, defino como
antológica.
Um grande abraço de seu leitor,
Mário
Sergio,
Corrigindo meu “post”: na 2a. linha, escapou-me filme no singular, mas o correto é
filmes; o comentário sobre “As Ilusões Perdidas” refere-se à dureza dos perfis morais dos jornalistas ali retratados por Balzac.
Desculpe,
Mário
Caríssimo Mario, agradeço até meio sem jeito pelos elogios, que entendo como expressão de sua gentileza.
Você tem toda razão ao citar “A Embriaguez do Sucesso” e “Ausência de Malícia”, do Sydney Pollack. São dois filmes excelentes, que preciso rever para comentar aqui.
Um abraço, e, mais uma vez, obrigado!
Sérgio