O título desta comédia amarga que Robert Altman fez em 1979 – Um Casal Perfeito/A Perfect Couple – é, obviamente, uma brincadeira, uma gozação, uma ironia. É difícil encontrar um casal mais longe da perfeição do que o formado pelos dois protagonistas, Alex (Paul Dooley) e Sheila (Martha Heflin).
Conhecem-se através de uma dessas agências que providenciam encontros para pessoas solitárias. O que, a rigor, não é propriamente um bom começo. No dia do primeiro encontro, vão ao Hollywood Bowl, o grande anfiteatro no meio de um parque de Los Angeles, onde os dois vivem. Está se apresentando a Sinfônica da cidade; Eleousa (Belita Moreno), a irmã mais querida de Alex, toca violoncelo na orquestra.
Estão sentados, os dois, diante de uma mesa, em que Alex serve a Sheila um vinho grego, quando começa a chover torrencialmente. Alex recolhe a tralha de piquenique que havia levado. Chegam ensopados ao carro dele, um Cadillac com teto solar – e o teto solar se abre, enguiça e não tem jeito de fechá-lo.
Vão até a casa de Sheila sob a chuva forte caindo dentro do carro. Ela teme ficar resfriada, não pode ficar resfriada – é cantora, está no meio de ensaios.
A moça mora num loft, acima de uma fábrica. Dá boa noite, mas Alex insiste em levá-la até a porta. Sheila dá boa noite de novo, mas Alex insiste em acompanhá-la no elevador. E, antes de finalmente ir embora, ele ainda a beija, um tanto à força, contra a vontade dela.
Um primeiro encontro em que tudo dá errado. Mas os seguintes serão ainda mais desastrados.
Difícil encontrar um casal mais imperfeito. É imperfeito até em termos estéticos
Alex é filho de gregos, religiosos, tradicionalistas, caretas ao extremo. O pai é um daqueles tipos absolutamente dominadores, autoritários, imperiais. É dono de uma grande loja de antiguidades, e tem dinheiro; mora numa casa gigantesca, com toda a família – os filhos, mesmo os casados, são obrigados a morar com ele e a mulher, e continuam sendo tratados como se fossem crianças. Toda a família trabalha na loja do patriarca.
Já Sheila vive numa comunidade um tanto hippie, que é também um grupo musical, Keepin’ ‘em Off the Streets. No grande loft, em que não há qualquer divisória, vivem umas oito ou mais pessoas: Teddy, o líder da banda e do bando (Ted Neeley), sua mulher e um filhinho bebê; duas cantoras gays, uma das quais está grávida de uma transa eventual com outro colega de banda e bando, ele também gay.
Um filho de gregos tradicionalistas que, com seus 30 e muitos anos, mora com o pai e é tratado por ele como uma criança; uma jovem cantora de uma banda pop que vive em comunidade. Difícil encontrar um casal mais imperfeito.
O casal é imperfeito até em termos estéticos. Paul Dooley, o ator que faz Alex, havia sido protagonista do filme anterior de Altman, Cerimônia de Casamento/A Wedding. Tem uma filmografia vastíssima, com mais de 160 títulos, mas nunca foi um astro e está muito longe de ser um galã.
Martha Heflin, que interpreta Sheila, é sobrinha de Van Heflin e irmã do diretor Jonathan Kaplan, mas, ao contrário dos parentes, não fez longa carreira. Teve um pequeno papel na terceira versão de Nasce uma Estrela, a de 1976, com Barbra Streisand e Kris Kristofferson; ganhou de Altman um papel pequeno em Cerimônia de Casamento, e neste aqui, seu terceiro filme, teve sua única oportunidade como protagonista. Depois faria mais quatro filmes, apenas.
Não era uma mulher muito bonita, na época de Um Casal Perfeito. Não chega a ser feia, mas não tem grande beleza, nem magnetismo.
O maior dom que demonstra neste filme é a voz. Canta com uma voz forte, poderosa, de belo timbre.
Altman, que pôs em primeiro plano o country, o jazz, o soul, aqui vai no pop
Altman tem forte ligação com a música. Usou a música country como tema central de Nashville, de 1975; colocou seus atores para cantar com suas próprias vozes, e até os incentivou a criar, eles mesmos, algumas canções, que foram incluídas na trilha sonora.
Em Kansas City, de 1996, um grande número de cobras toca jazz durante longas sequências. Boa parte do filme é ao som de jazz.
Em A Fortuna de Cookie, de 1999, um filme passado no Sul Profundo, ele homenageia o blues. Ouve-se blues ao longo de muitas sequências. A canção que a dona de um bar interpreta na abertura, belíssima, será repetida nos créditos finais, em versão instrumental, sensacional.
Em Ária, de 1987, uma obra coletiva, com episódios assinados por dez diretores diferentes, Altman se aproximou da música lírica.
Neste Um Casal Perfeito, usa um pouco de música erudita, mas fixa-se mesmo é no pop – um popzinho fácil, ligeiro, às vezes até gostosinho, mas sempre com letras meio adolescentes, meio bobas, óbvias. Uma coisa assim meio ABBA. Poderia ter usado canções pop conhecidas – mas, como é Robert Altman, usou só canções feitas especialmente para o filme, várias delas assinadas em parceria com outros músicos por Alan Nicholls, que vem a ser o co-autor do argumento e do roteiro do filme, junto com o próprio realizador.
E foram criadas não duas ou três músicas, mas umas dez ou 12 – que vão sendo ensaiadas e apresentadas ao longo da narrativa pelo grupo Keepin’ ‘em Off the Streets, a banda em que canta a protagonista Sheila.
Um filme menor dentro da obra de Altman. Mas, como é Altman, é interessante
Não me lembrava de ter ouvido falar deste filme. Mas ele esteve na programação do Telecine Cult, é um Altman, e por isso gravei para ver mais tarde. Enquanto via o filme, a expressão “menor” me passou várias vezes pela cabeça. Um Altman menor. Uma obra menor do grande diretor – que, mesmo menor, tem muitas qualidades.
Depois de ver o filme, fui dar, como sempre, uma olhada nos guias. Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4: “Excêntrica mas agradável comédia romântica sobre encontro improvável do austero Dooley, controlado por seu pai autoritário, com a cantora Heflin, cuja vida está ligada a um grupo de rock”.
No Guide des Films do mestre Jean Tulard, encontrou a seguinte frase: “Duas visões de casal se opõem nesta obra menor mas interessante”.
Tulard é fogo. Acerta na mosca, sempre com um texto inteligente, elegante.
Então eu estava certo quando pensei em “obra menor”; Tulard confirma minha impressão. Menor, mas interessante – ou não seria Altman.
A coisa do “duas visões de casal” é uma bela sacada de Altman e seu co-roteirista Alan Nicholls.
Ao longo de toda a narrativa, enquanto vamos vendo os encontros desastrados, conturbados, do casal central, Alex e Sheila, e seus muitos desencontros, vemos também, sempre de passagem, um outro casal – este sim, um casal que parece perfeito. São bonitos, elegantes, estão sempre sorridentes e carinhosos um com o outro.
Esse casal aparece na tela antes mesmo de vermos Alex e Sheila. Eles estão também no Hollywood Bowl, assistindo ao concerto da Sinfônica de Los Angeles, e a câmara os focaliza, entre uma e outra tomada da orquestra, da bela pianista Mona (Mona Golabek) – a qual, veremos depois, tem um caso com a violoncelista Eleousa, a irmã de Alex.
Só depois de mostrar esse casal belo, elegante e sorridente é que a câmara de Altman mostrará Alex e Sheila, sentados um pouco atrás.
E o tal casal volta e meia passa pela tela. Passa, aparece de passagem em lugares onde estão Alex ou Sheila. Tudo que se relaciona a esse outro casal é de fato en passant. Pois muito bem. Nas aparições desses dois mais para o fim da narrativa, a antiga harmonia já desapareceu; parece que agora aquele casal que parecia perfeito está ficando imperfeito.
Nos créditos finais, vai aparecer o seguinte: Fred Beir e Jette Seear – o casal imperfeito.
Mesmo quando faz um filme menor dentro de sua obra gigante, Altman lança faíscas de brilho.
Mesmo quando faz um filme sobre um casal, monta um mosaico de muitos personagens.
Grande Robert Altman.
Anotação em março de 2012
Um Casal Perfeito/A Perfect Couple
De Robert Altman, EUA, 1979
Com Paul Dooley (Alex Theodopoulos), Marta Heflin (Sheila Shea), Titos Vandis (Panos Theodopoulos), Belita Moreno (Eleousa), Henry Gibson (Fred Bott), Dimitra Arliss (Athena), Alan Nicholls (Dana 115), Ann Ryerson (Skye 147), Poppy Lagos (Melpomeni Bott), Dennis Franz (Costa), Margery Bond (Wilma), Mona Golabek (Mona), Susan Blakeman (Penelope Bott), Melanie Bishop (Star). Fred Beir e Jette Seear (o casal imperfeito), Ted Neeley (Teddy), Heather MacRae (Mary)
Argumento e roteiro Robert Altman e Alan Nicholls
Fotografia Edmond Koons
Música Alan Nicholls
Produção Robert Altman, Lions Gate Films
Cor, 110 min
**1/2
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