Houve Uma Vez Dois Verões

3.0 out of 5.0 stars

Houve Uma Vez Dois Verões é uma delícia de filme. Mais um gol de Jorge Furtado. Na verdade, ainda não vi Jorge Furtado errar. Todo filme dele que já vi é gol.

Não que tenha visto todos. Vi Ilha das Flores, o curta-metragem de 1990 com que o realizador gaúcho encantou o mundo, e depois O Homem Que Copiava (2003) e Meu Tio Matou um Cara (2004). Todos belos filmes, como este aqui, que vi só agora, dez anos depois de seu lançamento.

Feito em 2002, Houve Uma Vez Dois Verões já vem com um gostinho de nostalgia, um quezinho vintage. Nos créditos iniciais, há diversas alusões a máquinas de fliperama, as pin-ball machines que eram mania nos anos 1970. Chico (André Arteche, à direita na foto), o protagonista, garoto aí de uns 17, 18 anos, adora jogar nessas máquinas – e elas serão importantes na trama. E lá pelas tantas Juca (Pedro Furtado, à esquerda na foto), o maior amigo de Chico, vai jogar Tetris no computador, o joguinho que foi mania universal nos anos 1980.

Jorge Furtado não faz muita questão de precisar a época em que se passa essa história de adolescentes. Fala-se muito de telefone celular – mas as indicações são de que nem todo mundo tinha ainda o seu. Ainda não era que nem bunda, que todo mundo tem. Chico vai se mostrar ligeiramente espantado quando Roza lhe diz que tem celular; ele não tem, nem Juca. Portanto, estaríamos aí em meados dos anos 1990.

A ação começa numa praia. Chico e Juca estão sentados lado a lado, olhando para a praia. A voz em off de Chico começa o filme dizendo o seguinte:

– “Esta é a maior praia do mundo. 353 quilômetros. Tá no livro dos recordes. Talvez seja também a pior praia do mundo, principalmente em março. Em janeiro e fevereiro pode até ser divertido, mas em março é um saco. A gente tem que inventar coisa pra fazer o tempo todo. Não é fácil.”

Chico e Juca inventaram uma brincadeira besta. Fizeram um grande buraco na areia diante deles, e o camuflaram direitinho, para que não apareça para os eventuais caminhantes. E ficam ali sentados, esperando que uma vítima apareça. Chico ainda está começando a conversar com o espectador, voz em off, quando aparece uma vítima – um homem aí passado um pouco da meia-idade vem caminhando e pláft: cai no buraco.

A brincadeira besta inclui Chico e Juca segurarem o riso. Se não conseguirem, se abrirem o riso, dão bandeira.

Inicialmente, conseguem segurar – e Chico até continua a narrar sua história para o espectador. Mas o homem acaba caindo uma segunda vez no mesmo buraco, e aí os dois danam a rir, e o homem sai correndo atrás deles.

Daí a pouco veremos Chico e Juca à cata do que todo adolescente procura: meninas. Sexo.

Uma homenagem gaúcha a Houve uma Vez um Verão

Garotos no rito de passagem da adolescência para a idade adulta. Adolescentes de férias na praia, à cata de meninas, da primeira experiência sexual. Garotos desesperados à beira da perda da virgindade.

Isso num filme que se chama Houve Uma Vez Dois Verões.

Tudo a ver com Houve Uma Vez um Verão, certo?

Certo, certíssimo. É óbvio, é claríssimo que Jorge Furtado está fazendo sua homenagem gaúcha a Summer of ’42, o filme esplendoroso de Robert Mulligan feito em 1971 do qual ninguém se esquece, como o primeiro sutiã, o primeiro beijo, o primeiro amor, a primeira dor, a primeira trepada.

Houve uma Vez um Verão talvez seja um dos filmes mais adorados da História. Ele é assim uma espécie de Casablanca. Nada a ver com Cidadão Kane, Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, que estão em qualquer lista dos melhores filmes de todo mundo. Com Houve uma Vez um Verão e Casablanca não se trata de ser o melhor – conceito que tem a ver com a cabeça, a razão. Esses são filmes adorados, queridos, que emocionam, fazem chorar, embargar a voz – filmes que o coração não esquece nunca.

Casablanca é talvez a história de amor que cada um de nós queria ter tido na vida. Houve uma Vez um Verão tem alguma coisa (ou várias coisas) que cada um de nós viveu, quando éramos jovens demais e nossos desejos eram mais fortes, mas éramos perdidos, inseguros, indecisos, bobos, não sabíamos como fazer as coisas básicas.

Roza parece não saber direito mexer no fliperama. Chico vai lá dar uma mãozina

Até lá pelos primeiros 20, 30, talvez 40 minutos, Houve Uma Vez Dois Verões nos faz lembrar de Houve Uma Vez um Verão – e de nossa adolescência.

Como no filme de Robert Mulligan (e como em muitas de nossas memórias da adolescência), o protagonista, Chico (assim como cada um de nós, nas nossas lembranças), é mais sensível que o melhor amigo.

Chico, assim como Hermie do filme americano, deseja muito ter sua primeira experiência sexual – mas isso não é a única coisa que quer ter na vida. É um garoto sensível, inteligente. Mais do que uma primeira trepada, gostaria de ter uma namorada.

Juca, exatamente como Oscy do filme de Robert Mulligan, não liga muito para esse negócio de afeto, afeição, relação. Quer mesmo é uma trepada, seja com quem for.

Chico conhece Roza (Ana Maria Mainieri) quando está atirando nos patos, em um lugar que tem máquinas de fliperama.

A menina parece não saber direito como botar a pin-ball machine para funcionar.

Chico vai lá dar uma mãozinha para ela.

Saem caminhando pela praia – a maior praia do mundo, talvez também a pior praia do mundo, a praia dos gaúchos de POA, a praia que, se minha geografia não estiver muito errada, se estica desde a altura de Capão da Canoa até quase o fim do Brasil, com apenas uma interrupção para que a Lagoa dos Patos, mar de água doce e paixão, se ligue ao Atlântico, junto da cidade de Rio Grande.

Ao entardecer, Roza – sim, com z, diferente de todas as outras Rosas – pergunta a Chico a) se ele é virgem e b) se quer deixar de ser.

Nos filmes de Jorge Furtado, as aparências enganam

E aí, pouco depois disso, Houve Uma Vez Dois Verões se afasta violentamente de Houve Uma Vez um Verão e vira outra coisa completamente diferente

Porque (e eu até já havia me esquecido disso), nos filmes de Jorge Furtado, assim como nos desenhos de Carlos Estévão na revista O Cruzeiro, as aparências enganam.

Gaúcho, mais próximo, portanto, de Montevidéu e Buenos Aires que de São Paulo ou do Rio de Janeiro, Jorge Furtado faz histórias que às vezes fazem lembrar o tango, o lunfardo. O lunfardo, a gíria específica das capitais debruçadas sobre as águas lindas e súcias do Prata, que começou com a influência dos marinheiros, tem, no entanto, algo a ver com algumas velhas gírias brasileiras. Os tangos de Gardel usam expressões como bacana e otário, assim como os sambas clássicos da época de Noel. E então Jorge Furtado faz histórias que lembram a antiga malandragem carioca.

Como é possível ser gaúcho e ter um humor trágico que lembra o tango e ao mesmo tempo uma ginga gostosa que lembra os velhos sambas dos velhos bambas?

Sei lá. Mistério deste mundo de mistérios. Quer coisa mais misteriosa que os gaúchos?

Mistério deste mundo de mistérios é também como Jorge Furtado consegue atuações tão boas, numa cinematografia como a nossa, que não prima propriamente por boas atuações.

Um filme gaúcho com pitadas de tanguédia argentina e malandragem carioca

Vejo que André Arteche, que faz Chico, o protagonista, e Pedro Furtado (filho de Jorge), que faz Juca, vão se dando bem na profissão. André Arteche, nascido em Porto Alegre em 1984 (meu Deus do céu e da terra, ele nasceu quando minha filha já via comigo Spielberg, Hitchcock e até David Lean), tem 14 títulos no currículo, inclusive as séries Desejo Proibido, Caminho das Índias e Ti Ti Ti.

E Pedro Furtado, também de Porto Alegre, também de 1984, tem nove títulos, incluindo a série Amazônia: De Galvez a Chico Mendes.

Já Ana Maria Manieri, que tinha três experiências antes de vestir a pele dessa Roza fascinante, aparentemente não teve muitas oportunidades depois deste filme aqui. Uma pena. Magrinha, franzina, era, em 2002, uma menina interessante, fisicamente – nenhuma beleza Barbie, mas bonitinha, com boa presença, e demonstrava um talento promissor.

Ah, sim: é preciso registrar que os créditos finais deste filme gaúcho com pitadas de tanguédia argentina e malandragem carioca aparecem ao som de uma canção paulistaníssima de Walter Franco, a esplendorosa “Coração Tranqüilo”. Tudo, tudo, tudo a ver o filme com a canção que encerra o filme – tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.

Poderiam ter usado a gravação inimitável de Walter Franco. Poderiam. Mas talvez ficasse um tanto paulistano demais – embora a gravação original de Walter Franco seja multibrasileira e multinacional (exatamente como São Paulo), com toques nordestinos e até jamaicanos. Preferiram usar a versão do Pato Fu, que se atém à afirmação básica da canção, sem o ó que lindo, ó que brilho o estrilho.

Um toque mineiro em um filme que de tão gaúcho é universal.

Me arrependo por não ter visto Houve Uma Vez Dois Verões antes. E pretendo de fato ir atrás dos outros filmes de Jorge Furtado que ainda não vi.

O cinema brasileiro seria melhor se tivesse mais realizadores com o talento de Jorge Furtado.

Na verdade, o cinema, como um todo, seria melhor. O mundo seria melhor, se houvesse mais realizadores como Jorge Furtado.

Anotação em setembro de 2012

Houve Uma Vez Dois Verões

De Jorge Furtado, Brasil, 2002

Com André Arteche (Chico), Ana Maria Mainieri (Roza), Pedro Furtado (Juca),

e Júlia Barth (Carmem), Victória Mazzini (Violeta), Marcelo Aquino (Inácio), Janaína Kremer Motta (Mulher de Inácio),  Yuri Ferreira (Irmão de Roza), Antônio Carlos Falcão (homem da praia/garçom)

Argumento e roteiro Jorge Furtado

Fotografia Alex Sernambi

Música Leo Henkin

Produção Casa de Cinema de Porto Alegre.

Cor, 75 min

***

 

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *