A Estranha Passageira / Now, Voyager

3.0 out of 5.0 stars

A Estranha Passageira/Now, Voyager – um veículo para demonstrar e celebrar o talento de Bette Davis, na época uma das maiores estrelas do cinema – é um dos dramalhões mais clássicos da era dourada de Hollywood. Ao contrário de muitos outros classicões dos anos 30 e 40, no entanto, ele envelheceu muito, desde que foi lançado, em 1942.

Não tanto na forma: é um filme formalmente acadêmico, talvez acadêmico demais, até para quem, como eu hoje em dia, prefere uma boa narrativa tradicional. E as narrativas tradicionais, clássicas, acadêmicas, envelhecem muito pouco. Basicamente, A Estranha Passageira envelheceu muito por causa das profundas mudanças ocorridas, ao longo destes 70 anos, nas relações familiares, nas relações afetivas, no comportamento, na sociedade. É uma realidade muito antiga, eu diria até que muito difícil de ser compreendida pelos jovens de hoje, a mostrada no filme.

O tema básico de A Estranha Passageira são as relações familiares, em especial as relações entre pais e filhos, e como essas relações podem moldar as personalidades das pessoas.

Mostra a vida de uma mulher, Charlotte Vale, desde sua adolescência até a meia-idade – e aqui há a oportunidade mais que perfeita de mostrar Bette Davis com mil caras diferentes, mudando através das décadas e dos diversos estados de espírito.

A câmara faz suspense antes de, finalmente, mostra o rosto da grande estrela

Bette Davis era tão estrela, uma estrela tão gigantesca, que a câmara do diretor Irving Rapper demora a mostrar seu rosto. Primeiro mostra suas mãos – Charlotte está em seu quarto na gigantesca, oponente, até opressiva mansão da riquíssima família Vale, num dos bairros mais nobres da conservadora, tradicionalista Boston, enquanto, na sala de estar, lá embaixo, sua cunhada June (Bonita Granville) apresenta para a matriarca da família, Mrs. Henry Windle Vale (Gladys Cooper), um prestigiado, respeitado psiquiatra, o dr. Jaquith (Claude Rains, na foto acima).

A sra. Vale – o filme mostra isso desde as primeiras tomadas – é uma mulher dominadora, tirânica. Não demonstra qualquer simpatia pelo médico famoso, que veio de Nova York para conhecer sua filha. Ao contrário: diz a ele que não confia em médicos, e que nenhum Vale jamais precisou ser tratado como doente da cabeça.

E então a câmara mostra as mãos de Charlotte, sentada em seu quarto, diante de uma penteadeira.

Mandam um dos muitos criados da mansão chamá-la, e então ela começa a descer a bela escadaria que leva ao hall de entrada e à principal sala de estar. Mas a câmara ainda não mostra seu rosto. Focaliza-a da cintura para baixo.

Quando finalmente a câmara pela primeira vez mostra o rosto de Charlote Vale-Bette A Grande Estrela Davis, o que o espectador vê é uma mulher crispada, nervosa, com medo do mundo, quase catatônica.

A sra. Henry Windle Vale, com seu autoritarismo, sua força, seu apego a todas as regras e convenções sociais, por mais retrógadas que fossem, transformou a filha numa mulher insegura, apavorada, à beira de uma depressão, de uma crise nervosa.

Só mesmo uma atriz extraordinária para fazer uma jovem alegre de 18 anos e uma solteirona apavorada que aparenta 35

Não se diz explicitamente qual é a idade de Charlotte naquele momento, mostrado no início do filme, mas dá para imaginar que ela estivesse com cerca de 25, 28 anos – uma idade em que as moças ricas, de boas famílias, de Boston já estavam todas casadas. Charlotte é solteira, e considerada já uma solteirona – e sua aparência é de bem mais que essa idade. Oprimida pela mãe desde sempre, um feixe de nervos, aparenta ter mais de 35.

Veremos a Charlotte de 18 anos em um flashback, ainda no início da narrativa. Durante a visita do dr. Jaquith à mansão dos Vale, ele pede a ela que lhe mostre os aposentos, e consegue fazê-la apresentar seu quarto – o lugar em que ela passa a maior parte de seu tempo. Fragilizada, nervosa, em pânico, Charlotte conta para o psiquiatra um episódio de sua vida – e aí vemos o flashback.

A Charlotte de 18 anos viajava num grande transatlântico com a mãe. Era então uma jovem alegre, cheia de frescor, alegria de viver – e vivia um romance com um oficial do navio.

E, aqui, a observação que não pode deixar de ser feita: só uma gigantesca atriz como Bette Davis seria capaz de fazer ao mesmo tempo aquela solteirona apavorada que parecia ter 35 anos, uma garotinha de 18 e depois uma senhora beirando os 50. (No ano da lançamento do filme, a grande atriz estava com 34 anos.)

A sra. Vale descobre o romance, e proíbe terminantemente que a filha volte a ver o namorado.

Uma longa odisséia, com muita tristeza, motivos para muitas lágrimas dos espectadores

Apesar de toda a oposição da mãe, o dr. Jaquith consegue levar Charlotte para sua clínica, uma bela propriedade no campo. Após três meses de tratamento, ela já está bem melhor – embora ainda esteja insegura, com medo das pessoas. E então, por uma combinação feita entre o psiquiatra e June, a cunhada de Charlotte, consegue-se colocar aquela mulher sofrida dentro de um transatlântico, para uma longa viagem até a distante América do Sul.

Charlotte passa os primeiros dias da viagem trancada em sua cabine. Mas, numa parada no Caribe, tem que sair de seu casulo – e então conhece Jerry D. Durrance (o papel de Paul Henreid, que era apresentado no trailer do filme como um novo astro da Warner Bros.).

Estamos aí com uns 25, 30 minutos de filme. A odisséia de Charlotte Vale está ainda no início. Haverá uma sucessão enorme de fatos importantes na vida da heroína, daí em diante. Muita, muita tristeza, motivos para muita, muita lágrima das espectadoras.

Uma escritora que teve tremendo sucesso, com livros que viraram filmes e peças

O roteiro, de autoria de Casey Robinson, baseou-se no romance de Olive Higgins Prouty. Esse nome não nos diz nada hoje, mas Olive Hkiggins Prouty (1882-1974) teve imensa fama nos Estados Unidos, a partir do lançamento, em 1922, do romance Stella Dallas. Esse livro é outro dramalhão, que se espalha por várias décadas, sobre uma protagonista mulher, a Stella Dallas do título, que, como a Charlotte Vale de A Estranha Passageira, sofre demais, come o pão que o diabo amassou e, ao final, renuncia à sua própria felicidade em troca da felicidade de outra pessoa.

Stella Dallas virou peça de teatro em 1924, filme em 1925, depois novela radiofônica, uma das mais longas da história do rádio americano – durou 18 anos! E, em 1937, foi refilmado por King Vidor, com outra das maiores atrizes de Hollywood na época, Barbara Stanwyck, no papel central; o filme foi um sucesso fenomenal.

O romance Now, Voyager foi publicado em 1941, e também foi tremendo sucesso. Os direitos para o cinema foram comprados imediatamente pela Warner, e o filme chegou aos cinemas americanos no final de outubro de 1942.

Uma demonstração de como a repressão familiar pode acentuar a doença psíquica

Quando falei, no início deste texto, que o filme mostra uma realidade tão diferente da de hoje que os jovens provavelmente terão dificuldade de entendê-la, eu me referia à relação doentia, louca, entre a mãe super-autoritária e a filha que demora demais a se rebelar contra a dominação.

De fato, é difícil, hoje, acreditar que uma relação assim possa acontecer – pelo menos entre pessoas da classe média para cima, vivendo nos países ocidentais. Pelo menos desde os anos 50, os jovens passaram a ser cada mais rebeldes, independentes; e, em muitos casos, são eles que dominam os pais.

Apesar de mostrar uma relação hoje difícil de se imaginar entre a mãe dominadora e a filha espezinhada, o que torna o filme um tanto envelhecido, A Estranha Passageira tem características um tanto à frente de seu tempo. Faz uma defesa clara da psiquiatria, da possibilidade de melhora através do tratamento psiquiátrico, algo que, se hoje são favas contadas, na época ainda não era tanto, de forma alguma. A Wikipedia anota que Olive Higgins Prouty firmou-se como uma das pioneiras em defender a psicoterapia, no seu romance que deu origem ao filme.

Três décadas mais tarde, em 1971, o grande cineasta inglês Ken Loach fez um belíssimo filme, Vida em Família/Family Life, que mostra – assim como A Estranha Passageira – como a família pode piorar as condições psíquicas de um jovem, levando-o à loucura.

O filme antecipa essa denúncia, essa constatação, não só com a história de vida da própria Charlotte, quanto com a personagem Tina (Janis Wilson), a filha de Jerry, que, rejeitada pela mãe, torna-se totalmente insegura e vai parar na clínica do dr. Jaquith.

E o próprio romance entre Charlotte e Jerry, um homem casado, também era um tema bastante ousado para a época.

As sequências no Rio são ridículas, infames. Mas há belas tomadas da maravilhosa cidade

Duas ou três coisinhas mais.

A primeira é a coincidência de que, naquele mesmo ano de 1942, os atores Paul Henreid e Claude Rains se reuniriam em um outro filme – o glorioso Casablanca, de Michael Curtiz. Paul Henreid, como todo mundo sabe, faz Victor Laszlo, que irrompe no Rick’s Café Américain pertencente a Rick Blaine-Humphrey Bogart ao lado da esposa Ilsa-Ingrid Meu Deus do Céu e Também da Terra Bergman. E Claude Rains faz o cínico policial francês obediente ao governo títere de Vichy, o capitão Louis Renault.

O título original, Now, Voyager, vem um verso de Walt Whitman, de um poema que o dr. Jaquith entrega para Charlotte antes que ela deixe a clínica e embarque na viagem de navio que vai mudar totalmente a sua vida:

Now voyager sail thou forth to seek and find

Ou, traduzido sem absolutamente nada da força e da graça originais, “agora, viajante, veleje adiante, para procurar e encontrar”.

As sequências passadas no Brasil, no Rio de Janeiro, são sem dúvida alguma o ponto mais baixo do filme. São tão ridículas que dá preguiça de falar delas. Só para um rápido registro: o motorista de táxi que conduz Charlotte e Jerry por uma estrada de terra numa região montanhosa do Rio de Janeiro se chama Giuseppe, e fala numa estranhíssima mistura de português, espanhol e italiano. E, numa boate local, executa-se um bom bolerão mexicano.

Mas há belas tomadas do Pão de Açúcar e da Praia de Copacabana, e os dois personagens se mostram extasiados com a beleza da cidade.

O filme teve três indicações ao Oscar: melhor atriz para Bette Davis, melhor atriz coadjuvante para Gladys Cooper (que faz a mãe dominadora) e trilha sonora para Max Steiner. Só este último ganhou. Bette Davis e Gladys Cooper foram derrotadas, respectivamente, por Greer Garson e Teresa Wright, por Mrs. Miniver, no Brasil Rosa da Esperança, o filme mais premiado do ano – outro grande dramalhão, um esforço de guerra que mostra o dia-a-dia de uma família britânica durante a Segunda Guerra, que estava então no auge.

Uma última coisinha.

A cena mais antológica de A Estranha Passageira, que reaparece volta e meia naqueles belos clips que a Academia apresenta nas festas de entrega do Oscar, é quando Paul Henreid acende dois cigarros de uma vez só, para oferecer um a Bette Davis. Na verdade, esse gesto é repetido algumas vezes ao longo do filme.

Ao longo dos 117 minutos do filme, Bette Davis e Paul Henreid fumam uns dez pacotes de cigarros. Pelo menos.

Se algum adolescente vier a assistir Now, Voyager daqui a uns poucos anos, é bem possível que ele indague para os pais, curioso, o que são aqueles objetos cilíndricos levados à boca dos personagens.

Anotação em março de 2012

A Estranha Passageira/Now, Voyager

De Irving Rapper, EUA, 1942

Com Bette Davis (Charlotte Vale), Paul Henreid (Jerry D. Durrance), Claude Rains (Dr. Jaquith), Gladys Cooper (Mrs. Henry Windle Vale), Bonita Granville (June Vale), John Loder (Elliott Livingston), Ilka Chase (Lisa Vale), Janis Wilson (Tina Durrance)

Roteiro Casey Robinson

Baseado no romance de Olive Higgins Prouty

Fotografia Sol Polito

Música Max Steiner

Montagem Warren Low

Produção Hal B. Wallis, Warner Bros. DVD Continental

P&B, 117 min

***

7 Comentários para “A Estranha Passageira / Now, Voyager”

  1. Parabéns, Sérgio Vaz, pela excelente análise do filme A Estranha Passageira. Entendo – do ponto de vista feminino – que esse tipo de relação “castradora” entre uma mãe dominadora e uma filha submissa não seja tão “jurássica” assim. Por outro lado, aquele motorista de táxi do RJ revela bem como os americanos desconhecem geograficamente tudo que está abaixo do seus umbigos. Mais uma vez, gosto muito da clareza e do capricho de seus textos.

  2. Sérgio, gostei bastante deste filme mas n babei. preferes este ou A Herdeira/Tarde demais? eu a herdeira, de longe

  3. é estranho eu ter me identificado tanto com uma personagem de um filme de mais de 80 anos? Como uma moça já falou nos comentários ao contrário do que você pensa esse tipo de relação entre e mãe e filha é ainda bem comum a única diferença é que talvez agora soe mais sutil. Chorei em vários momentos. Foi tão lindo ver as duas, Tina e Charlotte, crescendo e se curando dos traumas causados pelos pais. E de novo, mais de 80 anos mas ainda tão atual na vida de toda mulher que tem que cuidar dos pais doentes, mesmo tendo irmãos, que passou dos 35 e ainda é solteira, que não tem filhos, mais de 80 anos e pouco coisa mudou como pode?

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