A Chave de Sarah é uma violenta paulada na consciência dos franceses. Um corte feito com peixeira afiada bem em cima da ferida que a nação da liberdade igualdade fraternidade gostaria muito de esquecer que existiu.
O filme de Gilles Paquet-Brenner, lançado em 2010, enfia a peixeira lá e remexe, remexe fundo a chaga, sem qualquer dó, piedade, anestesia.
Trata de um dos episódios mais vergonhosos de toda a história da França, se não o mais vergonhoso: nos dias 16 e 17 de julho de 1942, a polícia francesa, a mando do governo títere de Vichy, prendeu mais de 13 mil judeus em Paris; amontoou essa multidão de pessoas no Velódromo de Inverno, e dias depois a entregou aos nazistas. Quase todas aquelas mais de dez mil pessoas – o número exato é 13.152 – seriam meses mais tarde assassinadas em campos de extermínio na Polônia.
No mesmo ano de 2010 foi lançado outro filme sobre o mesmo episódio, que passou a ser conhecido como Rafle du Vélodrome d’Hiver, ou simplesmente rafle du Vel’ d’Hiv. Esse outro filme, no original La Rafle, ou detenção em massa, no Brasil Amor e Ódio, foi dirigido por Rose Bosch; produção cara, bem cuidadíssima, reuniu no elenco dois dos atores mais populares do cinema francês de hoje, Jean Reno e Gad Elmaleh, e uma de suas jovens estrelas em maior ascensão, Mélanie Laurent. Reconstitui os acontecimentos dos dias trágicos, as prisões, e as condições absolutamente desumanas em que aquela multidão de inocentes ficou encarcerada no Velódromo, no auge do verão, num calor intoxicante, sem as mínimas condições de higiene, salubridade.
A Chave de Sarah se baseia num romance lançado em 2006, de autoria da escritora e jornalista Tatiana de Rosnay, cujo título original é o mesmo do filme: Elle s’appelait Sarah, ela se chamava Sarah. No final de 2009, haviam sido vendidos mais de dois milhões de exemplares do livro em todo o mundo.
O livro conta, em paralelo, duas histórias. Uma se passa em 1942, nos dias da detenção em massa no Velódromo; outra acontece em 2002. Na adaptação para o cinema, feita pelo próprio diretor Gilles Paquet-Brenner e pelo co-roteirista Serge Joncour, a história recente se dá em 2009.
A Paris ocupada pelos nazistas, a Paris gloriosa de hoje. As duas histórias vão sendo contadas em paralelo ao longo de todo o filme.
A garotinha Sarah esconde o irmão menor no armário
A protagonista da história de 1942 é a Sarah dos títulos, tanto o original quanto o brasileiro. Sarah Starzynski, garota aí de uns 10, 12 anos, é interpretada por Mélusine Mayance (na foto acima). As primeiras tomadas do filme a mostram brincando na cama com o irmãozinho mais novo, Michel (Paul Mercier). São aquelas tomadas lindas, idílicas, que costumam preceder grandes tragédias – e rapidamente a tragédia chega, na pele de um grupo de soldados que entra no apartamento da família Starzynski e dá ordens para que todos façam malas pequenas, levando apenas o fundamental. Enquanto a mãe de Sarah (Natasha Mashkevich, na foto) enfrenta, chocada, sem ter como reagir, a invasão da soldadesca, a garotinha leva o irmão para se esconder em um armário construído atrás de uma parede falsa.
Vê-se que Sarah e Michel brincavam de esconde-esconde naquele lugar. Sarah coloca o irmão lá e o faz prometer que não tentará sair até que ela venha abrir a porta. Tranca a porta com a chave, e a guarda.
Pouco depois, Sarah estará com a mãe e o pai (interpretado por Arben Bajraktaraj) no Velódromo de Inverno, em meio a milhares de outras famílias igualmente arrancadas de seus lares pelos policiais. E é só lá, já naquela prisão improvisada, que a garotinha percebe que, na sua tentativa de salvar o irmãozinho, pode ter selado seu destino. Passará todos os dias, a partir daí, com a idéia fixa de voltar para casa e abrir a porta do esconderijo, libertar seu irmão.
Em 2009, está em reforma o imóvel que tinha sido da família de Sarah
A protagonista da história de 2009 é Julia Jarmond – o papel da sempre maravilhosa, extraordinária Kristin Scott Thomas. Julia é americana de nascimento, mas está há muitos anos radicada na França, casada com um francês, Bertrand Tezac (Frédéric Pierrot); têm uma filha entrando na adolescência. Julia é jornalista, trabalha numa revista independente, editada em Paris por americanos e ingleses. Tem especial interesse em recontar os acontecimentos da rafle du Vel’ d’Hiv, sobre os quais pouco se sabe. Numa reunião de pauta na revista, um dos colaboradores, um americano jovem, estranha que aquele episódio – e Julia refere-se a ele dessa forma abreviada, Vel’ d’Hiv – não tenha sido largamente documentado em fotos e filmes, já que os nazistas sempre documentaram tudo o que fizeram nas diversas nações européias que ocuparam. O diálogo acontece bem no início do filme. Há um silêncio na sala onde funciona a pequena redação, e cabe a Julia fazer o esclarecimento:
– “Não, você não entendeu. Não foram os alemães. Foram os franceses.”
A ligação de Julia com a vergonha nacional francesa do Vel’ d’Hiv será mais profunda do que ela mesma poderia imaginar.
Bertrand, seu marido, um arquiteto, está fazendo uma profunda reforma no apartamento da família Tezac no bairro de Marais, hoje elegantérrimo, carésimo, na época da Guerra nem tanto. Nos apartamentos do Marais, na época da Guerra, viviam muitas famílias judias da classe média. Famílias que foram levadas à força, naqueles dias 16 e 17 de julho de 1942, para o Velódromo.
Claro: o apartamento da família Tezac, que Bertrand está agora reformando, cujas paredes estão sendo quebradas, é o apartamento em que, até a rafle du Vel’ d’Hiv, era da família Starzynski.
Os imóveis passaram a pertencer a franceses não judeus
E aqui a peixeira afiada criada pela escritora Tatiana De Rosnay e recriada na tela por Gilles Paquet-Brenner afunda-se ainda mais na ferida mal cicatrizada na consciência dos franceses. A peixeira afunda-se mais, e é revirada, e virada de novo.
Depois que os judeus foram retirados de seus lares parisienses, enviados para o Velódromo e daí para os campos de concentração, aqueles imóveis passaram a pertencer a franceses não judeus. Gente normal, comum, como o avô de Bertrand, o marido de Julia, a jornalista que pesquisa as histórias da prisão em massa de 1942.
A pesquisa que Julia vinha fazendo, sobre um episódio histórico, passa então a ter elementos muito próximos dela mesma, de seu marido. Pesquisas nos centros pela memória do Holocausto a levarão aos Starzynski, a Sarah.
Belíssimas interpretações das atrizes
O elenco está homogeneamente bem dirigido, e todos os aspectos técnicos do filme são soberbos. Mas as interpretações das duas atrizes que fazem as protagonistas, Mélusine Mayance e Kristin Scott Thomas, se sobressaem.
Essa garotinha é um espanto. Tinha feito filmes e séries de TV; este foi seu primeiro filme para o cinema. Muitos atores mirins acabam se perdendo pelo meio do caminho, e não mantendo uma carreira regular quando mais velhos. Não dá para saber o que acontecerá com Mélusine Mayance, mas, neste filme aqui, ela está soberba.
E Kristin Scott Thomas… Kristin Scott Thomas é uma dádiva.
Há diversos momentos em que a vemos em close-up, ao longo do filme, com uma expressão de profunda, profunda, profunda tristeza diante do que seu personagem está enfrentando. Só por esses momentos já valeria a pena ver este filme.
Uma coisa marcante é a moça escolhida para fazer a Sarah adulta – jovem, mas já saída da adolescência. Chama-se Charlotte Poutrel, e este foi apenas o segundo filme em que apareceu. Sua participação é rápida, curta; não dá para saber se a moça tem talento – mas sua beleza é espantosa.
Fiquei com a sensação de que a história acaba se alongando demais, na parte passada nos dias de hoje. Me pareceu um pequeno defeito de um filme muito bom.
“A França entregou seus protegidos aos carrascos”
O outro filme feito no mesmo ano de 2010 sobre as prisões em massa no Velódromo de Inverno, Amor e Ódio, não me deixou boa lembrança. Achei maniqueísta demais. Pouca arte e muita propaganda sionista.
A Chave de Sarah é completamente diferente. Vai fundo no panfleto contra o horror do Holocausto, mas sem apelações, sem forçar o sentimentalismo. E sua principal preocupação parece ser de fato lembrar que aquela tragédia não foi perpetrada diretamente pelos nazistas, e sim pelos franceses.
Quando vimos Amor e Ódio, Mary e eu nos perguntamos por que nunca tínhamos ouvido falar do Velódromo de Inverno, nunca tínhamos visto fotos do prédio. Paris é uma cidade que mantém sua arquiquetura praticamente intocável – os mesmos prédios que havia no início do século XX estão lá idênticos.
A Chave de Sarah dá a explicação: o prédio do velódromo foi demolido, várias décadas atrás – o filme não explicita, mas a demolição ocorreu em 1959. Como se, demolindo a estrutura, fosse mais fácil esquecer a tragédia que o prédio protagonizou.
No filme, Julia mostra a localização exata do prédio. Ficava onde fica hoje o Ministério do Interior – e Julia-Kristin Scott Thomas não deixa de explicitar a ironia.
Nas proximidades do local, no Quai de Grenelle, existe hoje a Place des Martyrs-Juifs-du-Vélodrome-d’Hiver. Há um monumento em memória desses mártires, e ali, diante do monumento, em 16 de julho de 1995, o então presidente Jacques Chirac fez um pronunciamento reconhecendo a culpa da França no episódio. “A França, pátria das Luzes e dos Direitos do Homem, terra do acolhimento e do asilo, a França, hoje, cometeu o irreparável. Faltando à sua palavra, ela entregou seus protegidos aos carrascos.”
Anotação em fevereiro de 2012
A Chave de Sarah/Elle s’appelait Sarah
De Gilles Paquet-Brenner, França, 2010
Com Kristin Scott Thomas (Julia Jarmond), Mélusine Mayance (Sarah Starzynski), Niels Arestrup (Jules Dufaure), Frédéric Pierrot (Bertrand Tezac), Michel Duchaussoy (Édouard Tezac), Dominique Frot (Geneviève Dufaure), Natasha Mashkevich (Madame Starzynski), Gisèle Casadesus (Mamé), Arben Bajraktaraj (Starzynski, o pai), Charlotte Poutrel (Sarah adulta), Aidan Quinn (William Rainsferd), Sarah Ber (Rachel)
Roteiro Serge Joncour e Gilles Paquet-Brenner
Baseado no romance de Tatiana De Rosnay
Fotografia Pascal Ridao
Música Max Richter
Produção Hugo Productions, Studio 37, TF1 Droits Audiovisuels, France 2 Cinéma, Canal+. Blu-ray e DVD Imagem Filmes.
Cor, 111 min
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Título em inglês: Sarah’s Key
Mas Sérgio, q coincidência, postei ontem um post(redundância)justamente sobre A Chave de Sarah e o colaboracionismo francês com os nazistas no meu site http://www.pesquisaerorschach! Todos gostaram muito, inclusive por que aborda esse período vergonhoso da história de uma França q viveu a Revolução Francesa e q os pp franceses parecem ignorar, imagine os brasileiros, cuja memória é fraca até para episódios nacionais. Inclusive vc não mencionou, devem ser os spoilers, mas tem uma parte psicológica q coloquei no meu post em relação às conseqÜências da morte do irmão no psiquismo de Sarah fascinante, assim como a reação do filho de Sarah quando descobre a verdade sobre a mãe, tudo muito bem urdido. E o final do filme é muito lindo e sensível, até chorei. Agora vc viu o final do meu post, quando coloquei em brios os franceses questionando essa nódoa na história deles, citando a Marselhaise?Allons enfants…um hino tão corajoso e uma fraqueza vergonhosa!
Guenia
http://www.sospesquisaerorschach.com.br
História sensacional. Eu daria nota 4.
Adorei o filme tbm, Sergio, vi hj aliás!
A Scott Thomas é sempre incrível, nunca excessiva, nunca exagerada, e mesmo assim é a melhor atriz de quem eu possa lembrar. Eu nao conhecia essa parte da história, e achei o filme, no mínimo, corajoso.
É difícil de engolir esse episódio na história da França. Tôda guerra é uma coisa imunda. Gostei muito deste filme. De fato, a
menina que fez a Sara, é fantástica, um “desbunde”,e a Kristin Scott como sempre,
está maravilhosa.
Achei que deram uma importância excessiva aos dramas da personagem de Kristin que não tem relevância com a história.
Também assisti “Amor e Ódio” e, não obstante tua observação, Sergio, gostei do filme, também porque tem a presença marcante da Mélanie Laurent.
A Guenia tem razão, a França com um hino tão lindo, tão vibrante, arrepia, acho o mais bonito de todos e, com essa vergonha na história . . .
Tem uma base de quanto tempo depois sara consegue voltar para Paris?