4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2011: Um grande filme, e um filme extremamente importante, que demonstra, tintim por tintim, como a motivação usada por George W. Bush para invadir o Iraque em 2003 era uma grande falácia – e, de quebra, exibe as divisões entre os vários agentes americanos em ação em Bagdá.
O diretor Paul Greengrass, que já havia reconstituído, quase como se fosse um documentário, o que aconteceu dentro de um dos aviões tomados pelos terroristas no 11 de setembro, em Vôo United 93, mostra, de forma extremamente realista, o trabalho de uma equipe de soldados americanos que, logo após a invasão do Iraque em 2003, procurava as tais armas químicas de destruição em massa que Sadam Hussein possuiria, o motivo alegado por Bush para invadir o país. Como se sabe – e quem se esqueceu disso deveria ser relembrado sempre –, simplesmente não existiam armas químicas de destruição em massa. Era só um pretexto, e um pretexto falso, mentiroso.
Mas Greengrass não pára aí. Vai fundo no desnudamento dos desencontros, rixas, rivalidades entre representantes do Departamento de Defesa, o Pentágono, e a CIA – e expõe de maneira clara como, uma vez invadido o Iraque, a tal coalização liderada pelos Estados Unidos simplesmente não sabia o que fazer com aquela realidade complexa de um país de cultura que o Ocidente desconhece, profundamente dividido entre três grandes grupos étnicos rivais, sem lideranças políticas fortes após década de ditadura férrea de Sadam Hussein.
Não se encontra sequer uma bombinha de São João
O protagonista é Roy Miller, o chefe de uma das equipes formadas pelo exército americano para encontrar os depósitos de armas químicas. Ele é interpretado por Matt Damon, esse bom ator que tem tido uns três ou quatro papéis por ano em filmes de diretores importantes, nos últimos anos. O Roy Miller que ele compõe é assim uma mistura de homem comum, de boa fé e bons princípios, com um super-herói bem treinadíssimo – um tanto parecido com o agente Jason Bourne que ele interpretou na trilogia Bourne. E não é por acaso que dois desses três filmes foram dirigidos por Paul Greengrass.
Miller tem vários homens sob seu comando; sua unidade é extremamente bem equipada; toma decisões no calor dos acontecimentos, no meio da zorra, da confusão incrível que era a Bagdá duas semanas após a invasão pelas tropas americanas e da coalização liderada pelos Estados Unidos; muitas vezes suas decisões são corajosas demais, seus inferiores reclamam, protestam, mas Miller segue em frente. Mostrará uma desenvoltura, uma independência em relação aos superiores que é espantosa.
Às vezes Miller é chamado de subtenente, o que tecnicamente é seu posto – mas, ali, o chief warrant officer não é apenas um simples militar, é o chefe de uma equipe especialmente treinada, com conhecimento de armas químicas, e de química.
A equipe de Miller recebe informes detalhados, vindo dos serviços de inteligência, sobre a localização de depósitos das perigosíssimas armas químicas de destruição em massa – mas, quando invadem esses locais, às vezes após duro enfrentamento com franco-atiradores, Miller e seus homens não acham coisa alguma, sequer uma bombinha de São João. Com 15 minutos de filme, Miller já está questionando seriamente os informes criados pelos serviços de inteligência.
Americanos em posições opostas, antagônicas
Posição semelhante à dele tem Martin Brown (Brendan Gleeson, na foto abaixo), veteraníssimo agente da CIA, com décadas de experiência em Oriente Médio. Martin está plenamente convencido de que os homens que dirigem a invasão do Iraque, tanto os militares quanto os civis, os assessores diretores do secretário de Defesa e da própria Presidência, não entendem coisa alguma do que acontece ali, da relação de forças entre xiitas e sunitas. Sabe que o único jeito de alguma coisa dar certo é entregar o poder para os próprios iraquianos, mesmo que entre eles haja os que antes apoiavam o regime de Sadam Hussein, como o general Al Rawi (Igal Naor).
Do outro lado, no extremo do outro lado, defendendo pontos de vista opostos, está Clark Poundstone (Greg Kinnear), assessor direto da Casa Branca. Poundstone garante que há depósitos de armas proibidas, garante que as fontes dos serviços de informação são as mais confiáveis possíveis.
No meio do fogo cruzado das ruas de Bagdá e do fogo cruzado de funcionários americanos de posições opostas, é fácil para o espectador compreender que Poudstone é o bad guy, o bandido, o operador das besteiras de George W. Bush-Dick Chenney. Para facilitar ainda mais essa compreensão do espectador, o filme mostra que esse Poudstone é o sujeito que andou fornecendo informações sobre a localização dos – inexistentes – depósitos de armas químicas a Lawrie Dayne (Amy Ryan, na foto mais abaixo), uma repórter do importantíssimo The Wall Street Journal que, infelizmente, não cumpre a obrigação básica de checar as informações dadas por suas fontes.
Uma história de ficção calcada em fatos e situações reais
O autor do roteiro de Zona Verde é Brian Helgeland, sujeito de grande competência. Foi o co-autor do roteiro de Los Angeles – Cidade Proibida, o belo policial noir-em cores fortes de Curtis Hanson. Foi o autor dos roteiros de dois filmes de Clint Eastwood, Dívida de Sangue/Blood Work, de 2002, e do extraordinário Sobre Meninos e Lobos/Mystic River, de 2003.
Para fazer o excelente roteiro deste filme, Helgeland baseou-se na obra Imperial Life in the Emerald City: Inside Iraq’s Green Zone, de autoria de Rajiv Chandrasekaran, um jornalista que foi chefe do escritório do Washington Post em Bagdá, e esteve presente quando as forças americanas tomaram o palácio que havia pertencido a Sadam Hussein e tentaram ali criar um governo provisório no Iraque.
É uma ficção, é claro, os personagens e as situações são fictícias. Só que tudo tem muito a ver com fatos e personagens e situações reais.
O chief warrant officer Roy Miller, o personagem de Matt Damon, por exemplo, foi inspirado em um personagem real, que fez exatamente aquele trabalho que Roy Miller faz – Monty González, em 2003, era um chief warrant officer à procura das armas de destruição em massa de Sadam. O próprio Monty González foi consultor técnico do filme, participou das filmagens (realizadas principalmente no Marrocos, mas também na Espanha).
Para realçar ainda mais esse clima realista, quase de reconstituição de fatos reais, a produção do filme contratou, para interpretar muitos dos militares americanos em ação, entre eles os homens de Roy Miller, dezenas de militares agora fora da ativa que estavam nas ruas de Bagdá em 2003, logo após a invasão, ou que passaram pelo Afganistão.
Desde já, um dos filmes definitivos sobre a invasão do Iraque
O filme é extraordinariamente bem feito. Toda a sequência inicial – o grupo de Ray Miller avançando nas ruas de Bagdá até um local que havia sido identificado como depósito de armas químicas, defendido por um franco-atirador – é feita com câmara de mão, um trabalho brilhante, que dá a sensação de que estamos de fato no meio daquela cidade milenar transformada em praça de guerra.
Mais tarde, para mostrar a ação do grupo de Ray Miller atrás do general Al Rawi, com um impressionante grupo de soldados em tanques e helicópteros atrás de Miller e do general iraquiano, com ordens expressas de matar, o diretor Paul Greengrass usou toda a sua experiência em dois dos filmes da trilogia Bourne. Mistura cenas aéreas com tomadas das ruas sujas, estreitas, miseráveis de Bagdá à noite.
Sabe o que está fazendo. Começou a carreira como um documentarista, cobrindo conflitos em diversos países.
Ele criou uma espécie de filme Bourne com alma, com sentido, com denúncia grave, pesada, um retrato da realidade. É, de fato, um filme extraordinário.
Minha opinião é de que é um filme em tudo superior ao tão endeusado e oscarizado Guerra ao Terror/The Hurt Locker, de Kathryn Bigelow, de 2008. Ainda se farão, é claro, dezenas e dezenas de filmes sobre a desventura americana no Iraque, e é bom que se faça, mas a sensação que se tem é de este aqui será sempre um dos definitivos. Algo assim como Apocalypse Now e Nascido para Matar/Full Metal Jacket foram para a guerra do Vietnã.
No título do filme, uma ironia trágica
O título do filme, Zona Verde, tradução literal do original, parece uma imensa, trágica ironia. Zona Verde era o perímetro central bem defendidíssimo, com segurança máxima, onde as forças de ocupação se concentraram, em torno do tal palácio de Sadam, que é reconstituído no filme. Há algumas sequências que se passam no coração da Zona Verde, como a da foto, em que Ray Miller encontra a jornalista do Wall Street Journal. É uma seqüência brilhante. Ray Miller anda ao lado da imensa piscina onde mulheres de altos funcionários se divertem como se estivessem em algum country club das cercanias de Washington, enquanto, em volta desse oásis, a capital e todo o país estão imersos no mais profundo caos.
A imensa maior parte do filme não se passa na Zona Verde, e sim nas vias e ruelas sem cor de uma grande cidade em clima de guerra civil.
Um panfleto com roupagem de filme de ação para as massas
No making of que acompanha o filme no DVD, vários atores dizem que a intenção do filme não é apontar culpados, não é denunciar esta ou aquela decisão política. Parece coisa de político que a vida inteira defendeu coisas corretas, como o direito ao aborto, mas, na hora da eleição, com medo de perder voto dos religiosos, nega as evidências e seu próprio passado.
O filme é um panfleto contra a invasão do Iraque, contra as decisões da dupla Bush-Chenney, uma denúncia clara, nítida, da grande mentira a respeito das armas de destruição em massa.
Ao mesmo tempo, porém, é, como diz Matt Damon no making of, um filme de grande orçamento, voltado para as grandes audiências, “a popcorn movie”, como ele classifica – o típico do filme feito para atrair multidões de pessoas comendo pipoca. Se não conseguir atrai-las, dará um prejuízo imenso.
Vejo agora no Box Office Mojo que o filme teve um orçamento de US$ 100 milhões. Uma fortuna, é claro – há muitos bons filmes independentes americanos que custam cinco, até dez vezes menos que isso. Mas longe do custo de muitas outras grandes produções. Homem Aranha 3, só para dar um exemplo, custou US$ 258 milhões – e rendeu US$ 890 milhões.
Zona Verde estreou nos Estados Unidos um ano atrás, em março de 2010. Ao longo de um ano, arrecadou US$ 35 milhões no mercado americano, US$ 94 milhões no total, no mundo todo. Para se pagar e dar lucro, um filme precisa render umas duas vezes o que custou.
Os números confirmam a minha impressão inicial. É um filme que pode perfeitamente ser visto e apreciado por gente que gosta de ação, de guerra, grandes espetáculos – mas não chega a ser “a popcorn movie”. É sério demais para isso.
Não dá para comparar o Iraque de 2003 com a Líbia de 2011
Como Mary e eu vimos o filme exatamente no fim de semana em que forças dos Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália e Canadá iniciaram os ataques militares à Líbia, é impossível não fazer uma comparação com os fatos do Iraque em 2003.
São, na minha opinião, duas coisas extremamente distintas.
A invasão do Iraque de Sadam Hussein foi uma decisão que partiu do governo Bush; houve apoio da Grã-Bretanha e de outros países europeus, mas foi uma decisão tomada pelo governo dos Estados Unidos – e a partir de um falso pretexto, a existência clandestina de estoques de armas biológicas de destruição em massa.
Os ataques à Líbia de Kadafi vieram depois que o país já vivia de fato uma situação de guerra civil; as forças do ditador estavam matando milhares de líbios. As ações foram aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU e pela própria Liga Árabe. Havia a oposição da Rússia, não havia apoio da Alemanha, mas os ataques foram feitos por forças dos EUA, da França, do Canadá, da Inglaterra, da Itália. Outros países entrariam para o grupo nos dias seguintes.
A invasão do Iraque foi uma decisão imperial de um governo tragicamente incompetente. O ataque às forças de Kadafi é uma decisão arriscada, perigosa, mas, segundo muita gente, inclusive o Conselho de Segurança da ONU, necessária.
São duas situações completamente diferentes. Comparar os EUA de George Bush aos EUA de Barack Obama é um absurdo. É ignorância – ou má fé.
Zona Verde/Greeen Zone
De Paul Greengrass, EUA-França-Espanha-Inglaterra, 2010
Com Matt Damon (Roy Miller), Greg Kinnear (Clark Poundstone), Brendan Gleeson (Martin Brown), Amy Ryan (Lawrie Dayne), Khalid Abdalla (Freddy), Jason Isaacs (Briggs), Igal Naor (Al Rawi)
Said Faraj (Seyyed Hamza)
Roteiro Brian Helgeland
Baseado no livro Imperial Life in the Emerald City, de Rajiv Chandrasekaran
Fotografia Barry Ackroyd
Música John Powell
Montagem Christopher Rouse
Produção Working Title, Universal Pictures, Studio Canal, Relativity Media, Antena 3 Films. DVD Universal
Cor, 115 min
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“Zona Verde” é muito melhor que “Guerra ao Terror”, sem dúvidas, porque não comete o erro de abordar o conflito do Iraque de forma apolítica – sem posicionamento, sem crítica nenhuma. Guerra ao Terror jamais aborda a questão central do conflito: a sua absurda gratuidade e falsidade, o fato de ser uma guerra motivada por mentiras. Isso é o que precisa ser dito, com toda força, e “Zona Verde” o diz.
Eu penso que o filme estará bem feito mas aborreço-me de morte com este tipo de filmes sobre a guerra do Iraque.
olá, Sérgio! Mais uma voltinha pelo seu site e minha lista de desejos de ver e rever só vai aumentando! Este filme é muito bom – gosto de filmes de guerra – muito melhor que Guerra ao terror, como disseram. Vale ver.