Anotação em 2011: Todo mundo que viu Vincere deveria ver o DVD, lançado no Brasil pela Imovision. Ele traz como extra um belíssimo documentário, de cerca de uma hora de duração, Mussolini, Segredo de Família, que, com base em ampla pesquisa e diversas entrevistas, conta a verdadeira história de Ida Dalser, a amante de Mussolini, e de seu filho Benito Albino, que inspirou o filme do veterano Marco Bellocchio.
Poucos filmes foram tão incensados, nos últimos anos, quanto Vincere – e não é à toa. O filme é de fato extraordinário, excepcional, em muitos aspectos. Entre eles, uma interpretação absolutamente magistral, estonteante, emocionante de Giovanna Mezzogiorno, no papel da trágica Ida Dalser.
É genial a forma com que Bellocchio e sua montadora Francesca Calvelli mesclaram seu filme com trechos de documentários, cinejornais da época retratada – as primeiras décadas do século XX, de 1907, quando o então jovem Benito Mussolini se encontrou pela primeira vez com Ida Dalser, até a derrota do fascismo em 1945.
É uma bela sacada mostrar Mussolini, a partir da ascensão do fascismo ao poder, no início dos anos 20, não mais na figura do ator Filippo Timi – e sim apenas na figura real do ditador, em trechos de filmes da época. Assim como é inteligente a idéia de colocar o mesmo ator Filippo Timi, que faz o Mussolini jovem, para interpretar o filho, Benito Albino.
A trilha sonora é também de um brilho acachapante. É de autoria de Carlo Crivelli, um compositor veterano, que já musicou 30 filmes.
Diversas seqüências têm uma beleza visual extraordinária, de imenso impacto. A direção de fotografia é de Daniele Cipri.
O próprio Bellocchio se assinou como autor do argumento; o roteiro, ele dividiu com Daniela Ceselli. Nos créditos finais, em letrinhas miúdas, é dito que o filme é “livremente inspirado no livro Il Figlio Segreto del Duce, de Alfredo Pieroni”. Imagino que o livro deva ter sido escrito com base em grande pesquisa histórica – apesar de o regime fascista ter tentado esconder o caso, há fartíssima documentação sobre a relação entre Mussolini e Ida Dalser, sobre a vida dela e a do filho dos dois, conforme podemos ver no documentário Mussolini, Segredo de Família.
Uma metáfora de como Mussolini seduziu a Itália
Mas tudo indica que Bellocchio, deliberadamente, não quis levar para as telas um registro fiel dos fatos históricos – o livro, os fatos reais foram apenas, como está dito nos créditos finais, uma fonte de inspiração. O que interessava a Bellocchio, parece, era pegar o sumo, o espírito, o significado dos acontecimentos reais, a história familiar, privada, para criar sua obra – uma metáfora sobre como Mussolini seduziu a Itália, a imensa maior parte dos italianos, provavelmente mais até mais que 83% deles.
Em termos grosseiros, chulos, mas verdadeiros (a verdade às vezes é grosseira, chula): uma metáfora sobre como Mussolini seduziu a Itália, usou em benefício próprio tudo o que a Itália podia lhe dar, fodeu-a, enganou-a e depois abandonou-a à sua própria sorte, deixando, ao fim de sua aventura louca, horripilante, um país em ruínas.
O filme de Bellocchio quase poderia ter o mesmo título de uma obra de Pietro Germi, de 1964, o ano do golpe militar no Brasil: Seduzida e Abandonada. Sedotta e Abbandonata.
É o que os ditadores fazem, todos eles: seduzem, usurpam, fodem, enganam e, quando saem de cena, só deixam ruínas.
Giovanna Mezzogiorno é jovem, mas já é uma deusa, como Stefania, Sophia, Claudia
Quando Stefania Sandrelli fez o papel de Agnese, uma adolescente siciliana que é seduzida e abandonada pelo noivo de sua irmã, no filme de Pietro Germi, ela era uma garotinha – linda, maravilhosa – de 18 anos. Não era uma novata – tinha feito oito filmes, antes, mas foi com Seduzida e Abandonada que começou a virar uma estrela. A competição era duríssima, naquela primeira metade dos anos 60: a Itália tinha constelações e constelações de estrelas, Anna Magnani, Silvana Mangano, Giuletta Masina, Sophia Loren, Claudia Cardinale, Monica Vitti, Alida Valli, Pier Angeli, Gina Lollobrigida, Virni Lisi. Eram belíssimas, quase todas são imensas para sempre, mas, para mim, Stefania Sandrelli sempre foi uma grande deusa, das maiores.
Giovanna Mezzogiorno é, como Stefania Sandrelli, uma deusa. Sua beleza é um espanto, um encanto, a perfeição absoluta – nem Michelangelo conseguiria esculpir um rosto como o dessa atriz de imenso talento, uma romana nascida em 1974. Quem ainda não viu A Janela da Frente/La Finestra di Fronte, de 2003, do cineasta italiano de origem turca Ferzan Ozpetek, deveria ver. É um belo filme, e nele Giovanna mostra sua beleza e seu talento. Mas ela se suplanta em La Bestia nel Cuore, de 2005, de Cristina Comencini, filha do veterano Luigi Comencini – no Brasil, o filme teve dois títulos, A Fera no Coração e Segredos do Coração. É um filmaço, uma maravilha, e a interpretação de Giovanna é de babar, de aplaudir de pé como na ópera.
Parecia difícil que ela conseguisse se suplantar depois de La Bestia nel Cuore. Em 2007 tropeçou feio na versão cinematográfica de O Amor nos Tempos do Cólera como a Fermina Urbino criada por Gabriel Garcia Márquez – mas, tadinha, não era culpa dela. Todo o filme é um gigantesco tropeço, uma bobagem, um desperdício, provavelmente o pior filme jamais feito com base em um romance brilhante.
Pois em Vincere, interpretando a trágica Ida Dalser, Giovanna Mezzogiorno nos presenteia com uma das mais fascinantes atuações da história. É uma coisa marcante demais, inesquecível – como Helen Mirren como Elizabeth II em A Rainha, como Marion Cotillard em Piaf – Um Hino ao Amor.
Um cineasta septuagenário que filma como garoto rebelde
Aos 71 anos, Bellocchio ainda filma como um garoto rebelde. Sua câmara é agitada, nervosa, rápida – sobretudo na meia hora inicial do filme. Como muitos bons diretores italianos, tem cuidado especial com a iluminação – quando mostra ambientes pouco iluminados, mostra ambientes pouco iluminados mesmo. Não é como em alguns filmes do cinemão comercial americano, em que se acende uma vela num aposento escuro e bum – fiat lux!, tudo fica claríssimo como ao sol do Saara, ou do Rio de Janeiro, o que dá mais ou menos no mesmo. Na primeira seqüência do filme, vemos o rosto de Giovanna Mezzogiorno, que ainda não sabemos que é Ida Dalser – mas a tomada é bem rápida, e se está dentro de um cômodo coalhado de gente, sem muita iluminação. Com uns 20 minutos de filme, pensei que ainda não tinha havido um close-up de mais de 15 segundos mostrando a extraordinária beleza da atriz.
O rosto de Giovanna Mezzogiorno-Ida Dalser passa por grandes transformações, ao longo dos 128 minutos de Vincere. O espectador a vê bem vestida, bem cuidada, linda, imaculada; depois a vê ferida fisicamente, espancada pela polícia a mando dos fascistas; depois a vê louca de dor, de desespero, de infelicidade, de revolta. Há momentos em que o rosto dela espelha loucura, loucura mesmo, no sentido estrito.
Já se passou bem mais da metade do filme, no entanto, quando a câmara de Bellocchio e de seu fotógrafo Daniele Ciprì finalmente se pousa sobre o rosto da protagonista, em close-up, e fica ali longamente. Dentro do hospício em que foi internada à força, por sua insistência em proclamar ao mundo que é a mãe do filho primogênito do Duce, do chefe do governo do país, e é sua esposa legítima, Ida Dalser é levada para um interrogatório. Não fica absolutamente claro se o homem que a interroga é um psiquiatra, um juiz, um policial, mas de qualquer maneira o espectador sabe, assim como Ida Dalser sabe, que aquele interrogador, seja lá o que for, é um preposto do fascismo, está ali a mando do Duce, ou de algum de seus lambe-botas. Sua missão, a rigor, é extrair daquela mulher internada como louca, histérica, perigosa, a confissão de onde estão os documentos que comprovam sua afirmação, repetida há anos, de que Mussolini se casou com ela. Talvez até obter dela a confissão de onde está o documento que Mussolini havia assinado, bem antes de chegar ao poder, de que recebera dela uma fortuna, o dinheiro com que ele pôde criar seu jornal, Il Popolo d’Italia.
Toda a seqüência desse interrogatório é brilhante, antológica, inesquecível.
A câmara finalmente está pousada sobre o rosto de Ida Dalser, em close-up, e fica ali, longamente, enquanto ela responde às perguntas, que começam ridículas, tolas, imbecis – quantos dedos tem uma mão? quantos olhos tem um homem? que dia é hoje? é de dia ou de noite? -, para depois chegar aos finalmentes – onde estão os documentos para provar sua alegação de que o chefe de Estado, Sua Excelentíssima Excelência Il Duce, casou-se com a senhora?
Giovanna Mezzogiorno arrasa, brilha, ilumina a tela, ofusca todo o resto. Nem seriam necessárias todas as demais belas seqüências do filme – bastava essa.
As primeiras vezes em que a Ilda Dalser vê o jovem Mussolini
Nos primeiros minutos de seu filme, Bellocchio vai e vem no tempo – mas, caridoso para com o pobre espectador, agora que já tem 71 anos, coloca na tela letreiros com local e data. A primeira sequência se passa em Milão, em 1914. É a tal já citada, que acontece dentro de um cômodo apinhado de gente. É uma discussão sobre religião. Já falou um defensor da Igreja, da religião, e agora é a vez do jovem Benito Mussolini, estrela em ascensão do Partido Socialista. O jovem Mussolini pega emprestado de um senhor na platéia um relógio de bolso, daqueles velhos, lindos relógios de bolso, e diz a hora: cinco e dez. E faz um desafio: se Deus existe, que o liquide ali, naquela hora, naquele momento. Se não o fizer em cinco minutos, então estará comprovado que Deus não existe.
Na platéia, no fundo do cômodo, de pé (sentados, apenas homens), uma mulher linda sorri em êxtase ao ver tamanha demonstração de inteligência, coragem, ousadia do jovem Mussolini.
Corta, e outro letreiro avisa que estamos em Trento, em 1907. Um grupo de manifestantes do Partido Socialista está sendo perseguido pela polícia. Benito Mussolini foge da polícia, entra numa casa onde está uma jovem mulher linda. É a primeira vez em que ele e Ida Dalser se vêem.
Não foi um estupro – a Itália entregou-se aos pés do ditador
Na metáfora que criou a partir da história real da relação entre Mussolini e Ida Dalser, Bellocchio indica que, diferentemente do filme de Pietro Germi de 1964, não foi apenas o homem que seduziu a mocinha. Ida Dalser, metáfora de toda a Itália, foi seduzida, sim, mas ela também seduziu o homem que mais tarde arrasaria com sua vida.
Ida Dalser entregou-se de corpo e alma a Benito Mussolini; caçou-o, foi atrás dele, não desgrudava dele. E, mesmo depois que ele se provou um crápula, ela continuou se lançando a seus pés.
Essa é, parece, a dura metáfora que Bellocchio tem a dizer. A Itália se entregou toda aos pés do sujeito, deixou-se possuir por ele. Não foi nem de longe um estupro – foi absolutamente consensual.
Um desempenho extraordinário também de Filippo Timi
Uma tomada de beleza absurda: Ida Dalser escala como uma atleta, como uma macaca, a grade do hospício, para soltar ao vento do alto as cartas que escreve afirmando que é a esposa de Mussolini, mãe do filho de Mussolini – cartas para o rei, o papa, o ministro disso, o ministro daquilo. A câmara está dentro do hospício, focalizando a grade, a mulher desesperada no alto dela, e atrás, ao fundo, o negror da noite tingido pelos flocos de neve que caem, a música extraordinária de Carlo Crivelli, cordas lancinantes, subindo de volume.
É de doer.
Quem brilha mais é Giovanna Mezzogiorno, repito, numa das interpretações mais impressionantes de todos os filmes que já vi na vida. Mas esse rapaz Filippo Timi, de quem jamais tinha ouvido falar, dá um show. É impressionante como num simples trabalho de maquilagem, de cabeleireiros – perrucheria, como eles dizem – Filippo Timi parece ao mesmo tempo duas pessoas absolutamente diferentes, como Benito Mussolini jovem e como Benito Albino adulto, e ao mesmo tempo parece filho de um, focinho doutro, como se diz em Minas.
Mussolini jovem ainda tem cabelos, curtos, e um bigodinho. Benito Albino não tem barba nem bigode, e seu cabelo é farto. Com essa simples mudança, Filippo Timi cria duas pessoas diferentes e ao mesmo tempo que se parecem, como alguns filhos se parecem com o pai.
Benito Albino enlouquecido, imitando cada vez mais furiosamente o pai, é uma atuação brilhante.
É de doer.
O roteiro, acho eu, é um tanto descosido, descosturado, em especial no início
Minha opinião pessoal, personalíssima, é de que a narrativa, o roteiro, é um tanto descosido, descosturado, em especial na primeira meia hora, 40 minutos, quando se mostra o período do início da carreira de Mussolini. Tudo bem – o filme não é sobre a carreira política de Mussolini, é sobre essa história pessoal, familiar, do ditador, e não pretende ser a fiel reprodução dos fatos históricos, é uma “leitura” (eta expressãozinha metida a besta) pessoal de um artista a respeito daquela história pessoal, familiar, mostrada como uma metáfora da Grande História.
Sei, sei disso. Mesmo assim achei a narrativa descosida, descosturada, em especial no início.
Mas, claro, é um filme importantíssimo, em muitos aspectos extraordinário, excepcional.
E o documentário Mussolini, Segredo de Família, de Fabrizio Laurenti e Gianfranco Morelli, que acompanha o filme na edição brasileira do DVD, é uma maravilha, um monumental trabalho de pesquisa histórica – o contrário do que Bellocchio desejava com seu filme.
Os dois se complementam maravilhosamente bem. Acho que filme de Bellocchio fica ainda melhor depois que se vê a história real de Ida Dalser e Benito Albino.
Vincere
De Marco Bellocchio, Itália-França, 2009
Com Giovanna Mezzogiorno (Ida Dalser), Filippo Timi (Benito Mussolini / Benito Albino adulto), Fausto Russo Alesi (Riccardo Paicher), Michela Cescon (Rachele Mussolini), Pier Giorgio Bellocchio (Pietro Fedele), Corrado Invernizzi (dr. Cappelletti), Paolo Pierobon (Giulio Bernardi)
Argumento Marco Bellocchio
Roteiro Marco Bellocchio e Daniela Ceselli
Fotografia Daniele Ciprì
Música Carlo Crivelli
Montagem Francesca Calvelli
Produção Offside, Rai Cinema, Celluloid Dreams. DVD Imovision. Estreou em SP 23/7/2010.
Cor, 128 min
***1/2
Caro Sergio Vaz,
Bastante esclarecedor o seu comentário; os seus comentário sempre instigam-me assistir aos aludidos filme comentados; devo lhe informar que esse filme será exibido agora no dia 19/10/2016 e não perderei.
Grato pelo espaço…