Anotação em 2011: Há filmes que dizem de cara a que vêm: definem-se nas primeiras seqüências, escancaram logo suas intenções, o que pretendem dizer. Este Tudo por Você/My One and Only é daquele outro tipo, dos que a gente leva algum tempo para perceber para onde vão.
Sim, ele indica logo que será um road movie, com uma pitada de nostalgia, porque se passa nos anos 50, que muita gente – Gilberto Braga e Tom Jobim, por exemplo – considera como anos dourados.
Não há sequência antes dos créditos iniciais, como agora se faz praticamente na maioria dos filmes. A abertura é exatamente com os créditos iniciais, e eles são brilhantes. Enquanto vão aparecendo o nome dos atores e da equipe, vemos uma colagem belíssima de desenhos ultra-realistas, algumas imagens de TV, algumas fotos – uma bomba nuclear explodindo num dos primeiros testes em território americano, o casamento de John F. Kennedy e Jacqueline Bouvier –, e diversos cartões postais, de Boston, Pittsburgh, St. Louis, Albuquerque, Califórnia, enquanto, entre canções da época, locutores de rádio ou de TV situam exatamente o ano da ação: 1953.
Os cartões postais deixam claro: os personagens vão cair na estrada, passando por diversas regiões dos Estados Unidos.
Assim que desaparece a última imagem da maravilhosa colagem dos créditos iniciais, vemos, em close-up, o rádio de um carro. Um garoto de uns 15, 16 anos, está apertando os botões do rádio de um Cadillac numa concessionária de veículos. O garoto está elegantemente trajado, com terno e gravata, cabelo bem penteado, mas o vendedor acha que Cadillac é assunto sério e caro demais, e se aproxima dele como se ele fosse um trombadinha.
As primeiras falas são ótimas, seguindo o ritmo ágil e talentoso dos créditos iniciais.
O vendedor, com aquela estúpida arrogância de muitos vendedores de lojas de produtos caros: – “Ei, garoto, não toque no carro, tá?”
A voz do garoto, em off: – “Se eu tivesse saído da loja naquele momento, nada disso teria acontecido.”
O vendedor: – “Você deveria estar na escola. Dê o fora.”
A voz do garoto, em off: – “Mas eu não fui embora – e nada seria o mesmo depois daquilo”.
O garoto, para o vendedor: – “Quanto custa este?”
O vendedor, como se falasse do alto de uma pilha de dinheiro: – “Este aqui? Você teria que entregar jornais durante 50 anos. É quanto ele custa.”
O garoto: – “E isso vem a ser…”
O vendedor, falando daquele jeito esquisito que os americanos têm de falar de dinheiro usando as centenas: – “Trinta e cinco centenas. Está satisfeito? Agora dê o fora.”
O garoto, produzindo de dentro do bolso para as mãos um bolo de notas graúdas: – “E suponho que haveria um abatimento para pagamento em dinheiro?”
A mulher flagra o marido com outra – e dá no pé, levando os dois filhos
O garoto – chama-se George Devereaux, veremos logo em seguida, e é interpretado por Logan Lerman, um jovem que promete – não havia roubado um banco. Em um flashback bem rápido, bem ágil, veremos que seu pai, Dan Devereaux, um band leader de razoável fama e fortuna, tremendo galinha (o papel de Kevin Bacon), havia sido flagrado com uma mulher em sua própria casa pela esposa, que voltou mais cedo e inesperadamente de uma estadia na praia.
A mãe, Ann (o papel de Renée Zellweger), pelo jeito já sabia que o marido era um emérito pulador de cerca, mas naquele dia resolveu que iria embora. Juntou algumas roupas em uma mala, deixou o apartamento de gente rica em Manhattan, passou pelo banco, esvaziou o conteúdo do cofre do casal e foi atrás dos dois filhos em suas respectivas escolas – além de George, há também Robbie (Mark Rendall), um ano ou dois mais velho que o caçula, filho de outro pai -, pegou-os, e os informou que estavam os três de saída da casa de Dan e da cidade. A George, deu aquele bolo de dinheiro e a ordem de sair e comprar um carro.
Estamos aí com uns dez minutos de filme, e a viagem começa: de Nova York, Ann Devereaux e os filhos George e Robbie viajam no Cadicallac novinho rumo a Boston.
Uma mãe perua, um filho estudioso, outro filho veadinho
A esta altura, diversas informações já foram passadas para o espectador. Ann Devereaux é o protótipo da perua, da mulherzinha fútil, levemente irresponsável, que nunca trabalhou na vida; vinha de família de alguma tradição do Sul, e achava que a vida seria sempre um mar de rosas, porque jamais faltaria um marido rico para enchê-la de mimos e todo tipo de conforto material possível. Nunca deu a menor pelota para nenhum dos dois filhos, não sabe coisa alguma a respeito deles – e, com 15 minutos de filme, o espectador sabe mais sobre eles do que Ann.
George é estudioso, sério, gosta de ler (como todos os personagens de livros e filmes americanos passados nos anos 50, lê e relê O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, é um apaixonado por Holden Caufield), e aparentemente tem talento para a escrita. Robbie é um veadinho – e aqui me perdoem os politicamente corretos, mas este é o termo que melhor define o garoto. Sonha em ser ator de teatro, e consegue bons papéis em todas as escolas pelas quais passa. Como hobby, adora costurar. Nada contra qualquer opção sexual ou profissional ou de hobby; é só que Robbie é cheio de trejeitos e maneirismos afetados, exagerados – um veadinho.
Ann não tem a menor idéia sobre isso, nem sobre nada de nada – não sabe sequer em que escola os filhos estudam. É uma dondoca – jamais tinha sido de fato mãe dos garotos.
Ann não tem idéia do que vai fazer na vida – e terá muitas decepções
Nem os filhos, nem o espectador, e muito provavelmente nem Ann sabe exatamente o que ela vai fazer daí em diante. Robbie tem a séria suspeita de que, à primeira grande dificuldade, Ann voltará correndo para o conforto do belo apartamento em Manhattan do maridão galinha.
Ann demonstra que está à procura de um marido. Em Boston, encontra um antigo conhecido, um coronel do Exército, Harlan (interpretado por Chris Noth, o marido traidor de The Good Wife – na foto). Ficam noivos, e por uns breves instantes parece que os problemas serão resolvidos. Mas Harlan será a primeira das muitas, muitas decepções que Ann conhecerá na sua nova vida.
30 minutos, e ainda me pergunto para onde vai o filme
Quando estávamos aí com uns 30 minutos de projeção, comentei com Mary que ainda não tinha me caído a ficha de qual é, afinal, a do filme.
Tudo bem: um road movie, ambientado nos anos 50. Balançando-se na corda bamba, no fio da navalha entre o drama e a comédia.
Para onde iria daí? Uma séria observação sobre quão despreparadas para as vicissitudes da vida eram muitas mulheres classe média alta dos anos 50? Uma pesada – embora com toques de humor – crítica a uma sociedade que estimula as mulheres a serem dondocas, inúteis na vida prática, dependentes dos homens?
Simplesmente uma comédia de costumes sobre uma família absolutamente desajustada, disfuncional, embora tendo tido todos os confortos materiais possíveis?
Fosse o que fosse, era um bom filme
Lá pela metade do filme me convenci que era um pouco de tudo isso, mas com indicações de que poderia se basear numa história real. Quem sabe George, o garoto sensível, sério, não teria virado um escritor, e esta era a narrativa de sua adolescência cheia de aventuras e muitas desventuras com uma mãe despreparada para a vida, despreparada para ser mãe?
Fosse como fosse, era um bom filme, argumentei comigo mesmo.
É um bom filme. Tem aquelas qualidades básicas todas de perfeito artesanato, em todas as áreas. A fotografia, a direção de arte, a reconstituição de época, é tudo de babar. Bela trilha sonora de Mark Isham. Boas atuações – Renée Zellweger é perfeita para o papel da sulista de origem aristocrática que tem a certeza inabalável de que as coisas não podem dar errado para ela. Kevin Bacon está ótimo como o músico incensado, rico, procurado pelas mulheres, que não é propriamente um mau caráter, até porque não chega a ter caráter algum, seja bom ou mau.
Os dois jovens atores que fazem George, o sério, e Robbie, o veadinho, estão muito bem, seguros, à vontade. O elenco de apoio é todo competente.
Os tipos que surgem ao longo da caminhada de Ann e seus filhos são interessantes, as situações são pitorescas – tragicamente cômicas, às vezes tragicamente trágicas.
E, enquanto isso, o filme vai nos dando um belo retrato daquelas coisas sérias todas, a falta de preparo das esposas ricas para sobreviverem por conta própria, as regras sociais que impediam que as mulheres tivessem sua profissão, alguma bagagem para ganhar a vida.
Só no finalzinho é que o filme vai revelar: sim, ele se baseia numa história real.
Como ele só revela isso no fim, vou botar aqui um aviso de spoiler.
A partir daqui, quase um spoiler. Quem não viu o filme não deveria ler
O espectador mais atento poderá reparar que, nos créditos iniciais, aparece como produtor executivo George Hamilton. Eu reparei – e pensei: ué, um homônimo do George Hamilton.
Lembro de George Hamilton (na foto abaixo) de filmes do final dos anos 50, começo dos 60. Sim, lembro que ele fez sucesso depois disso com Amor à Primeira Mordida, uma gozação com filmes de vampiros.
Era um galãzão, um tipo boa pinta, que para mim fazia lembrar John Gavin – ou John Gavin fazia lembrar George Hamilton, dá no mesmo. Não um grande ator, mas um galã, popular, famoso.
É o próprio. Este filme conta – provavelmente com muitas licenças poéticas – episódios de alguns meses da adolescência de George Hamilton. A mãe dele de fato se chamava Ann, e era uma daquelas damas sulistas de família tradicional; casou-se quatro vezes, e foi acrescentando os nomes dos maridos ao seu, até ficar parecendo quase uma princesa – Ann Potter Hamilton Hunt Spaulding. Seu segundo marido foi um bandleader, de fato, e foi desse casamento que nasceu George Hamilton.
Há filmes que contam a vida inteira de pessoas famosas, mas que não chegam propriamente a ter uma trama interessante. Este aqui é o contrário. George Hamilton pode não ter sido um grande ator – mas esse ano que viveu com a mãe e o meio irmão na estrada, de cidade em cidade, é uma bela história, rica, fascinante.
Tudo por Você/My One and Only
De Richard Loncraine, EUA, 2009
Com Renée Zellweger (Anne Deveraux), Logan Lerman (George Devereaux), Kevin Bacon (Dan Devereaux), Mark Rendall (Robbie), Troy Garity (Becker), David Koechner (Bill Massey), J.C. MacKenzie (Tom), Eric McCormack (Charlie), Chris Noth (coronel Harlan Williams), Molly Quinn (Paula), Nick Stahl (Bud), Phoebe Strole (Wendy)
Roteiro Charlie Peters
Fotografia Marco Pontecorvo
Música Mark Isham
Produção Herrick Entertainment, George Hamilton Productions, Merv Griffin Entertainment, Raygun Productions, Runaway Home Productions.
Cor, 108 min
**1/2
Eu acho o personagem da Renée comoventemente interpretado. Ela tem uma pergunta nos olhos, sempre. E um brilho que vai esmaecendo quando ela vai tendo respostas. Pra mim é daqueles filmes que doem um pouquinho.
Não fazia ideia de que era inspirado em história real, gostei de saber. Achei interessante como o filme retrata a situação da mulher na epoca: ninguém acredita que ela não vai mesmo voltar para o marido, ela é presa como prostituta só porque estava em um bar sozinha à noite, entre outras situações. Gostei muito desse filme.
O filme acabou de passar no Corujão da TV Globo. Estava estudando e sempre deixo a TV ligada como companhia. As falas foram me capturando e me rendi ao filme. É crível e agora que lí se tratar de uma história real, vou ter que rever. Muito bom!
O filme é maravilhoso e Renée, impecável – assim como Kevin Bacon. Esse é o tipo de filme para rever, rever e rever…