Anotação em 2011: Se conselho fosse bom, seria caro. Conselho é de graça, e por isso não vale nada, mas lá vai: o eventual leitor deveria fugir do filme Segredos de um Funeral/Get Low.
Quase tudo é de primeiríssima qualidade, mas primeiríssima mesmo, no filme. Toda a parte de artesanato – fotografia, direção de arte, figurinos – é não menos que perfeita. A trilha sonora é um espanto. O elenco todo está muito bem dirigido, e os três grandes, veteranos atores principais, Robert Duvall, Bill Murray e Sissy Spacek, dão um show. E, no entanto, o filme é uma imensa porcaria.
Como é possível?
Simples: a história não fica de pé. É boba. Bocó. Idiota. Ridícula.
Todo o resto – tirando o principal, que é a história – é tão bom, tão absolutamente bem feito, que a gente vai vendo, vai vendo, até com algum interesse. É tudo meio absurdo, implausível, mas a gente vai vendo. Não dá para deixar de lado um filme tão bem realizado e com Duvall, Murray e Sissy Spacek na tela.
Há um segredo que o filme não conta. E aí ficamos ali, esperando para ver o que afinal é o segredo. Vai indo, vai indo, e nada. Fica tudo para a sequência final, o clímax.
E o clímax revela-se bobo, bocó, idiota, ridículo.
O filme desaba como um castelo de cartas. E a imagem, sem falsa modéstia, é perfeita, porque é disso mesmo que se trata. A base de tudo, o fundamento, o alicerce, é a história. Quando se revela que a história é boba, etc, o filme desaba como um castelo de cartas.
Uma casa pegando fogo, uma trilha sonora extraordinária
E é isso. É só isso. A rigor, não há mais o que dizer a respeito deste filme. Se eu o tivesse visto uns quatro anos atrás, antes de inventar este site, seguramente teria feito uma anotação curta e grossa, apenas o primeiro parágrafo desta anotação aqui. Mas, diabo, isto aqui é um site sobre filmes, então tenho que dizer mais alguma coisa.
É mais ou menos assim:
Plano geral. Noite. Uma casa pega fogo. É uma casa um tanto isolada, cercada por árvores. A música é extraordinária, forte, impressionante, mas o espectador que eventualmente quiser saber quem fez a trilha sonora só será esclarecido nos créditos finais, porque não há créditos iniciais.
A trilha sonora é de Jan A.P.Kaczmarek, excelente compositor polonês que musicou bons filmes, O Terceiro Milagre, A Herdeira, Ao Entardecer, O Visitante, Em Busca da Terra do Nunca. Jan A.P.Kaczmarek vai misturar seus próprios temas criados para o filme com canções bluegrass e até mesmo de jazz.
Um vulto sai correndo da casa em chamas, avança rumo à câmara.
O eremita reaparece após 40 anos para encomendar seu próprio funeral
Corta, e um vidro se quebra. Um garoto jogou uma pedra na janela de uma casa isolada, no meio do mato, no meio do nada. O dono da casa persegue o garoto, munido de uma espingarda. O garoto vomita de medo.
A casa isolada, no meio do nada, pertence a um ermitão, um sujeito que está ali sem falar com absolutamente qualquer outro ser vivo há 40 anos – Felix Bush, o personagem de Robert Duvall, devidamente paramentado como um eremita, barba e cabelos imensos, como um personagem de história de quadrinhos, como um estereótipo.
Um carro que aparece, mais as músicas bluegrass, vão identificar para o espectador que estamos nos anos 20, ou 30, no Sul Profundo.
O eremita Felix Bush vai entrar em contato com outros seres humanos pela primeira vez em 40 anos: dirige-se à cidadezinha mais próxima de sua propriedade, vai até a igreja e pergunta ao pastor se ele pode preparar um funeral. Por uma grande coincidência, está chegando à igreja naquele exato momento o rapaz Buddy (Lucas Black). Buddy trabalha na única funerária da cidadezinha, pertencente a Frank Quinn (interpretado por Bill Murray).
Não têm morrido muitas pessoas naquela cidadezinha do Sul Profundo. A funerária de Frank Quinn vai mal. Então Frank e Buddy vão atrás do ermitão Felix Bush.
Temos aí uma enroladinha para passar o tempo (os longa-metragens precisam ter aí uns 90 minutos), e o ermitão vai procurar a funerária de Frank Quinn com a seguinte proposta: que se organize um grande funeral para ele, com ele em vida.
Surge na história uma mulher, Mattie (o papel da maravilhosa, esplendorosa Sissy Spacek), que no passado muito distante havia sido namorada de Felix Bush, o há 40 anos ermitão.
Todos, na cidadezinha, conhecem a fama de mau do eremita Felix Bush. Felix Bush é uma lenda, naquele lugar.
No final, it’s showtime, folks! Um espetáculo à la American way
Exatamente por que Felix Bush é uma lenda? Por que ele é tido como tendo feito coisas terríveis no passado? Como ele sobrevive muito bem, com bastante dinheiro, não tendo visto ou feito comércio com outro ser humano nos últimos 40 anos?
Ah, quem fizer essas perguntas é idiota da objetividade. A história do filme não se preocupa com esse tipo de questão menor.
O que a história do filme propõe ao espectador é que Felix Bush tem um grande segredo no passado.
Quando o segredo é enfim revelado, no tal clímax, no final do filme, é no American way – it’s showtime, folks! O eremita vai revelar seu segredo no microfone, para uma gigantesca platéia, todos os quatro condados reunidos.
É ridículo. É de deixar o espectador vermelho de vergonha por estar vendo tal imbecilidade.
Uma imbecilidade. Mas os atores estão maravilhosos
Sissy Spacek resplandece. Sissy Spacek estava com 60 anos, quando aceitou participar desta asneira. Ao contrário de tantas atrizes muito mais jovens, Sissy Spacek aceitou o passar dos anos. A marca do tempo está em seu rosto, o que torna seu rosto glorioso – Sissy Spacek está mais bela neste filme horroroso do que quando, bem jovem, fez Carrie, a Estranha, de Brian De Palma, ou Missing, de Costa-Gavras.
Bill Murray está velhinho também. Nascido em 1950 (o mesmo ano deste escrevinhador), um ano depois de Sissy Spacek, está cheio de rugas. Tem a mesma nonchalance que o caracterizou em tantos filmes que fez bem mais jovem, como Ghostbusters, ou mais velho, como Encontros e Desencontros. Dá um show de interpretação.
E Robert Duvall – bem, parece que o filme foi feito para que Robert Duvall brilhe. E ele brilha, aos 78 anos bem vividos. Até que, na tal seqüência final, a do clímax, brilha tanto, naquele papel ridículo, bocó, insistindo demais na repetição dos mesmos cacoetes, que fica over. Over, ridículo, bocó.
Em suma: deve-se fugir deste filme
Nos créditos finais, surge a voz luminosa de Alison Krauss, a garota que, se não estou enganado, trouxe o bluegrass de volta às paradas de sucesso americanas.
Sissy Spacek interpretou Loretta Lynn, a cantora country de vida tão trágica quanto as canções country, em O Destino Mudou Sua Vida/Coal Miner’s Daughter, de 1980.
Robert Duvall fez o papel de um cantor e compositor country em A Força do Carinho/Tender Mercies, de 1983.
Sissy Spacek e Robert Duvall poderiam perfeitamente ter feito um show de bluegrass e country em Nashville, com Alison Krauss como convidada especial, é claro. Daria um belo show, um belo DVD.
Perderam o tempo fazendo esta bobagem. Mary e eu perdemos nosso tempo vendo esta bobagem. Se alguém leu esta anotação até aqui, perdeu seu tempo. Na verdade, tudo o que era preciso dizer sobre este filme já havia sido dito: deve-se fugir dele.
Segredos de um Funeral/Get Low
De Aaron Schneider, EUA, 2009
Com Robert Duvall (Felix Bush), Sissy Spacek (Mattie Darrow), Bill Murray (Frank Quinn), Lucas Black (Buddy), Gerald McRaney (Reverendo Gus Horton), Bill Cobbs (Reverendo Charlie Jacks)
Roteiro Chris Provenzano e C. Gaby Mitchell
Baseado em história de Chris Provenzano e Scott Seeke
Fotografia David Boyd
Montagem Aaron Schneider
Música Jan A.P. Kaczmarek
Produção K5 International, Zanuck Independent, David Gundlach Productions.
DVD Sony Pictures
Cor, 100 min
1/2
Sergio, eu gostei, especialmente por causa dos atores, o que voce ressalta. Duvall manda muito bem. Mas o melhor de todos é Bill Murray. E olha que não sou daqueles que adora Encontros e Desencontros (muito pelo contrário), tão cultuado. Ele é o ponto de comédia da trama, com uma sutileza incrível.
Pelo que li, a história real de Felix Bush foi um pouco diferente: ele quis fazer o funeral para que as pessoas o deixassem em paz, parassem de incomodá-lo. No filme o motivo é se despedir das pessoas e “limpar sua barra”, já que a maioria da cidade tem medo ou repulsa por ele.
Já que vc falou pra não ver, não vi.
Só queria dizer que ao ler o comentário do Danilo, não me sinto mais só por ser (até então) a única pessoa que não tinha gostado de Encontros e Desencontros.
Hêhê: o 50 Anos de Filmes está tendo agora seu lado Facebook: promove amizades, termina com solidões! Eta ferro!
Abraço aos dois amigos!
Pois é, Sérgio, é o 50 Anos ajudando a fazer amigos, influenciando pessoas e terminando com solidões. \o/
Faltou só o botão pra eu curtir seu comentário.
E eu que gostei tanto do filme, Sérgio! Dei até uma estrelinha (o equivalente a 8, no By Star).
Cada cabeça, uma sentença… Mas, com fotografia, figurino, direção de arte e trilha sonora de alta qualidade, você não acha que merecia pelo menos uma estrelinha inteira? 😉
Caríssima Stella, mas é isso mesmo que você diz, que eu digo sempre: cada cabeça, uma sentença… E é mesmo tudo muito subjetivo. Fiquei com raiva do filme, e aí dei só meia estrela, embora ele de fato seja caprichadíssimo em diversos quesitos. Você tem razão: é uma nota errada, em termos objetivos. Mas é que aqui é tudo tão subjetivo… Então vou deixar assim.
Um abraço!
Sérgio
Você está certo Sérgio, o que importa é o que sentimos quanto a um filme ou obra de arte. Ando intrigada com esse fenômeno.
Esta semana, em que nada chegava na locadora, aluguei uns antigos. Todos ótimos, especialmente “Feios, Sujos e Malvados”, de Ettore Scola. Mas quem disse que, pelo fato de serem muito bem-feitos, me animo a colocá-los no blog. A preguiça prevalece e nada acontece. Fico olhando gulosamente para a pilha e querendo ver outro, na esperança de que agrade mais. E de repente, um filme que tecnicamente não é tão elaborado, provoca aquela necessidade de ser comentado, partilhado. Serão os críticos diferentes de nós?
Um abraço,
Stella
É bem verdade, Stella… Os críticos, acho, são, sim, diferentes de nós… Eles têm obrigação de escrever, mesmo não gostando do filme. E tudo que é obrigação fica chato, desagradável. Ser amador é muito melhor que ser profissional…
Sérgio
Eu gostei muito do filme, tanto da parte técnica quanto do enredo, da trama. Ainda mais por ser baseado eum um folclore local, ou sei lá, história real. Devemos entender o drama do personagem, seu sentimento de culpa. A pior coisa que pode acontecer a um homem ou uma mulher é tirar lhes um grande amor. O personagem nos apresenta um sentimento de culpa quase tão grande quanto aquela do personagem do filme O Maquinista.
algunsfilmes.blogspot.com
Bem, eu tenho que discordar da crítica. Sim, é decepcionante saber que todo o misterio do velho homem era bobo perto do que se imaginava, porém penso ser exatamente a ideia original do filme, retratar o quão injusto é o julgamento das pessoas, mostrando que certamente quem conta um conto aumenta um ponto. Todos esperávamos que algo de maior relevância fosse contado mas isso porque também fomos influenciados pelo pensamento alheio. Fica a dica
Eu não desgostei da trama e, muito pelo contrário, achei super plausível. Achei a produção e a direção fantásticas. Não entendo porque você ficou tão revoltado e inflamado com a trama. Talvez você estivesse tendo um mal dia!?
Rafael, posso, sim, ter visto o filme num dia ruim. Essa é uma possibilidade que está sempre presente…
Veja aí acima os outros comentários… Várias outras pessoas gostaram do filme.
Um abraço.
Sérgio