Anotação em 2011: Marnie – Confissões de uma Ladra, de 1964, é muito possivelmente um dos filmes menos badalados de Alfred Hitchcock. Para Pauline Kael, é o fundo do poço na obra do cineasta. É um dos que mais admiro, desde sempre. Um belíssimo filme, um impressionante mergulho numa mente doentia.
– “Você Freud, eu Jane?” – desafia Marnie (Tippi Hedren) a Mark Rutland (Sean Connery), o homem que se dispõe a tudo para ajudá-la, embora ela rejeite qualquer tipo de ajuda.
É provavelmente o filme mais freudiano, mais psicanalítico de Hitchcock, mais ainda que Quando Fala o Coração/Spellbound, de 1945, em que Ingrid Bergman interpreta uma psiquiatra, e boa parte da ação se passa em um hospital psiquiátrico.
Psiquiatras, psicanalistas, gente do métier poderá dizer (e provavelmente já disse) que é um freudianismo bastante primário, o de Marnie. Talvez seja mesmo. Mas, como recurso dramático, como trama cinematográfica, é uma maravilha.
A vítima descreve a ladra – como uma raposa descreveria a galinha que não comeu
A primeira tomada de Marnie, depois dos rápidos créditos iniciais, é um close-up de uma bolsa amarela, carregada bem junto à axila esquerda de uma mulher que a câmara focaliza de trás. A mulher está caminhando rapidamente, e por um breve momento a câmara a segue, focalizando a bolsa amarela, até que a câmara pára, e a mulher continua caminhando; como ela se afasta da câmara, dá para ver que está na plataforma de uma estação de trem, e com a mão direita carrega uma grande mala. Tem cabelos negros, ondulados. Não vemos o rosto dela – a câmara só a focaliza de costas.
Corta, e temos um homenzinho em plano um pouco mais fechado que americano, quase um close-up de seu rosto de fuinha:
– “Roubado! Limpado! US$ 9.967! Exatamente como eu contei ao telefone. E foi aquela garota. Marion Holland. Este é o nome dela. Marion Holland.”
Um dos dois detetives pergunta ao homenzinho se ele poderia descrevê-la.
– “Claro que eu posso descrevê-la. Um metro e 65, 50 quilos, vestido tamanho 8, olhos azuis, cabelo negro ondulado (faz um gesto para acentuar a ondulação do cabelo), bela aparência, bons dentes.”
Enquanto o sr. Strutt descreve a ladra com a expressão de uma raposa que não conseguiu comer a galinha que esteve tão perto, há uma rápida tomada de uma secretária não bela, não graciosa, com um jeitinho de quem pensa: “Ahá, seu patrão filho da mãe, você caiu feito um patinho”.
Os policiais não conseguem segurar um sorriso diante da descrição da moça, e o sr. Strutt fica indignado:
– “O que há de tão engraçado? Houve um grande furto aqui!”
Os policias tentam se concentrar. Um deles pergunta sobre as referências que a moça apresentou; o sr. Strutt se enrola um pouco, diz que com certeza ela tinha boas referências. A secretária não bela, não graciosa, aproveita para pisar um pouco mais no calo dolorido do patrão:
– “Mas, sr. Strutt, não se lembra? Ela não tinha nenhuma referência.”
Por trás da secretária feliz da vida por ver o patrão se ferrando surge Mark Rutland, um importante cliente da firma de contabilidade de Strutt. O homenzinho pede perdão aos policiais e vai receber o cliente; cumprimenta-o, e logo dá a informação: acaba de ser roubado, quase US$ 10 mil.
– “Fiquei sabendo. Por uma moça bonita sem referências.”
Strutt não é homem de perceber ironias, e diz que Rutland devia se lembrar dela: – “Uma que eu mostrei para você da última vez em que você esteve aqui.”
Rutland então se lembra:
– “Ah, aquela? A morena das pernas bonitas.”
Strutt está furioso. Não consegue parar de falar nela – e o espectador fica em dúvida se o principal motivo da fúria dele é ter sido roubado ou não ter conseguido comer a moça:
– “Aquela bruxa! Vou fazer com que ela fique 20 anos atrás das grades. Sabia que era boa demais para ser verdade. Sempre disposta a fazer hora extra. Nunca cometeu um erro. Sempre puxando a saia para cobrir os joelhos, como se eles fossem o Tesouro Nacional! Parecia tão simpática, tão eficiente, tão…
E Rutland tenta achar a palavra certa para ajudar o pobre diabo:
– Talentosa?
Rápido close-up no rosto pensativo de Mark Rutland-Sean Connery.
O jovem Sean Connery no auge de seu imenso charme
Marnie ficou pronto e estreou em 1964. Sean Connery estava com 34 anos. Depois de uma dezena de aparições menores em filmes idem, tinha estourado nas bilheterias do mundo inteiro como Bond, James Bond, em O Satânico Dr. No/Dr. No, de 1962, e Moscou contra 007/From Russia With Love, de 1963. Naquele mesmo ano de 1964, estrelaria o terceiro sucesso consecutivo da franquia 007, Goldfinger.
Estava com tudo e estava prosa, no auge de seu imenso charme, o jovem Sean Connery. Seu Mark Rutland usa belos ternos, assim como James Bond – e, também como James Bond, aparece em várias seqüências sem camisa, mostrando braços e peito de homem forte.
A câmara só focaliza o rosto de Tippi Hedren quando ela volta a ser loura
Depois do close-up no rosto de Sean Connery, um fade out, tela negra por alguns segundos, fade in, e vemos de novo em close-up a bolsa amarela. A morena está de novo sendo mostrada pelas costas; um boy de hotel carrega sua mala por um corredor, e também uma grande quantidade de caixas de roupas recém-compradas; a câmara dá para uma parada, e da porta de um dos quartos de hotel sai Alfred Hitchcock, olha para um lado, olha para a câmara.
Seguem-se tomadas de uma nova mala da moça sendo feita, dentro do quarto de hotel; as caixas de compras são jogadas de lado, as roupas novas vão para a mala; da bolsa amarela saem para dentro da mala maços de dinheiro.
Em close-up, vemos diversos cartões de identidade da previdência, os social security cards – Marion Holland, Mary Taylor, Margaret Edgar.
A mulher lava os cabelos na pia, retira deles a tintura negra. E é só quando ela afinal levanta a cabeça com os cabelos já de volta ao seu louro original é que a câmara focaliza pela primeira vez o rosto de Tippi Hedren.
Enquanto ela era morena, a câmara de Hitchcock só a pegava por trás. De frente, só quando ela volta a ser loura.
Uma velha amarga, ressentida com a vida, um poço de frustrações
Depois de se livrar da aparência de Marion Holland, a mulher que roubou quase US$ 10 mil do pobre safado sr. Strutt, Margaret Edgar, ou Marnie, em breve Mary Taylor, primeiro vai ver Florio, seu cavalo, guardado num haras onde ela é recebida com as honras de uma cliente preferencial. Só depois de ver Florio ela vai ver a mãe, Bernice (Louise Latham, na foto).
As seqüências da visita de Marnie à mãe definem perfeitamente para o espectador o como é a relação entre as duas.
Bernice é uma velha amarga, ressentida com a vida, um poço de tristezas e frustrações; fala de princípios de uma moralidade conservadora, carola, beirando o fanatismo. Tem (como algumas personagens das canções folk americanas, tipo “Silver Dagger”, que Joan Baez gravou em seu primeiro disco oficial) um ódio pegajoso dos homens, de todos os homens: os homens são sujos. Bernice nota que a filha clareou os cabelos. Marnie pergunta se ela não gostou, e ela responde que não:
– “Cabelo louro demais sempre parece que a mulher está tentando atrair o homem. Homem e um bom nome não combinam.
Bernice tem um grande encantamento por uma garotinha que mora na vizinhança, Jessie (Kimberlay Beck) – o que provoca um furioso ciúme em Marnie.
Marnie, por sua vez um poço sem fundo de problemas psicológicos, psiquiátricos, nunca enfrentados, nunca resolvidos, se ressente da falta de amor, de carinho, de um pequeno gesto de afeto que seja, da mãe. Enche-a de presentes, tenta comprar seu afeto – mas só recebe de volta reclamações, “você não devia gastar tanto dinheiro comigo”. Nesse encontro com Bernice, logo no início da narrativa, depois de fazer o possível para agradá-la, sem sucesso, Marnie vai confrontar a mãe abertamente: “Por que você não me ama? Por que você nunca me amou?”
O desenho da relação ruim, nunca resolvida, de mãe e filha que Hitchcock traça em Marnie, na minha opinião, é tão profundo, tão doido, e tão doído, quanto o que Ingmar Bergman fez em Sonata de Outono, com Ingrid Bergman e Liv Ullmann.
Também nessas seqüências na visita à mãe, é mostrado às claras para o espectador alguns dos traumas de Marnie: ela não pode ver a cor vermelha. Não suporta os ruídos de tempestade, as luzes dos raios. E tem sempre o mesmo pesadelo, recorrente, em que aparecem a cor vermelha, a tempestade, a mãe, a mãe que a tira, ela criancinha pequena, da caminha quente.
Um dos elementos fundamentais do filme é a trilha de Bernard Herrmann
É impressionante como a trilha sonora de Bernard Herrmann é absolutamente fundamental para o filme. Herrmann colaborou em vários filmes de Hitchcock, e suas trilhas são sempre importantes elementos do clima. Mas em Marnie a música é um dos elementos principais. A massa de cordas faz acordes duros, assustadores, que realçam o pavor das situações.
Em outros momentos, é suave, quase romântica. Mas sempre muito elaborada, sinfônica. Bernard Herrmann é autor de poemas sinfônicos – nada que possa levar alguém a colocar uma letra e transformar um dos temas em um canção que toque no rádio – como, por exemplo, o tema de Laura, composto por David Raksin, que depois recebeu letra de Johnny Mercer e virou um clássico da Grande Música Americana.
Foi a oitava e última das colaborações entre Herrmann e Hitch, depois de O Terceiro Tiro/The Trouble With Harry (1955), O Homem Que Sabia Demais (1956), O Homem Errado (1957), Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958), Intriga Internacional/North by Northwest (1959), Psicose (1960) e Os Pássaros (1963).
E há testemunhos de que foi a última colaboração entre os dois exatamente porque Hitchcock gostaria de ter um tema musical mais leve, que pudesse ser transformado em canção, e Herrmann se negou a fazer algo assim. Eu não sabia disso até agora, mas houve uma tentativa de adaptar o tema mais suave e transformá-lo em canção; a coisa chegou a ser gravada por Nat King Cole, mas foi um fracasso.
Logo depois de Marnie, Herrmann faria a trilha sonora de dois filmes de François Truffaut, um apaixonado pelo cinema de Hitchcock – Fahrenheit 451 e A Noiva Estava de Preto.
Na sequência antológica do roubo, a presença forte do silêncio
Até a ausência da música é uma presença forte em Marnie. Na maravilhosa, esplendorosa, antológica seqüência em que Marnie rouba o dinheiro do cofre da empresa Rutland, quando estamos aí com uns 40, 50 minutos de filme, Bernard Herrmann silencia – e o silêncio enche de suspense a longa seqüência, cheia de suaves, espetaculares travellings. Dinheiro já na bolsa, Marnie vê – bem depois do espectador, o que aumenta o suspense, a tensão – uma faxineira passando pano no chão; retira os sapatos de salto alto, coloca cada um deles em um bolso do casaco; vai caminhando pé ante pé, e a câmara faz um close-up de um dos sapatos que vai escapando devagarinho de dentro do bolso, e vai cair no chão, com um ruído seco, o único ruído a cortar o silêncio da longa seqüência.
Putz, pronto – a faxineira vai ouvir o barulho, vai dar o alarme, Marnie vai ser presa, pensa o espectador. Nada – é só uma uma piadinha safada do velho doido. A faxineira é surda como uma porta.
A menos incensada das louras de Hitch tem uma interpretação sensacional
Tippi Hedren é a menos incensada das louras de Hitchcock. Depois de três dos mais belos rostos que já passaram diante de uma câmara de cinema, Ingrid Bergman (em três filmes), Grace Kelly (também em três filmes) e Kim Novak, e depois de Marlene Dietrich, Shirley MacLaine, Doris Day, Janet Leigh, Anne Baxter, Joan Fontaine, Eva Marie Saint, veio Tippi Hedren, primeiro em Os Pássaros (1963) e em seguida neste Marnie. Não havia ninguém disposto a aceitar essa desconhecida, que ficaria marcada como uma invenção de Hitchcock na falta de outra grande e belíssima atriz.
Consta nos alfarrábios que Hitchcock a descobriu ao vê-la num comercial de TV. Até então a moça, nascida Nathalie Hedren, em 1928, trabalhava como modelo. O diretor assinou um contrato pessoal com ela, e a colocou como protagonista de Os Pássaros. Depois de Marnie, Tippi Hedren nunca teve outro grande papel num grande filme. Hoje, quem ainda se lembra dela o faz apenas por seu papel em Os Pássaros e pelo fato de ela ser mãe de Melanie Griffith.
Ao rever Marnie agora (pela, sei lá eu, quinta, sexta ou sétima vez) para escrever esta anotação, me impressionei demais com a interpretação de Tippi Hedren. Podia até não ter talento, a moça, mas, se isso for verdade, que se tire mais de uma vez o chapéu para o velho fauno: ele extraiu da moça uma interpretação maravilhosa. No rosto de Tippi Hedren o espectador vê, ao longo do filme, nas diversas situações, medo, fúria, pavor, tranquilidade de profissional talentosa, exasperação, desespero, impotência infantil, frigidez absoluta – a falta completa de qualquer expressão, o branco total – e loucura, loucura, a mais arrematada loucura.
Sean Connery também está brilhante como o homem rico, poderoso, forte, cheio de confiança em seu próprio taco, um estudioso dos instintos dos animais, que, por paixão, mas também por pena, dó, simpatia, além de uma forte dose de desafio a si mesmo, decide que vai resolver os infindáveis problemas de Marnie, custe o que custar – e como custa.
Todos os atores, mesmo os que fazem papéis menores, porém importantes, como Martin Gabel, que faz o pobre Sidney Strutt, ou Bob Sweeney, que faz o primo Bob, o banqueiro da família, ou a garotinha Kimberlay Beck, que compõe uma Jessie antipática a não mais poder, uma menina nojentinha, estão maravilhosamente bem escolhidos para os papéis, maravilhosamente bem dirigidos. Diane Baker, gracinha, linda, está ótima como a parente sapeca que gostaria demais de ser a sra. Mark Rutland. É um daqueles casos de casting perfeito, de direção de atores perfeita.
Mas quem dá o show maior é Tippi Hedren, a menos incensada de todas as atrizes que Hitchcock dirigiu.
Um papel pensado para Grace Kelly, para o que teria sido o retorno de Grace Kelly
Nunca soube disso até agora, mas o papel de Marnie foi pensado para Grace Kelly. É o que mostra o ótimo documentário sobre as filmagens que acompanha Marnie no DVD, The Trouble with Marnie – uma brincadeira com o título original de O Terceiro Tiro, The Trouble with Harry.
The Trouble with Marnie, feito em 1999 pelo especialista em documentários sobre grandes filmes Laurent Bourzereau, tem uma hora de duração, e é uma maravilha. Reproduz algumas falas marqueteiras de Hitchcock feitas na época do lançamento do filme, com aquela voz um tanto cavernosa e aquela cara de quem está morrendo de rir do mundo, como esta, por exemplo:
– “Alguém poderia chamar Marnie de um ‘um mistério sexual’. Quer dizer, se alguém usassse essa expressão.”
Joseph Stefano, o autor do roteiro de Psicose, conta no documentário que pouco tempo depois que aquele filme estreou, em 1960, Hitchcock disse que havia comprado os direitos de filmagem de Marnie, o romance do inglês Winston Graham, porque Grace Kelly queria voltar a filmar, e queria voltar com ele, Hitchcock.
Pat Hitchcock, a filha do diretor, corrobora com a afirmação; conta que o pai, depois de ler o livro, entrou em contato com Grace Kelly, e “ela adorou a história”, e estava “realmente preparada para voltar (ao cinema)”.
Nunca soube disso, até ver o documentário The Trouble with Marnie, repito. Grace Kelly – disso eu sempre soube – conheceu o príncipe Rainier quando estava filmando no Mônaco Ladrão de Casaca/To Catch a Thief (1955), o terceiro de seus filmes com Hitchcock, depois de Disque M Para Matar (1954) e Janela Indiscreta (1954 também). Não sei a ordem em que as filmagens se deram, mas os últimos filmes com Grace Kelly a serem lançado, em 1956, foram O Cisne, de Charles Vidor, e Alta Sociedade, de Charles Walters. Em abril daquele ano, 1956, Grace Kelly fez o que tantas jovens sonham: jogou fora o papel de estrela e virou princesa de verdade, como num conto de fadas.
Que ela tivesse manifestado o desejo de, já sendo princesa, querer voltar a ser também estrela, de fato nunca soube. Mas o documentário mostra uma carta de Hitchcock para ela, datilografada – e mal datilografada -, com a data de 26 de junho de 1962, em que ele diz que compreende a recusa dela em fazer o filme.
O roteirista Joseph Stefano estava terminando a adaptação do romance de Winston Graham quando Hitch disse a ele: “Miss Kelly mudou de idéia”. No documentário, Stefano diz que argumentou com Hitch que o filme poderia ser feito com outras atrizes. Ele mesmo, Stefano, teria dito que poderia citar dez delas. Hitch, no entanto, teria dito a ele que não, acabou.
Stefano foi fazer outras coisas na vida. Hitch foi fazer Os Pássaros. Não sei por que raios ele escolheu Rod Taylor para o papel principal de Os Pássaros; Rod Taylor jamais foi propriamente um grande ator, nem um astro. Mas, para o papel da protagonista feminina, o inglês doidão escolheu Tippi Hedren, bela modelo jamais testada antes como atriz.
Os Pássaros foi feito em cima do roteiro de Evan Hunter. No documentário, Evan Hunter conta que recebeu de Hitchcock o livro Marnie. “Era um bom thriller. Não um mistério, mas um thriller, e um bom thriller. Muito suspense.”
E então Evan Hunter começou a trabalhar no roteiro de Marnie. Estava tudo indo bem, até que chegaram ao ponto do livro em que…
Se você não viu o filme, pare de ler. Vem aqui um spoiler
Acontece no transatlântico (embora, a rigor, ele seja um transpacífico) em que Mark Rutland e Marnie estão em lua de mel, rumo às ilhas do Sul do Pacífico. O filme está ali pela metade. Já haviam se passado vários dias e várias noites no navio, e Mark até então havia respeitado Marnie e seu declarado nojo de chegar perto de qualquer homem. No livro, numa determinada noite, Mark não consegue mais se controlar e estupra a esposa.
Evan Hunter não achava aquilo certo. Se o herói violentasse a esposa, todas as mulheres que vissem o filme passariam a odiá-lo. E como seria possível, depois de um ato de violência assim, fazer com que o herói parecesse herói de novo?
Hitch demitiu Evan Hunter. Chamou para fazer o roteiro uma dramaturga em início de carreira, Jay Presson Allen. É mais fácil controlar iniciantes do que gente experiente.
Se é que foi assim mesmo, Jay Presson Allen fez um trabalho danado de bom. O que se vê no filme é suave – uma sequência de grande tensão, mas não agressiva. A rigor, não se mostra um estupro, uma violação. Com brutalidade, Mark tira o roupão que cobria Marnie. A câmara mostra o rosto gelado, paralisado de medo, de Marnie – e corta. Não fica claro se haverá um estupro; só a violência de Mark ter despido Marnie já é uma violência grande. O fato de em seguida ela ter tentado o suicídio não indica claramente que houve um estupro. Até porque ela não suicida, ela tenta o suicídio, jogando-se na piscina do navio.
O diálogo que se segue é bem engendrado, inteligentinho – mas, a rigor, muito artificial:
Mark: – “Já que você queria morrer, por que não pulou?”
Marnie: – A idéia era me matar, e não dar comida para os peixes.”
Este me parece o pior diálogo do filme. Um ponto fraco. Todo o resto é genial.
Uma histórinha muito, muito pessoal
Pois é. Insisto em ficar dando meu viés pessoal quando falo sobre filmes, em vez de ser objetivo.
A primeira vez que vi Marnie foi no Cine Astor do Conjunto Nacional.
Adolescente, mineirinho, provinciano (embora já tivesse frequentado uns cursos de história do cinema e visto muito filme de grandes diretores na província), passava uns dias de férias na metrópole, e fui ver o novo Hitchcock que estreava. Vi pela primeira vez Marnie na sessão das 17h de um dia de semana, em fevereiro de 1965, no Astor do Conjunto Nacional. Quis ver o de novo o começo do filme na sessão seguinte, das 19h40, e então fiquei firme na minha cadeira, lá pela décima fileira, perto de onde hoje fica o café da Livraria Cultura. (Sei o horário e a data porque anotei no caderninho, claro.)
Abriram as portas para a entrada do povo que esperava o início da sessão das 19h40. Olhei para trás, e uma horda de gente entrava no cinema gigantesco, como uma manada de gado. Vi gente pulando sobre as cadeiras, procurando um lugar melhor, em vez de seguir pelos espaços entre as poltronas.
Não sei, não, mas acho que foi a partir daquele momento, ao ver um cinema gigantesco se encher loucamente de gente para ver um filme de Hitchcock, que comecei a pensar que queria viver em São Paulo.
Mas então, voltando à vaca fria…
Apesar da sessão lotada no Astor, Marnie foi um absoluto fracasso de crítica e público. Como disse lá na abertura deste texto, Pauline Kael, a grande dama da crítica americana, disse que o filme foi o scraping bottom da carreira de Hitchcock – e scraping bottom, a não que me contradigam, é o fundo do poço, o nadir.
No documentário The Trouble with Marnie, tenta-se explicar o fracasso, com vários tipos de argumentação.
Gostei do que diz um tal Robin Wood, autor do livro Hitchcock’s Films Revisited:
– “Eu diria (e isso pode parecer uma provocação, e até uma coisa arrogante), que se você não gosta de Marnie, então não gosta de Hitchcock. E vou mais longe: quem não ama Marnie, na verdade não ama o cinema.”
Marnie – Confissões de uma Ladra/Marnie
De Alfred Hitchcock, EUA, 1964
Com Tippi Hedren (Marnie Edgar), Sean Connery (Mark Rutland), Diane Baker (Lil), Martin Gabel (Sidney Strutt), Louise Latham (Bernice Edgar), Bob Sweeney (primo Bob), Alan Napier (Mr. Rutland), Bruce Dern (marinheiro)
Roteiro Jay Presson Allen
Baseado no romance de Winston Graham
Fotografia Robert Burks
Música Bernard Herrmann
Montagem George Tomasini
Figurinos Edith Head
Produção Universal. DVD Universal.
Cor, 129 min
R, ****
Tanto quanto me lembro, este foi mesmo o primeiro filme do velho Hitch que eu vi na vida. Pelo menos é o que consta nos caderninhos dos meus 15 anos. É claro que nessa altura pouco ligava ao nome do realizador, mas recordo que foi um filme que me impressionou muito.
Continuo a gostar de o ver e rever, e é hoje um dos meus preferidos de Hitchcock, aquele tipo de filmes para os quais estou sempre disponível.
Sempre achei Tippi Hedren muito sem aquele yumpf, sem sal, uma loura fria. E pensar que bem poderia ter sido a bela Grace Kelly…
O Velho Hitch, ao meu ver, errou a mão ao escolher Tippi, como errou ao escolher Julie Andrews para Cortina Rasgada, ela parece tão deslocada no filme. Mas aí já é outra história, não?
Abraços
Pois é, eu adoro Marnie, confissões de uma ladra, é todo um suspense, aquela ladra sexy passando a perna nos ricaços, parecendo muito competente como secretária, mas por trás já armando o bote até q se depara com o personagem do Sean Connery, sempre gostoso e já esperto; ele saca logo o golpe dela mas aí já se apaixonou e se empenha em descobrir porquê uma moça bonita, preparada e, aparentemente cheia de boas referências tem essa compulsão. Não vou revelar o trauma dela, o q a leva a roubar sem necessidade porque seria um spoiler, não quero estragar o prazer de ninguém com o final do filme, mas q é surpreendente é. Só faço uma restrição: como psicóloga, sei q reviver um trauma não cura ninguém do dia para a noite, isso seria um milagre. Para curar a Marnie de verdade seriam necessários pelo menos alguns anos de psicoterapia, é claro.
Guenia Bunchaft
http://www.sospesquisaerorschach
corrigindo
http://www.sospesquisaerorschach.com.br
Rapaz, como vc é bom!! E quanta coincidência meu Deus… Querer sair de BH é sinal de que o sujeito pode vir a ser alguma coisa na vida. Vc virou. Eu ainda tenho esperança. Eu caí de amores pela Diana Baker quando vi o filme lááá em 1800, não sabia que se chamava Diane Baker, esqueci, revi há uns dois anos numa mostra Hitchcock aqui na roça, aí aprendi o nome.
E o Sean Connery… seguinte, o homem é escocês, é protestante? Proetstante consegue fazer aquela coisa homem mermo, machochô, bater o pau na mesa? Acho que não…
Marnie não foi muito bem recebido quando estreou. Como a filha de Hitchcock diz no documentário “The trouble with Marnie”, as pessoas esperavam mais suspense e nãos tanta introspecção. De facto, Marnie não é o típico filme de Hitchcock. Não há muito suspense. Trata-se mais de um drama psicológico. Se antes o filme era um “menor” de Hitchcock, hoje é bastantes reconhecido. Não é tão irónico como Vertigo ou Os pássaros mas é bastante conhecido, acho eu. Posso afirmar com alguma segurança que é bastante estudado dentro da teoria fílmica feminista, o que, a meu ver, lhe dá valor. De facto, é um filme rico que pode ser estudado. Pessoalmente, gosto bastante de Marnie. A música é um pouco chata. Herman fez melhores trabalhos em Vertigo e em Psycho. Mas a história é ótima. A relação entre mãe e filha está muito interessante e a primeira cena em que a mãe de Marnie aparece é a minha favorita. Embora, a meu ver, não tenha a riqueza de Sonata de Outono, está muito boa, pois quase um certo desconforto no espectador. Visualmente a cena é agradável e gera conforto: lar, mãe, filha, presentes. Mas o ambiente escuro, os ciúmes de Marnie em relação à menina chata, o medo das flores vermelhas, a relação esquisita da mãe em relação à filha causa desconforto no espectador. A relação fetiche de Mark em relação a Marnie é muito interessante e encontra paralelismos com a mais bem sucedida relação sado-masoquista em Vertigo. Li uma vez uma ideia muito interessante de que Hitchcock colocou os nomes de Marnie todos começados por “Mar”: neste momento apenas me lembro de Marnie e de Margaret. Aliás, Hitchcock usava muitos nomes femininos começados por M nos seus filmes. Fico um pouco intrigado com o facto de Marnie usar batom vermelho (mas vá, é um vermelho pouco vivo). A cena da violação é muito confusa. Eu percebo que hitchcock quisesse essa cena: é forte, facilmente se torna clássica. Mas concordo com o roteirista: a violação afeta a relação do espectador em relação a Mark. Apesar de tudo, essa violação é estranhamente romântica. Ok, uma violação é uma violação. mas a forma como é filmada, o jeito dele cobri la carinhosamente com o robe. Bem, é uma cena estranha, desconfortável. Um filme forte, sem dúvida. Reparem na canção que as raparigas cantam à entrada da casa da mãe de Marnie. Li num ensaio que é um sinal da vida de Manrie. No final, voltamos a ouvir a canção e julgo que li que era um sinal de que a vida de Marnie não se ia alterar (não estou muito certo desta última frase).
Para mim “Marnie” está mais para drama que suspense; é um dramaço cheio de sutilezas hitchcockianas.
Discordo em parte sobre a atuação de Tippi Hedren, que achei bastante irregular: em alguns momentos ela está bem (principalmente para quem não sabia atuar), mas nas cenas que exigiam mais dramaticidade ela só sabe fazer biquinho. Perto de Sean Connery sua atuação é insípida. O cara já era bom. Engraçado que em “The Girl”, quando a secretária do Hitch entra e fala que ele tinha aceitado o papel, desde que fosse tão grande quanto o de Hedren, a personagem de Tippi diz que ia ter que dar o seu melhor para ser tão fria quanto um mármore nas cenas com ele.
Sobre o possível estupro: nem desconfiei quando assisti, e só agora relendo seu texto, é que me dei conta de que pode ter havido sim, embora não fique claro. Essa é a parte do filme em que o personagem de Sean Connery se torna mais agressivo, e a forma como ele entra no quarto, bate a porta e tira o roupão dela diz muito. Depois ele a beija, e ela faz a tal cara fria de mármore (essa cena também aparece em “The Girl”). Acho muito legal a posição e o truque de câmera quando ela vai caindo na cama, depois que ele a envolve com o seu robe.
De fato, se ficasse explícito que ele a tinha violentado, o personagem seria odiado pelas mulheres. Eu passei parte do filme me perguntando o porquê de ele ser tão bom, compreensivo, paciente etc, na maioria do tempo. Um homem assim simplesmente não existe, principalmente no tocante a ficar sem sexo. Como Marnie diz em uma de suas discussões com Mark, dentro do navio: “Oh, homens! Diga ‘não, obrigada’ a um deles, e bingo, você é candidata ao hospício.” (E a coisas muito piores, diga-se de passagem, e aí entra a cena do estupro). Se Hitch demitiu a primeira roteirista porque quis manter a cena, então a violência de fato aconteceu, o que torna Mark repugnante para mim. Antes disso, eu já achava revoltante os momentos em que ele queria dominá-la a todo custo. A questão é que a situação não fica clara, cada um interpreta como quer, e aí entra o estado de espírito do espectador. Se prestarmos atenção, ela caindo na cama meio inerte, depois o close que vai fechando nos olhos dele e a câmera que volta para o rosto dela e depois segue para a escotilha mostrando o mar, são bem simbólicos.
Gostei muito da relação de Marnie com os cavalos: era sua forma de fugir do mundo real, e do mal que os humanos podiam lhe causar. (E quando Forio precisa ser sacrificado? Que dó!). Ao mesmo tempo, parece que Hitchcock faz alusão o tempo todo sobre ela ser um “animal” que precisa ser domado/estudado, fato que me incomodou. Não à toa o personagem de Connery tem a zoologia como hobby, e meio que se interessa por Marnie, como um objeto de estudo, e talvez dominação.
Assim como Miguel, achei a trilha um pouco chata/enjoativa em alguns momentos, mas para criar suspense e tensão Herrmann era o cara. A ausência de música na sequência do furto é realmente sensacional.
E já que ele tocou no assunto, os outros nomes que Hitch escolheu para a personagem, além de Margaret/Marnie, foram Mary, Martha e Marion. Mas a personagem não usa batom vermelho em momento nenhum, nisso Miguel se equivocou.
Sean Connery, apesar das feições jovens, aparentava mais idade. Eu dava no mínimo 40 anos pra ele antes de ler seu texto, e ia mesmo procurar que idade ele tinha. Mas para 34 anos já estava super charmoso (o auge dos homens, para mim, se dá aos 40). Um dos atores mais másculos do cinema, e o melhor 007, sem dúvida!
E o que dizer da mãe de Marnie? Daria pra falar muita coisa, a começar que ela tinha uma história bem sofrida, o que pode explicar o rumo que tomou na vida. Só acho que as pessoas sempre podem tentar melhorar, se quiserem. Ela não precisava agir daquela forma com Marnie, sendo que a maior culpada pelo o que aconteceu era ela mesma, que levava homens desconhecidos para dentro de casa, tendo uma filha pequena.
No mais, o que foi aquela sua aparição à la Norma Bates na porta do quarto onde Marnie dorme quando vai visitá-la? Creepy! Hitchcock sendo Hitchcock, em ótima forma!
Detalhe bobo: Sean Connery é super alto, grande, um homem que enche a tela, mas fiquei espantada ao ver como Alan Napier era ainda mais alto que ele.
A propósito, dei uma busca para ver como ele está hoje, e sua última aparição em público foi em setembro do ano passado, para assistir a uma partida de tênis em Nova York. O chato foi ver nos comentários as pessoas falando que ele está debilitado, que é triste vê-lo assim, etc. Eu achei que ele está ótimo para 85 anos. Normal que esteja mais frágil e que precise de ajuda para caminhar. Aparenta estar lúcido, anda com as próprias pernas, deve comer e tomar banho sozinho, parece que não tem maiores problemas de visão, não se submeteu a plásticas. Ou seja, envelheceu super bem. E estava numa elegância só, e olha que não sou de reparar nisso. Sir Sean Connery continua de parabéns! Gostaria de vê-lo atuar novamente, ainda que num papel pequeno.