Anotação em 2010: Um belo filme, este O Mensageiro. Duro, denso, pesado, forte. Um panfletaço contra a guerra do Iraque, contra todas as guerras, uma beleza de retrato sobre as feridas profundas deixadas pelas guerras na sociedade americana.
Na minha opinião pessoal, é um filme bem melhor do que Guerra ao Terror/The Hurt Locker, de Kathryn Bigelow, o grande vencedor do Oscar 2010 que trata do mesmo tema – levou seis prêmios da Academia, inclusive três dos cinco mais importantes, os de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro original. O Mensageiro, da mesma safra de 2009, teve apenas duas indicações, de Woody Harrelson para melhor ator coadjuvante (embora ele seja um dos dois protagonistas) e de Alessandro Camon e Oren Moverman para melhor roteiro original. Não levou nenhum Oscar; ganhou oito outros prêmios e teve outras 16 indicações.
Ao contrário de Guerra ao Terror, praticamente todo passado no Iraque, este aqui não tem uma cena no front: toda a ação se passa nos Estados Unidos, numa cidade não explicitada – pelos créditos finais, ficamos sabendo que o filme foi rodado no Estado de Nova Jersey.
A idéia básica da trama em si já é um brilho, e tem um impacto fortíssimo: os dois protagonistas, o sargento Will Montgomery e o capitão Tony Stone – interpretados por Ben Foster e Woody Harrelson – pertencem ao que o capitão chama de esquadrão dos anjos da morte, os encarregados de dar ao familiar mais próximo a notícia do falecimento de um soldado no Iraque.
Pior que essa tarefa, só mesmo a de estar lá naquele país estranho e longínquo lutando numa guerra suja cujo sentido os soldados não compreendem.
A partir dessa idéia básica, os roteiristas Alessandro Camon e Oren Moverman – este último também diretor do filme – construíram, com muito talento, dois personagens fortes, marcantes, impressionantes.
Um jovem traumatizado, um sujeito maduro amargo, triste
O sargento Will Montgomery é bem jovem – deve ter uns 25 anos, se tanto (Ben Foster estava com 29 quando o interpretou). Foi gravemente ferido no Iraque, passou um longo tempo em recuperação, voltou para casa condecorado como herói; quando a ação começa, tem ainda pela frente mais três meses de serviço militar, e é – contra sua vontade, e para seu horror – convocado para trabalhar como mensageiro da morte sob o comando do capitão Stone. A namorada que deixou ao ser enviado para o Iraque, Kelly (Jena Malone), por quem ele ainda é profundamente apaixonado, tem agora outro namorado firme. Aos traumas e ferimentos que trouxe do Iraque – cujas origens o espectador só ficará conhecendo bem no fim da narrativa –, se soma então a perda do grande amor. Vive em profunda angústia e desespero; não dorme direito, esmurra as paredes à noite – mas, fiel seguidor da norma segundo a qual bom cabrito não berra, no serviço contém as dores, e procura executar da melhor maneira possível suas tarefas.
O capitão Stone é um alcoólatra há três anos sem beber, com o auxílio do AA; contabiliza três casamentos fracassados, e esconde a amargura sob uma capa dura de profissional dedicado, irrepreensível, que segue à risca o que mandam os regulamentos e seus superiores. A grande experiência de anos fazendo aquele serviço horroroso, deprimente, assustador, o ensinou diversas regras – que repassa para o novato como um Evangelho a ser seguido à risca. A notícia da morte deve ser dada o mais rapidamente possível, antes que as emissoras de TV ou algum colega do morto o façam; só se deve dar a notícia ao parente mais próximo indicado pela ficha do militar – nunca ao irmã, à irmã, à amante. Deve-se bater na porta da casa, e evitar a campainha, porque a campainha pode eventualmente tocar alguma música, o que poderá distrair o mensageiro. Nunca se deve tocar no parente, dar abraço, apertar a mão.
O militar mais jovem, afundado em traumas, mágoas, desespero, vai odiar profundamente o militar mais velho que lhe dá essas ordens da maneira mais fria e impessoal possível.
Em uma de suas primeiras missões, ao noticiar a morte de um soldado para o pai dele (interpretado por Steve Buscemi), o sargento Will leva um cuspe na cara e ofensas duras – o pai do morto pergunta por que ele não está no front lutando, o chama de covarde.
Diálogos fortes, belas interpretações
O filme tem diversos diálogos fortes, bem construídos, em que se fala explicitamente do horror que é tudo aquilo – mas, de maneira interessante, fascinante, a narrativa alterna explicitude com meio tons, com fatos não mostrados às claras, e sim de forma implícita, quase elíptica.
Woody Harrelson é um grande ator, e tem ainda aquela capacidade especial de apresentar mil caras diferentes – ao contrário de um Jack Nicholson ou um Robert De Niro, por exemplo, que estão sempre iguais nos mais diversos papéis. Aqui, talvez propositadamente, está mais careteiro do que de costume – mas isso não prejudica sua interperetação, porque o personagem que ele compõe é assim, daquele jeito. O jovem Ben Foster, que eu não conhecia (ou de quem não me lembrava, o que dá no mesmo), tem uma atuação brilhante, excepcional. Expressa maravilhosamente bem aquele vulcão de emoções represadas à força – mas prestes a explodir a qualquer momento.
(Eu de fato não me lembrava de Ben Foster, mas, ao dar uma olhada agora na filmografia dele, constato que já havia visto dois filmes em que ele trabalha, Um Grande Problema/Big Trouble, de 2002, e Alpha Dog, de 2006.)
E Samantha Morton (na foto abaixo), outra atriz extraordinária, também capaz de mil caras, está também brilhante como Olivia, a jovem a quem o capitão e o sargento vão comunicar a morte do marido, e por quem o jovem sentirá profunda atração.
De maneira muito suave, sutil, o diretor Moverman ajuda um pouco no elogio da construção de uma sociedade menos racista, mais solidária: Matt, o filho de uns seis, sete anos de Olivia e do militar agora morto em combate, é mulato. Um pequeno toque, uma elegia à bendita miscigenação, essa maravilha que há poucas décadas era proibida na sociedade e no cinema americanos.
A estréia de um diretor que mostra talento
Vejo agora no iMDB que este foi o filme de estréia do israelense Oren Moverman na direção. Cacilda: o cara tem talento. Demonstra uma enorme segurança e maturidade; o filme não trai inexperiência em momento algum. É autor ou co-autor do roteiro de sete filmes, inclusive de Eu Não Estou Lá/I’m Not There, ao lado do diretor Todd Haynes, o fascinante filme sobre “as muitas vidas de Bob Dylan”, e de Vida de Casado/Married Life.
Pelo que mostrou aqui, dá para se esperar muita coisa boa desse Oren Moverman.
Um pequeno detalhe de que gostei muito: lá pelo meio do filme, o rádio do carro em que estão os protagonistas toca “The night they drove old Dixie down”, de Robbie Robertson, do grupo The Band, um dos maiores sucessos da carreira de Joan Baez. O personagem de Woody Harrelson canta junto com The Band a letra. Bela lembrança teve a equipe do filme.
O Mensageiro é um filme forte, poderoso. Por dar um retrato duríssimo dos efeitos da guerra na vida das pessoas, ele me fez lembrar outro filme extraordinário, No Vale das Sombras/In the Valley of Elah, de Paul Haggis.
O Mensageiro/The Messenger
De Oren Moverman, EUA, 2009
Com Ben Foster (sargento Will Montgomery), Woody Harrelson (capitão Tony Stone), Samantha Morton (Olivia Pitterson), Jena Malone (Kelly), Steve Buscemi (Dale Martin), Eamonn Walker (coronel Stuart Dorsett)
Argumento e roteiro Oren Moverman e Alessandro Camon
Fotografia Bobby Bukowski
Música Nathan Larson
Produção Sherazade, Mark Gordon Company, Good Worldwide
Cor, 113 min
****
Como habitualmente só agora vi o filme, ando sempre com um atraso bem grande, mais ou menos um ano.
Concordo com o Sérgio, é um filme muito bom sobre a guerra do Iraque e aborda o tema de uma forma original, não há uma só cena de guerra!
“The Hurt Locker” ou “Green Zone” não me suscitam grande interesse, pelo contrário, acho-os cansativos.
Enganei-me aí em cima, devia ter escrito dois anos, ele estreou em Portugal em Fevereiro de 2010…