4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Na minha opinião, O Inquilino é um dos filmes mais apavorantes da história. E a atuação de Roman Polanski, esse ator bissexto, é espetacular, sensacional, brilhante. É uma atuação tão perfeita quanto a de Jack Nicholson em O Iluminado, outro dos filmes mais aterrorizadores de todos os tempos.
Minha lista de filmes apavorantes, aterrorizadores, é simples. Listas são sempre polêmicas, nunca ninguém concorda com qualquer lista que seja, mas lá vai. Para mim, os filmes que mais apavoram, dão medo, são – sem ordem; não saberia botar em ordem – O Iluminado, de Kubrick, O Inquilino, Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary; e eu incluiria também A Mão que Balança o Berço, de Curtis Hanson, e as duas versões de Água Negra, a original de Hideo Nakata, de 2002, e a refilmagem americana feita por Walter Salles em 2005.
São, todos eles, filmes que transcendem o gênero filme de terror, vão muito além dele. São, todos, filmes que passam longe do terror para adolescentes verem se divertindo e comendo pipoca. Fazem um terror para adultos, um terror psicológico; vão fundo nos nossos medos mais escondidos, os medos que aparecem nos piores pesadelos. São, todos eles, filmes passados na sua maior parte em ambientes fechados, claustrofóbicos.
E é absolutamente louco que, numa relação de oito filmes, três sejam de autoria de Roman Polanski. Eta sujeito doido. Absolutamente doido, e absolutamente genial.
A descrição minuciosa, detalhada, do processo de enlouquecimento
Para dar uma sinopse, recorro ao Cinéguide, o guia mais sintético, menos palavroso que existe. Interessante: o Cinéguide define O Inquilino como um drama, não como um filme de terror:
“Arquivista aluga em Paris um apartamento cujo locatário precedente se matou. Drama.”
Vai ser sintético assim num conto de Dalton Trevisan, no Twitter, num hai-kai.
Leonard Maltin foi quase tão sintético quanto o Cinéguide. Deu 3.5 estrelas em 4, e resumiu assim: “Filme de horror único, com um elenco bizarro, sobre um um tímido empregado de escritório que aluga um apartamento cujo morador anterior tentou o suicídio. Levou cacetadas da crítica na época do lançamento, mas pode-se apostar com certeza que se tornará um cult com o passar dos anos; ótima fotografia de Sven Nykvist.”
Não soube que a crítica deu cacete no filme na época do lançamento. É bem interessante que Maltin informe isso, e vejo que ele tem toda razão: Roger Ebert, um crítico que admiro bastante, de fato desancou com o filme: “The Tenant não é meramente ruim – é um embaraço.” E em seguida ele descreve detalhadamente os acontecimentos do filme, até mesmo a seqüência final – mas achando-os ridículos, em vez de bem escritíssimos, bem feitíssimos, e apavorantes. Ebert não entrou no filme, não sintonizou com o filme, não pegou o espírito da coisa. É fantástico. Isso acontece mesmo – aconteceu comigo várias vezes, como este site demonstra à exaustão.
Exatamente como O Iluminado, exatamente como Repulsa ao Sexo, O Inquilino é a descrição minuciosa, detalhada, e profundamente apavorante, do processo que leva uma pessoa à completa loucura. Não é repentino – vai acontecendo aos poucos. Como o Jack Torrance interpretado por Jack Nicholson, como a Corole interpretada por Catherine Deneuve, o Trelkovsky de Polanski vai pouco a pouco perdendo a noção da realidade, o juízo, a sanidade. Vai entrando num mundo que só ele enxerga – e é um mundo infernal, é o próprio inferno.
Ele poderia ser um dos maiores atores da história
E o ator Roman Polanski, repito, faz um trabalho admirável. A descida ao inferno de Trelkovsky está expressa no rosto do ator – vamos vendo no rosto dele a alienação chegando, crescendo, tornando-se mais poderosa que ele, tomando conta.
Se quisesse, se por hipótese resolvesse se dedicar a essa carreira, Polanski poderia ser um dos maiores atores da história do cinema. Ele demonstrou uma perfeita veia cômica como o apatetado assistente do cientista em A Noite dos Vampiros/The Fearless Vampire Killers, de 1967. Foi brilhante como o policial do interior em Uma Simples Formalidade/Una Pura Formalità, de Giuseppe Tornatore, de 1994 (um filme, aliás, que me impressionou, mas que eu não entendi direito, conforme demonstraram leitores deste site; de vez em quando, eu, assim como o Ebert, não entendo um filme). Em Chinatown, de 1974, tem um papel pequeno, mas marcante, como o sujeito que dá uma facada no nariz do detetive interpretado por Jack Nicholson – olha ele aí de novo.
Aliás, em Chinatown, Polanski dirigiu outro cineasta que, como ele próprio, também gostava de trabalhar como ator – e, como ator, John Huston também é demais, é extraordinário.
Um elenco maravilhoso
Em sua resenha, Leonard Maltin disse que o elenco de O Inquilino é bizarro. Não sei por que bizarro. É um elenco espetacular, todo ele. Shelley Winters, a grande Shelley Winters, já velha e bem gorda, faz uma concièrge apavorante – nunquinha eu não alugaria um apartamento num prédio que tivesse aquela mulher como zeladora, credo em cruz. Outro americano veterano, Melvyn Douglas, também assusta como o proprietário do apartamento que fica vago quando a antiga inquilina pula da janela. Cruzar com aquela figura nos corredores do prédio deve de fato ser assustador.
Lila Kedrova, a Bouboulina de Zorba, o Grego, fantástica atriz russa, aparece pouco mas impressiona como a vizinha também perseguida pelos demais moradores do prédio sombrio, lúgubre, feio, velho, decadente, horripilante. E é interessante ver, num papel mínimo, secundário, terciário, uma então jovem Josiane Belasko, que teria mais tarde uma ótima carreira como atriz e diretora.
E ainda tem Isabelle Adjani, essa deusa, esse absurdo. Estava com 21 aninhos em flor, a Adjani, mas já atuava desde os 15; tinha acabado de fazer A História de Adèle H., com Truffaut. Meu Deus do céu e também da terra, que beleza luminosa, a da Adjani.
Na verdade, a personagem de Isabelle Adjani, Stella, me deixou um tanto intrigado, agora, quando revi o filme pela primeira vez na vida. Stella é amiga de Simone Choule, a locatária anterior do apartamento que havia se jogado da janela; ela vai visitar Simone no hospital, onde Simone está inteiramente enfaixada, como uma múmia, e lá se encontra com Trelkovsky, que, curioso, quis ir ver a mulher que morava onde ele agora está morando. Stella e Trelkovsky saem juntos do hospital, vão a um café, a um cinema – e Stella se lança para cima dele.
Me pareceu ilógico, irracional, inverossímil que uma jovem parisiense lindérrima daquele jeito fosse se interessar tanto e tão depressa e tão duradouramente por aquele imigrante da Europa Central, baixinho, narigudo, tímido, desajeitado, sem charme, sem brilho, sem dinheiro. A rigor, essa inconsistência do personagem de Stella me pareceu, na revisão, o único pequeno senão do filme, a única coisa que foge da perfeição.
Esta vez agora, em outubro de 2009, foi, como já disse, a segunda vez que vi O Inquilino. Apenas a segunda vez – sou um sujeito que gosta de rever os filmes, é comum que tenha visto alguns filmes quatro, cinco, até mais vezes. O Inquilino, só tinha visto uma única vez, em 1976, na época do lançamento – e o filme me impressionou tanto, mas tanto, mas tanto, que lembro até hoje de como saí do cinema, o velho Metro da Avenida São João, no Centro de São Paulo, apatetado, tonto, zonzo. Lembro com quem eu estava, lembro o lugar onde fomos jantar depois. Nunca tinha tido coragem de revê-lo, tal a angústia em que ele me deixou da primeira vez. Mary também tinha visto só uma vez, e queria rever – mas fez questão de que víssemos num fim de semana, durante o dia. Não queria ver de noite, com medo de não dormir direito. É apavorante assim, O Inquilino.
O Inquilino/Le Locataire
De Roman Polanski, França, 1976
Com Roman Polanski (Trelkovsky), Isabelle Adjani (Stella), Shelley Winters (a Concièrge), Melvyn Douglas (Mr. Zy), Jo Van Fleet (Mme. Dioz), Bernard Fresson (Scope), Lila Kedrova (Mme. Gaderian), Claude Dauphin, Claude Pieplu, Rufus, Romain Bouteille, Jacques Monod, Josiane Balasko
Roteiro Roman Polanski e Gérard Brach
Baseado na novela Le Locataire Chimerique, de Roland Topor
Fotografia Sven Nykvist
Música Philippe Sarde
Produção Alain Sarde, Marianne Productions
Cor, 125 min
R, ****
Achei fundamental registrar: eu também jamais esqueci o dia em que assisti ao “Iluminado”. Foi também na década de 70. Eu sofria uma crise aguda de rinite alérgica, o que aumentou exponencialmente a sensação de “sufoco” que o filme propicia. Saí no meio da seção, pra não terminar como o personagem… Décadas depois, lá estava o filme na telinha, numa seção coruja… Tomei um antialérgico, acendi todas as luzes da casa e me enchi de coragem. Valeu a pena, ah, se valeu! O filme é realmente uma obra prima.
Recordo muito bem as risadas de meu irmao e minhas após vr o filme. Nao sei ao certo se expressavam uma reaçao aos acontecimentos que levaram à ação ápice do personagem central ou se indicavam a nossa indignaçao por ter perdido duas horas assistindo a um filme que, em princípio, julgamos ridículo. Em resumo, foi o filme mais aterrorizante que vimos até hoje!Pena ter perdido várias noites de sono pensando naquela história macabra,mas lamentamos mesmo é a falta de mais exibiçoes dessa excelente obra de Polanski
Descobri este teu incrível blogue apenas há alguns dias, mas estou adorando.
Fiz um link do meu texto sobre este filme para aqui, porque acho que a leitura irá enriquecer ainda mais os leitores
Abração
O Rato Cinéfilo
Caríssimo Rato Cinéfilo,
Esta sua mensagem, e também o link que você fez para cá, para o 50 Anos de Filmes, abaixo de seu texto sobre “O Inquilino”, me deixaram encantado. Poderia até dizer orgulhoso, envaidecido, embora já esteja velho demais para essas coisas…
Por grande coincidência, poucos dias atrás um conterrâneo seu, José Luís, que me honra enviando às vezes ótimos comentários cá para o 50 Anos, me sugeriu conhecer o seu blog/blogue. Fiquei impressionadíssimo com ele. Babei com a beleza das fotos antigas que você conseguiu reunir de astros e estrelas em Cannes, desde o início dos anos 50. E seus textos são maravilhosos.
Vou imediatamente colocar um link no 50 Anos para o Rato Cinéfilo.
Parabéns pelo seu trabalho, e um abraço.
Sérgio
Filme extraordinariamente fantástico ! Polanski é mestre.
http://reinaldokramer.wordpress.com/2010/05/31/128/#respond
Vi finalmente o filme e lamento muito dizer que me decepcionou; não vou dizer que é mau, eu é que não sintonizei como o Ebert.
Está muitíssimo bem realizado, os actores são perfeitos, a fotografia 5 estrelas, música idem, mas aborreci-me de morte.
Nunca durante todo o filme eu consegui ter interesse pelas vicissitudes do inquilino, nunca me identifiquei com ele (com as outras personagens nem pensar).
É o relato minucioso de uma pessoa que vai enlouquecendo sem que nós saibamos porquê.
Tenho pena, este era um filme que nunca tinha visto e estava com muitas esperanças.
A anos-luz de “Rosemary’s Baby” quanto a mim, esse sim um filme que ainda agora me assusta, e onde a identicação é brutal com a Rosemary, grávida, doente, cada dia mais magra e mais pálida, vítima inocente das forças demoníacas.
Essas coisas são assim mesmo, não é. caro José Luís? Isso acontece com todos nós, creio. Há filmes com os quais a gente simplesmente não sintoniza. É uma pena que você tenha acontecido com relação a esse filme, do qual gosto muito.
Um grande abraço!
Sérgio
Eu gostaria de possuir a habilidade que pessoas como o diretor Roman Polanski, ou o escritor Dostoiévski, possuem. Eles são mestres em criar e contar histórias de uma forma em que a atenção dos interlocutores é presa de tal forma que só conseguimos nos desvencilhar da armadilha ao conhecer o desfecho das mesmas. Há pessoas que julgam o filme ruim, mas eu protesto contra tais críticas pelo simples motivo: todo tipo de arte – como mencionou o dono do site – é uma forma de enriquecer a humanidade que existe dentro de nós. Alguns artistas trabalham o lado alegre e divertido, mas outros, como Polanski e Kubric, conduzem a experiência da sua arte pelas passagens obscuras do ser humano. Já vi filmes tanto de um como de outro e posso dizer que em ambos os casos, as impressões são sempre indeléveis, profundas. Neste tipo de filme, os diretores parecem pôr a descoberto aqueles sentimentos e compreensões do mundo que os humanos tinham antes de se tornarem o que são hoje: animais enjaulados na clausura da civilidade. A visão de Polanski e de seus pares nos convida a dar uma expiadinha no que se poderia ver debaixo do verniz que recobre cada um de nós.
Assisti ontém e, assim como o Roger Ebert – em outro plano,outra vida como dizem – e o amigo José Luiz, Também não sintonizei com o filme.
Como foi dito , o filme está muito longe de não ser bom. A Shelley o Melvin e o Roman já são um super aval para o mesmo . Mas , não “desceu”.
Não vi motivos para o Trelkovsky entrar naquele processo de loucura.
De fato, o lugar em si,a zeladora,o dono do imóvel, os vizinhos eram motivos suficientes para não ficar ali. É … mas aí não haveria filme. Mas, concordo muito com o José Luis.
” O Iluminado “, este sim , me impressionou por demais, me deixou bastante inquieto me assustou muito. E – opinião minha – o Jack Nicholson esteve muito melhor que o Roman , neste aqui.
” O Bebê de Rosemary ” e ” A Mão que Balança o Berço ” , também foram dois filmes que me impressionaram muito mais que “O Inquilino”.
Estes dois últimos que citei , assisti duas vezes e , confesso que não tenho vontade de assistir novamente ” O Inquilino “.
É , não desceu mesmo.
Um abraço !!
Muito boa a resenha, concordo com tudo, é um dos filmes mais apavorantes da história. Lembrando que a história foi baseada num conto de Roland Topor
Você nunca enxergou aí uma metáfora sobre a repressão aos judeus???