3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Lola, de 1961, foi o primeiro longa-metragem do grande Jacques Demy, um cineasta apaixonado pelo cinema, pelo amor e pelos encontros e desencontros da vida, as peças que o destino prega nas pessoas.
Nos créditos iniciais, logo abaixo da palavra Lola em letras imensas, aparece a dedicatória: “À Max Ophüls”. Ophüls, o cineasta da elegância, foi o autor, entre muitos outros filmes famosos, de Lola Montès, de 1955, e La Ronde, de 1950. De Lola Montès, Demy tirou o nome da personagem principal, que é também o nome do filme; de La Ronde, tirou a estrutura da narrativa circular, à la carrossel, uma dança de roda, diversos personagens que vão interagindo uns com os outros, a quadrilha drummondiana, Carlos que amava Dora que amava Pedro que amava…
Os personagens de Jacques Demy (1931-1990) se encontram e se desencontram constantemente; passam pela mesma rua, cruzam-se sem se verem, para só se conhecerem bem depois. O cinema repetiria muito esse esquema, nos 50 anos posteriores à estréia no longa-metragem desse cineasta maior. Lelouch e Kieslowski, outros cineastas grandes, foram fundo nisso. As trapaças do destino virariam lugar-comum também em dezenas e dezenas de outros filmes menores, em especial comédias românticas, esse gênero cinematográfico tão bobinho quanto indispensável.
Uma ronda de desencontros
A ronda de Demy é, como a quadrilha drummondiana, uma coleção de desencontros – “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”, como disse outro poeta, Vinicius.
É assim: Roland Cassard (Marc Michel, com Anouk Aimée na foto acima) está desencontrado consigo mesmo e com a própria vida. Não acha graça em nada; entendia-se (e às vezes fico pensando que o tédio é uma invenção francesa; como se entendiam, os personagens do cinema francês, meu Deus do céu e também da terra!). Não gosta do trabalho – e cita para o chefão a frase de um romance que leu, cujo título o espectador, pelo menos o pouco culto como eu, não fica sabendo qual é: “Não há dignidade possível, não existe vida real para um homem que trabalha 12 horas por dia sem saber por que ele trabalha”. Ao que o chefão responde que, quando Roland Cassard souber por que trabalha, pode voltar – até lá, que vá cuidar da vida na rua, fora da empresa.
Na rua, Roland Cassard vai literalmente trombar com Lola – o papel de Anouk Aimée. Levam alguns segundos para se reconhecerem: tinham sido amigos de infância, quando ela ainda se chamava Cecile, mais de dez anos atrás. Nunca mais haviam se revisto.
Roland, que sempre havia gostado de Cecile, percebe que durante todos aqueles dez anos sentiu falta dela, como de um membro que já tivesse perdido. Apaixona-se perdidamente por ela. Só que a ex-Cecile, hoje Lola, dançarina de cabaré, anda trepando com Frankie (Alan Scott), um jovem americano prestando serviço militar na Marinha, naquele momento em folga ali na cidade portuária de Nantes. Nada sério; na verdade, Lola, ex-Cecile, continua à espera de seu primeiro e grande amor, Michel (Jacques Harden), que a abandonou sete anos antes, ela adolescente grávida do filho dele, Yvon (Gérard Delaroche), e sumiu no mundo.
Lola espera Michel, que quase atropela Frankie, que come Lola
Como o filme é uma ronda, uma narrativa circular, à la carrossel, uma dança de roda, a primeira pessoa que o espectador vê, andando junto do mar de Nantes num Cadillac branco, é Michel – embora, naturalmente, o espectador ainda não saiba que ele é Michel, sabe só que é um sujeito rico andando por Nantes num Cadillac branco. O Cadillac branco quase atropela um grupo de marinheiros americanos, entre os quais está Frankie, que depois o espectador ficará sabendo que anda comendo Lola.
Roland Cassard freqüenta o café onde trabalha a mãe de Michel, Jeanne (Margot Lion). Freqüenta também uma livraria, onde encontra uma senhora burguesa, Madame Desnoyers (Elina Labourdette), com sua filhinha Cecile (Annie Duperoux), que faz Roland Cassard se lembrar imediatamente da sua amiga de infância Cecile, com quem pouco depois ele vai literalmente trombar na rua e tombar de amor de novo. Madame Desnoyers, uma senhora solitária, por seu turno, nutrirá a esperança de que Roland Cassard se interesse por ela. E enquanto isso a jovem Cecile, que está para completar 14 aninhos de idade, vai conhecer o marinheiro americano Frankie, e vai ter por ele sua primeira paixonite.
Uma narrativa circular, à la carrossel, uma dança de roda, uma quadrilha drummondiana onde (quase) ninguém se encontra: Cecile que tem paixonite por Frankie que está a fim de Lola, que é cortejada por Roland que ama Lola que ainda espera por Michel que desapareceu no mundo. E Madame Desnoyers tem esperanças em Roland, que não quer saber dela porque sempre amou Lola que dá para Frankie mas ainda espera por Michel que sumiu no mundo…
Tive por Lola um imenso amor adolescente
Tinha visto Lola apenas uma vez na vida, acho, ainda bem adolescente, depois de ter vivido várias paixonites. Acho que na época estava vivendo o que considerava o Grande Amor da Vida, por Beth, a quem nunca mais revi, depois dos 18 anos, 42 anos atrás. Depois que vi pela primeira vez Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg, o filme de 1964 de Jacques Demy, anotei uma frase adolescente, dirigida a Demy, do tipo: “Obrigado, seu filho da puta, por mostrar que o Grande Amor acaba”. Nunca reli a anotação em que disse isso, mas sempre me lembro dela.
Tive por Lola um imenso amor adolescente, apaixonado. Era um dos filmes de que sempre me lembrava com imenso carinho, ao longo destas muitas décadas.
Todo mundo se apaixonou por Lola.
Diz o Guide de Jean Tulard: “Jacques Demy dedica seu primeiro longa-metragem a Max Ophüls. No entanto, realiza um filme extremamente pessoal, uma espécie de conto sentimental e poético. Lola é a beleza em estado puro, é a graça e o frescor reencontrados, é a felicidade de uma direção elegante. Antes de Les Parapluies de Cherbourg, ela já realizava um filme encantado”.
Diz Georges Sadoul, no seu Dicionário de Filmes: “Conduzido em ritmo de balé, com amor e humor, traduzindo com lirismo as paisagens urbanas de Nantes, este filme enquadra-se de algum modo numa espécie de ‘neo-realismo poético’ bem ao estilo dos anos 60. Relações sutis entre Anouk Aimée e Elina Labourdettre, que é um pouco a Lola envelhecida, mas também a Dama do Bois de Boulogne criada por Bresson”.
Dame Pauline Kael não se apaixona pelos filmes – é apaixonada por seu próprio texto ferino, sua verve irônica, cortante que nem peixeira de baiano: “Este primeiro filme de Jacques Demy parece um sonho de amor de um adolescente, composto de vários filmes. Lola (Anouk Aimée) é simples e franca, uma dançarina de boate sem talento, não muito inteligente, uma garota vulnerável e sentimental. O filme nos mostra a vida cor-de-rosa – uma mistura bonita e escapista do cosmopolitismo do cinema francês de cerca de 1939 e da alegria inocente dos musicais da Metro com Gene Kelly-Frank Sinatra dos anos 40 (Marujos do Amor e Um Dia em Nova York), com seus marinheiros tímidos, bons com as crianças e em busca do amor. Demy zomba com delicadeza de efeitos românticos do cinema, empregando-os mais romanticamente que nunca. As personagens ficam ricas de repente ou encalhadas numa ilha, e os sonhos de Lola se concretizam – não apenas seus sonhos, mas também suas ilusões. É um mundo poético, em que as ilusões se justificam. (…) Lola, de cartola e boá para seu número na boate, é ela própria uma citação – uma homenagem à Lola Lola de Marlene Dietrich em O Anjo Azul, mas efervescente e inofensiva só até a metade.”
“Um musical sem música” – só que cheio de música, e de dança
Belos textos, os três, o do guia de Tulard, o de Sadoul, o de Dame Kael. Belos filmes inspiram belos textos.
Excelente sacada a de Sadoul de fazer a comparação entre os personagens de Lola e de Madame Desnoyers. Eu não tinha percebido isso. Sim: Cecile, a garotinha, é a Lola jovem, a Lola adolescente que teve a primeira paixão e engravidou. E a mãe de Cecile é o que poderá vir a ser a Lola mais velha, abandonada de novo, solitária, carente.
Tulard, Sadoul, Pauline Kael são críticos da velha geração. São velhinhos como eu, até um pouco mais que eu. Tinham uma percepção que evidentemente não é a de hoje. Mas mesmo uma coisa moderna, up to date, como o AllMovie, respeita Lola. O texto do respeitabilíssimo site, assinado por Mark Deming (quem disse que todos os americanos se sentem o umbigo do mundo e não enxergam nada além das fronteiras do Império?), termina assim: “Lola é um filme cujo objetivo é obviamente tocar o coração mais que a mente, mas Demy conta sua história simples com uma mistura tão rara de paixão e inteligência que ele consegue agradar também ao intelecto. O resultado se mantém como um dos produtos mais puramente agradáveis da nouvelle vague francesa.”
No texto de apresentação do filme no mesmo AllMovie, Yuri German cita uma expressão que obviamente já havia sido usada por outros para definir o filme: “um musical sem música”. É uma definição ao mesmo tempo inexata e fascinante.
Lola é cheio de música. A trilha é de Michel Legrand, o grande, o genial Michel Legrand. Há música praticamente no filme inteiro – composições originais de Legrand e trechos de Bethoven, Bach, Mozart. Há uma canção, cantada por Anouk Aimée, tipo “Eu Sou Lola”, com letra, háhá, dela, Agnès Varda, a senhora Jacques Demy, cineasta extrarodinária, extraordinariamente apaixonada pelo marido que morreu cedo demais, zelosa mantenedora de sua memória e de sua arte, restaurando as cores originais dos filmes dirigidos por ele e fazendo documentários sobre a vida e a obra dele.
Há cenas de dança, um prenúncio do que Demy faria depois em Duas Garotas Românticas/Les Demoiselles de Rochefort, de 1967, em que juntaria Catherine Deneuve e sua irmã François Dorleac com George Chakiris, de West Side Story, e mais o Sr. Dança, Gene Kelly.
Um dos temas criados por Legrand, para acompanhar o personagem de Roland Cassard, avançaria no tempo, voltaria a estar presente em Les Parapluies de Cherbourg, porque no filme de 1964 o personagem do filme de 1961 reapareceria, com um ridículo bigodinho que não tinha no primeiro, é verdade, mas reapareceria.
Os filmes de Jacques Demy são tão absolutamente pessoais que os personagens de um aparecem depois em outro – Lola reapareceria oito anos mais tarde, em 1969, em O Segredo Íntimo de Lola/Model Shop, que Demy filmou nos Estados Unidos.
E o tema musical do Roland Cassard de Lola (que Elis Regina gravou em 1969, como “Le Récit de Cassard”, no disco Elis Como & Porque, assim mesmo, com erro de português) reapareceria depois em Parapluies, o primeiro filme da história do cinema inteiramente – mas inteiramente mesmo – cantado. E em Duas Garotas Românticas, assim como em Parapluies, a música de Michel Legrand é tão importante quanto a história, as atuações, os personagens.
E então, de fato, comparando com Les Parapluies e Les Demoiselles, em que a música de Legrand se sobressai, está sempre em primeiro plano, pode-se dizer que Lola é um “musical sem música”. Mas tem muita música, dança-se, canta-se, e, mesmo não sendo um musical, os personagens agem muitas vezes como se estivessem num musical da Metro: Michel pula para o assento de seu Cadillac, como se dançasse; Frankie desce as escadarias das ruas de Nantes sentado no corrimão, e dança no meio das ruas.
O cinema de autor por excelência
Os filmes de Demy são tão absolutamente pessoais que ele repete as situações, as atrizes, ele cita a si mesmo ao longo de sua obra. Lola se passa em Nantes, Les Parapluies, como diz seu título original, se passa em Cherbourg, Les Demoiselles, como diz o título, são de Rochefort – três cidades portuárias. Todos os três filmes têm cenas que mostram os portos. Lola tem os marinheiros americanos, Les Demoiselles tem os dançarinos americanos. Anouk Aimée está no filme de 1961 e reaparece no filme de 1969. Catherine Deneuve está em Les Parapluies e reaparece em Les Demoiselles. Assim como o personagem Roland Cassard, de Lola, reaparece em Les Parapluies, junto com seu tema musical.
Jacques Demy é o cinema de autor por excelência.
E no entanto, bobo, não babei pelo filme na revisão
Confesso que, na revisão agora, em 2010, o filme que adorei durante décadas me decepcionou um tanto.
Quando bati os olhos no DVD, na locadora, fiquei felicíssimo: que maravilha, que maravilha, relançaram Lola, vou poder rever Lola, pensei. Quase pulei de alegria, como um garoto, ou dei um meio passo de dança, como uma garotinha.
Não babei pelo filme, ao revê-lo. Achei até meio bobo, em diversas passagens.
Cheguei a pensar que Anouk Aimée – a musa que Lelouch achava que era muita areia pro caminhãozinho dele, e nem acreditava que pudesse aceitar o convite para participar de Um Homem, Uma Mulher, em 1966, o filme que acabaria sendo o maior sucesso internacional da carreira dela – não estava muito bem. Que estava um tanto falsa, um tanto fake, um tanto artificial. Pior ainda: cheguei a achar que Anouk Aimée – e ela aparece muitas vezes com as coxas à mostra, em roupa de cabaré, meias pretas rendadas, o fetiche do fetiche – nem estava tão bonita assim. Gostosérrima, é verdade – mas não achei o rosto dela tão bonito quanto está em Um Homem, Uma Mulher, e na sua continuação 20 anos depois.
Acho que é senilidade. Deve ser. Só pode ser.
Que o eventual leitor chegue à sua própria conclusão. O importante é isso: Lola está disponível em DVD – e a qualidade da imagem e do som é extraordinária.
Lola, a Flor Proibida/Lola
De Jacques Demy, França-Itália, 1961
Anouk Aimée (Lola), Marc Michel (Roland Cassard), Jacques Harden (Michel), Elina Labourdette (Mme. Desnoyers), Alan Scott (Frankie), Annie Duperoux (Cecile), Margo Lion (Jeanne, a mãe de Michel)
Argumento e roteiro Jacques Demy
Fotografia Raoul Coutard
Música Michel Legrand
Produção Georges de Beauregard, Carlo Ponti
P&B, 85 min
R, ***
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