Anotação em 2010: Aos 87 anos, Alain Resnais, um dos maiores cineastas da história, faz um filme surpreendente, estranho, inquietante, que provoca reações indignadas, chocadas, e aplausos frenéticos.
“Quando o roteiro falha, Resnais recorre a truques cinematográficos como a repetição, direção inversa, vinhetas, e o sempre comum círculo que vai se se fechando em torno do rosto de um personagem. É irritante”, escreveu um espectador, uma pessoa comum, no iMDB.
“Quando apareceram os créditos finais, as nove pessoas, eu inclusive, que haviam resistido até o fim, começamos a olhar uns para os outros e alguns, eu inclusive, começamos a rir. Fui ver o filme com a melhor das intenções. Depois de vê-lo, tudo o que eu podia dizer era: o que ele quer dizer? E quando vi a reação dos outros espectadores me senti pelo menos confortado, de alguma maneira”, escreveu outro espectador no iMDB. Um italiano, esclareço, antes que um eventual leitor descarte de cara a opinião imaginando que se trata de um americano, acostumado a filmes de Hollywood.
Ervas Daninhas não é um filme fácil. Alain Resnais não faz filmes fáceis.
Por que as pessoas se comportam da maneira como se comportam
Em sua crítica no Estadão, no dia de Natal de 2009, dia da estréia de Ervas Daninhas em São Paulo, Luiz Carlos Merten, jornalista criterioso, enciclopédia ambulante (além de dono de uma capacidade de trabalho de fazer inveja até a Ewan McGregor ou Steven Soderbergh), escreveu: “No começo dos anos 80, 20 e tantos anos mais jovem, Alain Resnais já explicou o funcionamento do mundo a partir de ratos de laboratório, com base nas teorias de Henri Laborit. Agora, aos 87 anos, Resnais continua tentando entender o funcionamento de homens e mulheres. Na entrevista nesta página, ele conta que seu novo filme, Ervas Daninhas, trata desse mistério que desafia autores há mais de 6 mil anos.”
Estava certíssimo o Merten ao lembrar de Meu Tio da América/Mon Oncle d’Amérique, de 1980. Tem tudo a ver. Em Meu Tio da América, Resnais foi fundo no apoio às teorias do neurocirurgião e escritor Henri Laborit (1914-1995), de que as pessoas reagem a determinados impulsos, acontecimentos, de maneira que a sua mente não consegue controlar; reagem de maneira inconsciente, seguindo reflexos condicionados – exatamente como os ratos. Assim como Pavlov, Laborit fez incansáveis experiências com cobaias em laboratório. O próprio cientista e seus ratinhos aparecem no filme, pontuando as histórias fictícias dos personagens centrais (Gérard Depardieu, Nicole Garcia), usadas para demonstrar as teses comportamentalistas.
(Posso estar usando algum termo não muito apropriado, mas essa é a idéia básica da coisa – se não estou muito enganado.)
Ervas Daninhas de fato é um retorno ao tema de Meu Tio da América – uma tentativa de explicação sobre o que move o comportamento das pessoas.
A imagem que o cineasta usa aqui está no título de seu filme de 2009 – les herbes folles, literalmente as ervas loucas. Ervas daninhas. As primeiras tomadas do filme mostram ervas daninhas saindo do asfalto, das rachaduras do asfalto. E aí o caro espectador que entenda a imagem como bem entender.
Algo imprevisível. Algo improvável – um tanto sem lógica, sem explicação possível. Algo resistente, forte, que sai de dentro da terra quando menos se espera. Uma praga – poderosa, incontrolável. Como as emoções que, quando menos esperamos, brotam de algum lugar desconhecido dentro de nós – com força, com um grande poder.
Como, por exemplo, nos irritamos profundamente com algo que entendemos como ofensivos – e de repente percebemos que o coração acelera, bate duas vezes mais forte que o normal, e o rosto fica vermelho, o sangue sobe, e falamos alto, irritadamente, com uma virulência que espanta quem está perto, e até, ou principalmente, a nós mesmos. Muitas vezes, passado esse momento de descontrole (descontrole, essa é uma boa expressão), temos vergonha de ter agido daquela maneira.
Todo mundo já passou por isso uma, duas, centenas de vezes – numa discussão no trânsito; ou porque um funcionário público demorou a nos atender na fila; ou porque alguém falou mal de um grande amigo nosso, ou da pessoa que amamos.
Volta e meia, na vida, somos surpreendidos por emoções que saem de dentro de nós sem pedir nossa autorização, e nos levam a ter reações inesperadas, sem que tivéssemos consciência plena do que estávamos fazendo.
Saem de dentro de nós sem pedir nossa autorização, de uma forma imprevisível, improvável, ilógica – com a erva daninha que teima em brotar onde menos se espera.
Somos mais ratinhos de laboratório do que gostaríamos de imaginar
O que me faz lembrar (me permito a digressãozinha, já que uma anotação sobre este filme é necessariamente um papo-cabeça) a frase com John Huston abriu seu filme Freud, Além da Alma, de 1962 – um filme que teve ninguém menos que Sartre trabalhando no roteiro. Não me lembro exatamente da frase, e ela não está no iMDB, que tem quase tudo, mas não tem tudo. O sentido dela é o seguinte:
A ciência tem feito duros ataques ao orgulho dos homens. Copérnico e Galileu mostraram que o planeta em que vivemos não é o centro do universo. Darwin demonstrou que o ser humano não é o único senhor da Terra, mas apenas uma peça da evolução das espécies. E Freud demonstrou que o homem não domina nem sequer seu próprio cérebro.
Para Laborit e o Resnais de 1980, o homem é muito mais parecido com ratinho de laboratório do que gostaria de imaginar.
Como o papo periga ficar cabeça demais, me lembro da piada do ratinho falando com o amigo: “Consegui condicionar o Pavlov. Cada vez que eu apareço ele me dá um pedaço de queijo”.
O que Resnais de 2009 parece querer dizer é que sequer isso – diante de tal ação, pode-se esperar que haverá uma determinada reação – é verdade. Nem sequer isso.
O que parece que ele quer dizer é que as reações das pessoas são imprevisíveis. Diante de tal ação, a reação de um determinado sujeito pode ser x, pode ser y, pode ser z.
Uma sinopse curta. E um pouco do início do filme
O viajandão pode estar legal – ou não –, mas acho que seria bom falar um pouco do filme.
Bem, resumidamente, é assim: Marguerite Muir (Sabine Azéma) tem sua bolsa roubada. Sua carteira, depois de retirado o dinheiro vivo pelo ladrão, será jogada no chão do estacionamento de um shopping center. Mais exatamente, junto do pneu do carro de Georges Palet (André Dussollier). A trama envolverá o relacionamento que se estabelecerá entre Marguerite e Georges.
Fantástico: consegui fazer um resumo! Uma sinopse de um parágrafo!
Mas tem muito mais graça se apresentar um pouco do iniciozinho do filme.
Depois das tomadas de ervas daninhas no asfalto, temos tomadas de pés andando sobre uma calçada movimentada de cidade grande. Um narrador, com a voz em off, diz um texto delicioso, envolvente. A voz é bela, sonora, expressiva, e oscila entre o muito sério e o quase brincalhão:
– “Ela não tinha pés comuns. Por causa de seus pés, era obrigada a ir onde não iria se tivesse pés comuns. Ela não podia comprar sapatos em qualquer lugar, de qualquer um. Era obrigada a ir a Paris, a uma sapataria que ficava… Ah, não me lembro o nome. (…) Foi ao sair dessa loja que aconteceu o incidente. Que incidente? Bom, nada de grave, nada de muito importante. Um incidente bastante banal, uma coisa bem corriqueira. Mas às vezes o corriqueiro, o banal, pode levar a… A quê? Vamos ver. O dia estava bonito, o céu estava azul, sol de inverno…”
Enquanto a voz em off nos diz isso, vemos Sabine Azéma chegando à tal sapataria. Na saída da sapataria, passará correndo um pivete e levará a bolsa dela embora. Mas, ao longo de toda a seqüência, não vemos o rosto de Sabine Azéma – a vemos pelas costas, a cabeleira vermelha cuidadosamente penteada para parecer despenteada, desgrenhada.
Cores fortes. Ervas Daninhas é um filme de cores fortes.
Numa entrevista ao Guardian, Resnais disse que ele e o diretor de fotografia Éric Gautier decidiram que as novelas gráficas de Will Eisner seriam um fator determinante no visual do filme. “Nenhum de nós tinha idéia do resultado. Foi só quando vi os copiões que soube que tipo de filme estávamos fazendo.”
Cores muito fortes, como em obras de Varda e Demy nos anos 60
Novelas gráficas de Will Eisner. Então tá. Eu não teria ido tão longe: para mim, as cores fortes de Ervas Daninhas fazem lembrar as cores fortes que Agnès Varda e Jacques Demy – contemporâneos de Resnais, englobados como ele no rótulo de nouvelle vague no início dos anos 60 – gostavam de usar, em filmes como As Duas Faces da Felicidade e Guarda-Chuvas do Amor.
Em entrevistas, Resnais fez questão de realçar que seu filme se baseia na obra de Christian Gailly, chamada O Incidente. Conta que leu O Incidente e ficou tão seduzido que em seguida leu todos os 12 romances do autor. “Tudo no filme é fiel ao romance de Gailly”, afirma.
Para o bom repórter e bom crítico Luiz Carlos Merten, que o questionou sobre o comportamento dos personagens de André Dussollier e Sabine Azéma, “que toca tanto o ridículo como o sublime”, Resnais disse o seguinte: “A maior parte de nossas ações são intuitivas (não reflexivas), e só depois é que a gente tenta dar uma ordem ou encontrar um sentido nas decisões que tomou. O momento da decisão, em si, depende de uma mistura química que envolve o cérebro e o corpo, como em todos os animais.”
Isso posto, vou dizer agora o que euzinho achei.
O texto do filme é, em geral, precioso. É uma talentosa mistura – como demonstra o trecho de abertura que transcrevi – de uma linguagem sisuda com um jeito completamente solto, à vontade. O próprio Resnais falou sobre o texto, na entrevista ao Merten: “É preciso encarar também o estilo como ele escreve seus livros, cheio de surpresas e de frases enigmáticas, que ele interrompe de repente, dando a impressão de que tudo é improvisado, quando, pelo contrário, tudo é muito elaborado e possui um charme violento.”
Então, o texto do filme, em especial o texto em off, do narrador, e dos próprios personagens, quando a voz está em off, é precioso.
A fotografia é esplêndida. Os movimentos de câmara (ele usa por várias vezes, com a maestria do grande mestre que é, belos contre-plongées) são elegantes, charmosíssimos.
Os atores… Bem, os atores são o crème-de-la-crème, o top, o melhor que pode haver. Resnais é um grande diretor de atores, mas não seria preciso; ele e seus atores já trabalharam juntos diversas vezes, tudo funciona à perfeição, como um relógio.
A seqüência em que André Dussollier e Sabine Azéma se encontram pela primeira vez, diante de um cinema onde ele havia visto As Pontes de Toko-Ri, é de uma beleza visual sensacional – o imenso letreiro em neon vermelho com a palavra “Cinéma” ocupando a tela inteira depois que vimos as fotos de William Holden e Grace Kelly perto da bilheteria, o som da fanfarra da apresentação da 20th Century Fox (embora As Pontes de Toko-Ri seja uma produção da Paramount), tudo é uma delícia para quem ama os filmes.
Isso posto, isso colocado, digo que – mais ou menos como aquele espectador italiano –, embora tivesse me postado diante do filme com a maior das boas vontades para ver uma bela obra, da metade para diante fui me decepcionando com a história, a trama, até com o excesso de truquezinhos de narrativa.
Como posso dizer?
Se o filme fosse de outro diretor qualquer, eu estaria aqui descendo a lenha desde o início do texto. Como é Resnais, tiro o chapéu, respeito.
Mas não culpo ninguém que achar que o filme é irritante, ou se perguntar o que raios afinal ele quis dizer, ou simplesmente começar a rir.
Ervas Daninhas/Les Herbes Folles
De Alain Resnais, França-Itália, 2009
Com Sabine Azéma (Marguerite Muir), André Dussollier (Georges Palet), Anne Consigny (Suzanne), Emmanuelle Devos (Josépha), Mathieu Amalric (Bernard de Bordeaux), Michel Vuillermoz (Lucien d’Orange), Edouard Baer (o narrador)
Roteiro Laurent Herbiet e Alex Réval
Baseado no livro de Christian Gailly
Fotografia Éric Gautier
Música Mark Snow
Montagem Hervé de Luze
Produção F Comme Film, Studio Canal, France 2 Cinéma. DVD Imovision. Estreou em São Paulo 25/12/2009.
**1/2
Eu tive a mesma sensação Sérgio. Mas assim são os filmes franceses. Causam um estranhamento e ainda conseguem ser bons. O pior é qdo a gente assiste a um filme sempre esperando vir algo melhor e nunca vem. Se aqui eu puder deixar a minha máxima, o cinema francês, mesmo ruim, ainda é bom! Vivam Resnais, Truffaut, Chabrol, Godard( mais ou menos), mas isso é outra história!