Anotação em 2010: Um filme muito bom, duro, extremamente duro, barra pesadíssima, sobre escolas-presídios para adolescentes na França dos anos 30. Não tem diretamente muitas semelhanças, mas me peguei definindo que este Entre os Muros da Prisão é assim uma espécie de Pixote francês.
O filme se inspira em fatos reais, nos adverte um letreiro, bem no início da ação, quando um garotinho, com a cara toda suja, está correndo, visivelmente fugindo, correndo velozmente, até chegar diante do mar.
E aqui não dá para deixar de pensar naquele outro garotinho francês, pequeno delinqüente, Antoine Doinel, que chega até a beira do mar e se delicia com o que vê, numa seqüência antológica de Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups, o primeiro longa-metragem de François Truffaut.
Em Entre os Muros da Prisão, o êxtase do garotinho diante do mar dura menos do que um minuto: surgem policiais a cavalo no encalço dele, o garoto foge, se embrenha no mato, policiais e cães o seguindo – até que ele é cercado e preso novamente. Entram os créditos iniciais, e em seguida vemos o garoto sendo levado por seu tutor a um grande, soturno prédio em cuja placa se lê Les Arches – Maison d’Éducation Surveillé, centro de educação vigiada.
O supervisor que recebe o tutor e o garoto faz menção a “mais um cujo pai morreu em combate”, e que quem enviou o menino foi a Sociedade de Órfãos da Guerra.
O tal centro de educação vigiada Les Arches, para onde é levado, com menos de dez minutos de filme, o garoto Yves Tréguier (interpretado maravilhosamente por Emile Berling), órfão da guerra, depois de três tentativas de fuga de outros locais semelhantes, deveria ser uma escola. É uma prisão, um campo de concentração, o horror dos horrores, pior que qualquer pior unidade da Febem ou congênere que já existiu no Brasil.
Todo o filme do diretor Christian Faure vai se dedicar a descrever, com minúcias, com detalhes, esse inferno, na rica e civilizada França, nos anos 30. Veremos as brigas, as disputas entre os garotos, e, sobretudo, a opressão horrorosa exercida pelo supervisor e pelos guardas, a crueldade, os castigos desumanos.
É deprimente, é chocante, é violentíssimo.
Fazendo contas
Bem na abertura do filme, logo depois daquele letreiro nos informando que a narrativa se inspira em fatos reais, outro letreiro havia avisado: França, 1932. Há, depois, uma menção a Verdun, a batalha da Primeira Guerra Mundial em que morreram milhares de franceses. Tive que parar para fazer as contas, que aparentemente não batiam. Se a guerra terminou em 1918… 1932 menos 1918… Bem, dá 14 anos, exatamente a idade do protagonista desta história tristíssima, chocante. É bastante apertado, mas dá; o pai de Yves Tréguier teria que ter ido lutar ainda em 1918, deixando grávida a mulher. Sim, é bastante apertado, mas tem sentido.
Personagem de fazer corar um frade de pedra
No meio daquele inferno, daquele campo de concentração onde garotos entre 14 e 18 anos são submetidos a todo tipo de horror, humilhação, castigos físicos absurdos, o diretor Christian Faure espalha alguma esperança. Mostra o desenvolvimento de amizades entre Yves e alguns de seus companheiros de infortúnio, em especial Blondeau (Guillaume Gouix, na foto com Emile Berling-Yves Tréguier), um garoto mais velho, mais experiente, um líder nato, que acaba tomando o garotinho recém-chegado sob sua guarda, e também Fil de Fer, que as legendas do DVD traduziram para o Fio (Julien Bouanich).
Fil de Fer, o Fio, é talvez o personagem mais absurdamente triste desta história triste. É um garoto inteligente, sensível, que teve boa educação; conhece música; em pedaços de papelão, desenha um teclado de piano, que toca enquanto assobia belas melodias, temas eruditos. Veremos, quando a narrativa já está bem adiantada, que sua mãe é uma mulher rica – ele está ali naquele campo de concentração não porque, como quase todos os demais, é órfão de gente pobre, mas porque o padrasto não o suportava em casa. A bela Carole Bouquet tem uma participação especial como a mãe de Fils de Fer – e a aparição desse personagem é de fazer corar um frade de pedra.
O estudo e a arte como salvação
O jovem pequeno delinqüente François Truffaut – que viveu muitas experiências parecidas com as de Antoine Doinel, seu alter ego no filme Os Incompreendidos e depois em vários outros – livrou-se do que poderia ter sido uma vida de marginalidade através da arte: sua paixão por cinema o transformou em crítico, antes de virar um dos maiores cineastas da história.
Outros filmes franceses bem mais recentes também retratam histórias de jovens criados em ambientes de muita pobreza, material ou moral, ou as duas juntas, que também escapariam da marginalidade graças a seu talento e amor à arte. É assim com a protagonista de Stella, beleza de filme da diretora Sylvie Verheyde – e a diretora deixa claro que a personagem Stella tem muito dela própria. Chimo (Mohammed Khouas), o jovem árabe de Lila Diz…, de Ziad Doueri, também tem praticamente tudo para transformar-se num deliquente, num marginal; é salvo pela capacidade de escrever sobre suas próprias experiências.
Ao final dos duríssimos 95 minutos de Entre os Muros da Prisão, há novos letreiros, com uma informação chocante, apavorante, e outra que abre uma janela de esperança. A primeira é que os tais centros de educação vigiada foram fechados apenas em 1979. Essa indignidade, essa mancha horrorosa perdurou até pouquíssimo tempo atrás.
A segunda informação (que os espectadores mais atentos já haviam percebido nos créditos iniciais) é a seguinte: “Yves Tréguier se tornou escritor com o pseudônimo de Auguste Le Breton”.
Mais tarde, o personagem escreveria cerca de 70 livros
Auguste Le Breton nasceu em 1913; seu pai foi morto na Primeira Guerra em 1915 (realmente não entendo por que o filme fez o protagonista Yves Tréguier nascer em 1918, último ano da guerra, o que o distancia um pouco da realidade). Abandonado pela mãe, foi parar num daqueles orfanatos, ou centros de educação vigiada.
Escreveu cerca de 70 livros, muitos deles histórias policiais, com gângsteres, bandidos de diversos tipos, deserdados da fortuna. O primeiro deles foi exatamente Les Hauts Murs, os muros altos – seu relato autobiográfico. (É bem possível que o título brasileiro do filme, Entre os Muros da Prisão, tenha sido uma citação de outro filme francês da época, Entre les Murs, que aqui virou Entre os Muros da Escola.) Diversas de suas obras foram adaptados para o cinema, como Du Rififi Chez les Hommes, de 1954, que criou a expressão rififi, hoje comum em várias línguas, e deu origem ao filme homônimo de Jules Dassin, no ano seguinte. Le Clan des Siciliens, obra de 1967, foi transformada em um ótimo filme por Henri Verneuil em 1969, que aqui teve o título de Os Sicilianos.
Le Breton morreria, aos 86 anos, em 1999.
A palavra que ele criou, rififi, não está no meu Petit Larousse porque a edição é quase tão velha quanto eu, mas está no Aurélio (de 1975), como sinônimo popular de “rolo”.
Doinel-Truffaut, Stella-Sylvie Verheyde, Yves Tréguier-Le Breton. A arte salva.
Entre os Muros da Prisão/Les Hauts Murs
De Christian Faure, França, 2008
Com Emile Berling (Yves Tréguier), Guillaume Gouix (Blondeau), Julien Bouanich (Fil de Fer), Pascal N’Zonzi (Oudie), François Damiens (o supervisor), Carole Bouquet (a mãe de Fil de Fer), Michel Jonasz (o diretor), Catherine Jacob (a mulher do diretor), Anthony Decadi (Molina)
Roteiro Albert Algoud
Baseado no livro de Auguste Le Breton
Fotografia Jean-Claude Larrieu
Música Charles Court
Produção Europa Corp, Septembre Productions, Digital Factory
Cor, 95 min
***
Título nos EUA: Behind the Walls
Um review bom desses deveria ter pelo menos um comentário. Fantástico!
Filme que relata a realidade de muitos Yves.
A maior lição de amizade, valores que apesar dos pesares que passam, os valores permanecem… Muito forte, estou emocionada.
Lares-escolas / centro de educação vigiada- nomes mascarados- para o que na verdade era aquilo; verdadeiro campo de concentração , como voce bem disse.
De fato,uma história muito triste mas também uma grande lição de amizade e lealdade.
Muitas cenas que emocionam e uma que marcou, aquela em que Fil de Fer assobia enquanto toca o “piano” de papel.
Fiquei me perguntando se sua mãe não sabia ou nunca procurou saber o que realmente era aquele lugar.
Mais um filme que denuncia os maus tratos e a violência que sempre existiram em lugares como esses. Muito chocante , nos emociona demais e , onde é impossível não nos envolvermos com o drama dos personagens.
NOTA: este é o segundo filme que vi com o ator François Damiens,antes tinha visto ” A Delicadeza do Amor”.
Que diferênça de personagens…
Com certeza uma grande vergonha que aquela instituição tenha deixado de existir só no ano de 1979.
Um abraço !!