3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Adoração, do canadense Atom Egoyan, é um filme forte, poderoso, impressionante, bem feitíssimo. Fala de problemas eternos (vida em família e as muitas possibilidades de traumas que vêm com ela), de questões antigas mas sob o ponto de vista de hoje (terrorismo, preconceitos raciais) e de questões atualíssimas (as novas tecnologias de comunicação, suas vantagens, suas ameaças).
É um belo filme. Mas é também um perfeito exemplo de uma tendência cada vez mais presente tanto no cinemão comercial quanto nos filmes de autor, como este aqui – aquilo que eu chamo de Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?
Como Atom Egoyan é cineasta de grande talento, o espectador poderá perfeitamente compreender e acompanhar sua história – que é fascinante, e muito bem desenvolvida. Mas, no início do filme, pelo menos, ele será obrigado a ficar um pouco tonto, zonzo.
Vou enumerar aqui o que ocorre nas primeiras seqüências do filme, nos primeiros cinco, sete minutos de ação – e isso depois de ver o filme inteiro, e portanto já usando os nomes dos personagens e estabelecendo a relação entre eles. É preciso imaginar essa quantidade de informações sendo despejada de uma vez, em um período curtíssimo, quando se vê o filme pela primeira vez:
1 – Um vulto visto de longe numa praça; mais tarde saberemos que é Simon (Devon Bostick, na foto acima), o protagonista, rapaz de uns 17 anos;
2 – Uma mulher vista de longe num cenário deslumbrante, junto de um lago, cercado por uma floresta, tocando violino; mais tarde saberemos que é Rachel (Rachel Blanchard), a mãe de Simon;
3 – Um velho num hospital fala diante de Simon, que está filmando o que ele diz; o velho é o avô de Simon, pai de Rachel;
4 – Uma mulher belíssima vista em primeiro plano; é Rachel, a mãe de Simon, cujo rosto não havíamos visto antes; saberemos depois que nesse momento ela está chegando a Israel, está diante de um oficial da alfândega; nessa tomada, ouvimos em off a voz de Simon falando a respeito da mãe;
5 – Simon está lendo numa sala de aula, de pé, diante dos colegas, um texto a respeito de sua mãe; diz que ela era uma mulher completamente inocente, e menciona “agentes de segurança”:
6 – Volta a situação descrita no item 4: Rachel está sendo interrogada por agentes de segurança ao chegar a Isarel;
7 – Volta a situação do item 3: o avô de Simon fazendo elogios à mãe dele e criticando o tio de Simon;
8 – Um homem chega à sua casa, no inverno, carregando um pinheiro de Natal; saberemos depois que é Tom (Scott Speedman), o tio de Simon, irmão de Rachel; na mesma seqüência, Simon está no seu quarto, na casa onde chega o tio, diante de um laptop que mostra 9 imagens de diferentes pessoas, no meio de um bate-papo; várias das pessoas falam ao mesmo tempo.
Não é propriamente uma forma fácil de introduzir uma história
Acho que deu para perceber que não é propriamente uma forma fácil de introduzir uma história. Bem, depois que revi o início do filme para descrever essas oito situações iniciais, tentei colocá-las na ordem cronológica. Se eu não estiver errado, é assim:
Cena/sequência/situação número | Época em que se passa | Na ordem cronológica |
1 | Dias de hoje, com parte da ação já decorrida | 8 |
2 | Cerca de 6 anos antes | 3 |
3 | Dias de hoje, pouco antes do início da ação | 4 |
4 | Cerca de 18 anos antes | 1 |
5 | Dias de hoje | 6 |
6 | Cerca de 18 anos antes | 2 |
7 | Dias de hoje, pouco antes do início da ação | 5 |
8 | Dias de hoje | 7 |
Gostaria de me explicar: não estou aqui dizendo que a narrativa deve sempre seguir a ordem cronológica. Não é isso. Em 1921 o sueco Victor Sjöström construiu seu A Carruagem Fantasma todo em cima de uma série de flashbacks. Em 1941 Orson Welles já tinha enterrado a ordem cronológica, em Cidadão Kane. Em 1957 Ingmar Bergman já misturava a ordem cronológica ao mesmo tempo em que misturava realidade e sonhos, devaneios, lembranças, em Morangos Silvestres.
Apenas quis realçar essa tendência do Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar? O cinemão comercial americano tem usado muito essa tendência em filmes de ação, de aventura, de crime, talvez para dar uma aparência mais profunda à história um tanto rasa, besta que está contando. Atom Egoyan não precisaria usar de artifícios; tem uma bela história para contar. Mas é o estilo dele – e, repito, ele faz isso de forma competente, magistral.
Mas que esse começo que descrevi deixa o espectador um tanto zonzo, ah, isso deixa. Bem – pelo menos me deixou. Claro que pode ser uma questão de estupidez, de debilidade mental da minha parte. Claro que pode. Mas vamos em frente.
Uma professora de teatro, uma peça escrita pelo adolescente
Com uns 10, 15 minutos de filme, o espectador conhecerá Sabine (Arsinée Khanjian, bela mulher, bela atriz, na foto). Sabine ensina francês na classe de Simon, e lê para a classe a história ocorrida uns 17, 18 anos antes, de uma jovem mulher grávida que, ao chegar a Israel, foi detida pelos agentes de segurança, que descobrem então na sua bagagem um explosivo que não chegou a detonar, mas que poderia ter arrebentado o avião e matado todos os 400 passageiros. O explosivo havia sido preparado pelo marido dela, um terrorista que de fato queria explodir o avião. A jovem mulher não tinha conhecimento de nada – chega diante dos agentes de segurança com toda a inocência do mundo.
Além de ensinar francês, Sabine dá aulas de teatro.
Simon se propõe a escrever uma peça contando, em primeira pessoa, a sua história e a história de sua mãe: a história de um garoto que estava na barriga da mãe quando ela chegou a Israel levando na bagagem, sem saber, um explosivo poderoso, preparado pelo seu próprio pai, que, por mero acaso, não detonou.
Vimos, nas cenas iniciais, Rachel, a mãe de Simon, chegando a Israel e sendo interrogada pelos agentes de segurança. Vimos o avô de Simon dizendo para ele horrores sobre o pai dele, o marido de Rachel, um libanês, Sami (Noam Jenkins).
Sabine, a professora, estimula Simon a escrever a peça (na foto abaixo, Tom, Sabine e Simon). A partir daí, as coisas sairão de controle.
Egoyan prefere falar das novas tecnologias
No longo depoimento que deu para os especiais do DVD do filme, Atom Egoyan preferiu não se estender muito sobre as questões – que estão muito claras no filme – dos preconceitos raciais, da divisão que existe, mesmo nas sociedades mais modernas, avançadas, educadas, como a canadense, entre ocidentais e muçulmanos, das desconfianças, dos temores que se agigantaram à enésima potência depois dos brutais atentados terroristas do 11 de setembro e depois da reação – tão brutal quanto os próprios ataques – promovida pelo império, então comandado pela imbecilidade de George W. Bush e Dick Chenney.
Egoyan optou por realçar muito a questão das novas tecnologias, a internet, o mundo que agora é capaz de criar salas de conversação virtuais ligando o planeta inteiro, e a extraordinária rapidez com que se divulgam os fatos e as versões dos fatos, mesmo quando umas estão muito distantes dos outros. O diretor chegou mesmo a criar um espaço de comunicação virtual que ainda não existe.
É uma parte muito importante do seu filme, a questão das novas tecnologias. O jovem Simon não é propriamente um rato cibernético, um nerd, um hacker, um especialista; é apenas um adolescente que cresceu quando tudo isso já existia, já fazia parte do dia a dia de nossas vidas, como muito antigamente brincávamos de pegador, índio-e-mocinho, bente-altas, finca, vôlei, quatro-cantos. E então ele fotografa, grava vídeo, usa salas de bate-papo na internet, e sua história ecoa fundo, se divulga, se alarga, se agiganta, se amonstrua, se me permitem o verbo que não existe.
É um belo, importante filme, este Adoração. É, com certeza, um filme para se ver mais de uma vez; na revisão, provavelmente vai-se gostar mais ainda dele.
Atom Egoyan é um cineasta de grande talento. Virou cult, como viraram cult outros cineastas de sua geração ou de sua época, como Abel Ferrara, Hal Hartley. Como a quantidade de informação é cada vez mais avassaladora, cria-se espaço para que se misturem, no mesmo cesto, alhos e bugalhos, talentos e farsantes. Eu, pessoalmente, considero os dois últimos citados na segunda categoria. Mas isso é uma opinião minha, personalíssima e intransferível como dor de dente. Evidentemente muita gente que já passou por este site chegou à conclusão de que sou um pobre coitado que não entende coisa alguma de coisa nenhuma. É assim mesmo que é. Talvez essa gente até tenha razão.
Adoração/Adoration
De Atom Egoyan, Canadá, 2008
Com Devon Bostick (Simon), Scott Speedman (Tom), Arsinée Khanjian (Sabine), Rachel Blanchard (Rachel), Noam Jenkins (Sami), Kenneth Welsh (Morris)
Argumento e roteiro Atom Egoyan
Fotografia Paul Sarossy
Música Mychael Danna
Produção Serendipity Point Films, Arp Selection, Ego Films Arts, The Film Farm
Cor, 100 min
23/1/2010, com Marynha
***
Bom Dia !!
Eu disse que colocaria minha opinião ontém mas não foi possível, faço agora então.
É um belo filme sim, com certeza. Muito bom mesmo.
A sua tabela está perfeita. E voce tem razão sim, o filme “zonzeia” um pouco no início.
A Rahel Blanchard ( Rachel, mãe do Simon ) como voce disse, muito linda.
A Rachel e a Arsinée além deste ” Adoração ” estão juntas também em “Verdade nua” .
” Quando alguém vive carregando uma raiva, pode parecer burro. Este é o problema da raiva … ela absorve muita inteligência “.
Gostei desta frase no filme.
A Arsinée também está em ” O Doce Amanhã ” .
Aliás Sergio, acho que ela e o Atom Egoyan devem ter uma grande empatia.
Veja só , além deste ” Adoração “, “Verdade Nua” e ” O Doce Amanhã “, ela também está em mais 11 filmes do Egoyan.
O primeiro filme dele que vi e já faz tempo, foi ” O Preço da Traição ” que gostei muito mas confesso que não lembrava ser dele.
Os outros foram os que estão citados aqui.
Gostei muito destes quatro filmes dele.
Como voce diz, ele tem talento mesmo.
Falta colocar minha opinião em “Verdade Nua”.
Vou lá fazer isto.
Um abraço !!