4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Um filme maior, uma obra-prima, de uma beleza acachapante. Mestre Satyajit Ray põe o espectador para pensar sobre alguns temas importantíssimos, fundamentais: o absurdo das imensas diferenças entre as classes sociais, a fugacidade de tudo, e como é absolutamente vão, inútil, cego, imbecil, o apego das pessoas por aparência, bens materiais, ostentação, vaidade.
A Sala de Música é um filme aparentemente simples – mas tem uma grandeza, uma profundidade, me permito dizer, sem querer parecer pernóstico, até porque não sou mesmo, shakesperiana.
E também me fez lembrar, pelo tema mais visível – a decadência da casta mais alta, de um senhor de terras, um marajá, e a paralela ascensão de uma casta inferior –, o emblemático O Leopardo, a obra de Giuseppe di Lampedusa transformada pelo nobre e comunista Luchino Visconti num dos mais brilhantes filmes de todos os tempos.
Faz lembrar também a solidão do magnata Kane em sua velhice, entre a poeira que se acumula no castelo de Xanadu, no filme de Orson Welles tantas vezes considerado o melhor de toda a História.
É um filme de poucas palavras, muitos símbolos e imagens de uma beleza arrasadora. Foi lançado em DVD no Brasil, acho que em 2009, por uma empresa pequena, a Cinemax, com o selo Silver Screen Collection. Feito em 1958, evidentemente num fulgurante preto-e-branco, não passou, me parece, por nenhum processo de restauração. É uma pena; perde-se bastante. Mesmo assim, até numa cópia que está muito longe de ser bem cuidada, o filme impressiona, deixa a gente chapado com a beleza dos enquadramentos, dos travellings suaves, dos planos gerais, dos close-ups.
A sala de música, um microcosmo que espelha um mundo em mutação
Satyajit Ray e seu fotógrafo Subrata Mitra transformam a sala de música do palácio do grande senhor num microcosmo que reflete aquele mundo em mutação. Mais que isso, a sala de música vira quase um ser animado, um personagem com vida própria.
Mas acho que eu precisaria dar uma rápida sinopse, antes de entrar na sala de música.
Vixe. Fui ver a sinopse do Cinéguide, o guia que consegue fazer sinopses em três, no máximo quatro linhas, e a sinopse é um horror, revelando fatos que só acontecem lá pela metade do filme e que eu não daria, por considerar spoiler. Vou tentar fazer eu a sinopse, embora não seja minha especialidade: ao contrário do Cinéguide, não sei ser sintético. Mas também não sou estraga-prazer-entrega-história.
Senhor de terras, herdeiro de grande fortuna, Huzur Biswambhar Roy (Chhabi Biswas), habita solitário o palácio da família que está hoje em estado de ruína; tem apenas dois servos – um criado e um mordomo. Atravessa os dias sem fazer absolutamente nada, sentado, largado, em uma poltrona, fumando seu narguilé. Na primeira seqüência, pergunta ao criado em que mês estão, se é primavera.
Teremos em seguida, depois da apresentação da situação tal como está no presente (um presente que não tem data alguma – nenhum letreiro informa em que ano a ação se passa, nem em que local do subcontinente indiano se desenrola a história), um flashback. Veremos Roy bem mais jovem, cavalgando um belo animal, quando ainda tinha restos da fortuna da família e era bajulado pelo filho do agiota da região, Mahim Ganguli (Gangapada Basu), interessado em explorar os bancos de areia fluvial de parte das propriedades de Roy.
Veremos então que Roy – um aristocrata ao velho estilo – não produz absolutamente nada; só dissipa a fortuna que herdou dos ancestrais. Apaixonado por música, contrata os melhores instrumentistas e dançarinas para apresentações em sua gigantesca e luxuosa sala de música, para as quais convida as pessoas mais importantes de sua região.
Lá pela metade da narrativa, vamos ficar sabendo da tragédia que se abateu sobre Roy, o motivo que o fez deixar de viver para simplesmente vegetar largado sobre uma das poltronas do palácio em cada vez mais avançado estado de deterioração. E voltamos então aos dias do presente, os que transcorriam no início da ação.
Longas seqüências de música e dança indianas
A sala de música é o grande símbolo de status. Só os muito ricos possuem uma, e têm condições de pagar pela apresentação de músicos e dançarinas. É a expressão mais pura do fausto, da riqueza, da elegância, do pedigree (para usar uma expressão que o próprio filme usa) do grande senhor. Na seqüência inicial do filme, Roy ouve música ao longe, pergunta ao criado de onde ela vem, e o criado responde que é na casa de Mahim Ganguli – o filho do agiota, um homem empreendedor, que está fazendo fortuna à base do trabalho, enquanto Roy gastou praticamente toda a sua sem produzir nada.
É uma situação de fato bem análoga à descrita por Lampedusa em O Leopardo – a decadência da nobreza, a ascensão econômica da burguesia. Em O Leopardo o nobre dá grandes festas, belos bailes; aqui o protagonista oferece aos convidados música e dança.
Na sala de música de Roy há um gigantesco candelabro central, que será focalizado diversas vezes ao longo da narrativa – em sua época de fausto, e depois na época da decadência. Tomadas do candelabro abrem e fecham o filme. No chão, grandes, ricos tapetes. Nas paredes, há diversos quadros – o pai de Roy, o avô, o bisavô, o tataravô. O pedigree que falta a Hahim Ganguli, segundo ele mesmo vai expressar ao criado de Roy.
As seqüências de música e dança são bastante longas – como são longas as seqüências do baile em O Leopardo de Visconti. Quem não gostar da música indiana, ou não estiver habituado a ela, seguramente não vai gostar das seqüências compridas. A rigor, é preciso dizer que este não é um filme para todos os públicos; quem prefere filmes com mais ação seguramente não suportará ver A Sala de Música.
Um fracasso comercial, uma das maiores realizações do mestre
Satyajit Ray, artista de imenso talento, assina a trilha sonora de alguns de seus filmes. Neste aqui, não. Talvez ele tenha percebido que, como a música tem um papel importante demais na narrativa, seria uma tarefa grande demais para ele, que afinal é primeiro um cineasta, e só secundariamente um compositor.
Numa crítica assinada por Tom Vick, o AllMovie diz que, feito na segunda metade dos anos 1950, no auge da criatividade de Satyajit Ray, A Sala de Música é em geral obscurecido pela sua trilogia de Apu. Um fracasso comercial, foi lançado entre o segundo e o terceiro filme da série, Aparajito e Apur Sansar, mas ao longo dos anos passou a ser visto como uma de suas maiores realizações. O filme, diz o AllMovie, exibe uma profundidade emocional e uma riqueza visual como nos melhores trabalhos do cineasta, e a interpretação do ator Chhabi Biswas é nada menos que devastadora. “Uma única tomada da face de Roy enquanto ele está embevecido pela música ou refletindo sobre os erros da sua vida diz mais do que um grande número de páginas de diálogo. As seqüências dos concertos são esplêndidas. Ray empregou alguns dos melhores músicos da Índia para o filme, e suas apresentações, mostradas em sua totalidade, adicionam outra camada de riqueza a este que é um dos melhores trabalhos de Ray.”
Nem seria preciso ir atrás de outras opiniões. Esse Tom Vick falou e disse, muito melhor do que eu na minha anotação.
Mas não custa ver mais opiniões. Satyajit Ray merece. Lá vai Dona Pauline Kael, a grande dama da crítica americana, que via filmes feitos fora das fronteiras do Império:
“O extraordinário estudo de Satyajit Ray sobre o orgulho carregado ao extremo. Um grande, enlouquecedor filme – difícil de se ver mas provavelmente impossível de esquecer. É muitas vezes cru e pobremente construído (epa, Dona Pauline, que que é isso!), mas é uma grande experiência. Preocupar com seus defeitos seria como se preocupar se Rei Lear foi bem construído; não interessa.”
Alguém poderá não acreditar, mas só fui às outras opiniões depois de ter escrito os parágrafos acima delas. Minha citação a Shakespeare foi antes de ler a frase de Pauline Kael.
O Guide de Films de Jean Tulard dá 4 estrelas, a maior cotação. Fala de um jogo de luzes “éblouissant” – deslumbrante, ofuscante, fascinante. Cita a multiplicidade das tomadas de expressões faciais que exprimem mais que muitos filmes inteiros, e que a fascinação do protagonista pela música, “que o leva para fora do tempo, é admiravelmente traduzida por Chhabi Biswas, que chega a fazer com que nos identifiquemos com suas preocupações, com suas reações nostálgicas, e suscita a compaixão por aquela aristocracia”.
Não senti compaixão por aquela aristocracia. Nem me impressionou muito a paixão de Roy, o personagem principal, pela música. Para mim, muito mais do que paixão pela música, o que ele tem é orgulho de sua riqueza e sua nobreza. Pauline Kael fisgou o termo exato: o orgulho carregado ao extremo – e o orgulho por um valor menor, um valor que não é valor.
Mestre Satyajit Ray, ao contrário de seu pobre, trágico, infeliz personagem, é um artista preocupado com os valores mais importantes.
É isso aí. Uma obra-prima, um filme maior.
A Sala de Música/Jalsaghar
De Satyajit Ray, Índia, 1958
Com Chhabi Biswas (Huzur Biswambhar Roy), Ganga Pada Basu (Mahim Ganguly), Kali Sarkar (o criado), Padma Devi (Mahamaya, a mulher de Roy’s), Tulshi Chakraborty (o mordomo)
Roteiro Satyajit Ray
Baseado no conto de Tarashankar Banerjee
Fotografia Subrata Mitra
Música Ustad Vilayat Khan, Asis Kumar, Robin Majumder, Dakhin Mohan Takhur
Produção Aurora
P&B, 100 min
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procuro ate hj uma copia c legendas ….mas mesmo não sabendo uma virgula da lingua original do filme eu gosto demaaaaaaaaaais!!!!sou apaixonado pela sequencia da dançarina q esta nessa foto em cima …as vezes acordo d madrugada p reve-la…kkkk