A Carruagem Fantasma / Körkarlen

3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: Todo mundo se lembra da antológica seqüência de O Iluminado, de Kubrick, em que um ensandecido Jack Nicholson ataca a machadadas uma porta atrás da qual está Shelley Duvall, apavorada, olhões arregalados, tentando proteger seu filho da fúria do marido. O Iluminado é de 1980. Uma seqüência parecidíssima com essa havia sido feita por e com Victor Sjöström mais de meio século antes, em 1921.

Mil, novecentos e vinte e um. Parcos 26 anos depois que os irmãos Lumière haviam mostrado para a primeira platéia de espectadores que pagaram ingresso para ver imagens reais em movimento, no Salon Indien Du Grand Café, em Paris, no dia 28 de dezembro de 1985. A Chegada de Trem à Estação/L’Arrivée d’un train à la Ciotat, dos Lumière, cuja primeira exibição é tida como o marco oficial do nascimento do cinema, não durava mais que um minuto.

Em Além da Eternidade/Always, um filme bem menos reverenciado que O Iluminado, embora dirigido por outro mestre, Steven Spielberg, há uma bela seqüência em que vemos um corpo estendido no chão, e, enquanto ele continua no chão, vemos aquele mesmo corpo se levantar e postar-se ao lado do protagonista, interpretado por Richard Dreyfuss, que a esta altura já estava morto. Ficam ali o personagem de Richard Dreyfuss e o personagem do motorista do ônibus escolar, de pé, olhando para os esforços que alguém está fazendo para que o coração do motorista estendido no chão volte a bater. Os demais personagens que estão na cena não vêem, é claro, os de Dreyfuss e do motorista morto, de pé – eles já morreram. O belo e pouco reconhecido filme de Spielberg, o mago dos efeitos especiais, é de 1989.

 

 

 

 

 

 

 

 

Seqüências parecidíssimas como essa estão em A Carruagem Fantasma, que Victor Sjöström dirigiu e interpretou, na Suécia, em 1921.

Mil, novecentos e vinte e um. Mesmo para as pessoas bem velhas, 1921 está longe demais, certo?

Foi apenas seis anos depois do primeiro grande espetáculo cinematográfico, O Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith. Quatro anos antes de Sergei Mikhailovich Eisenstein fazer seu O Encouraçado Potemkim/Bronenosets Potyomkin. Seis anos antes do aparecimento do primeiro filme com som!

         Mesmo para quem vê filmes há 50 anos ou mais, é fantástico

O corpo inanimado de David Holm, o protagonista de A Carruagem Fantasma, interpretado pelo próprio diretor Victor Sjöström, fica lá estendido no chão, enquanto sai dele o mesmo corpo visível, mas agora só o espírito, e portanto o corpo que sai do chão e anda é transparente. Como um fantasma. Porque é um fantasma, um espírito. Ele anda, se movimenta, age – sempre transparente. Vemos os objetos por detrás dele.

O espírito, o fantasma de David Holm cruza portas fechadas. Ele é transparente – vemos o corpo, vemos a porta, vemos que ele atravessa a porta e surge do outro lado, transparente, o outro lado da porta visível atrás dele, através dele.

Antes, já havíamos visto a carroça fantasma – igualmente transparente. A carroça passa por estradas enevoadas, chega perto das casas em que alguém acaba de morrer; desce o condutor, com um capuz cobrindo-lhe o rosto, e, na mão esquerda, a grande foice. O condutor é um empregado da Morte, que vem recolher os espíritos dos mortos e depositá-los na carroça, enquanto o corpo físico permanece onde estava. A carroça passa também sobre as ondas do mar, quando o condutor precisa recolher o espírito de um náufrago; o corpo físico permanece no mar; o espírito do náufrago é resgatado pelo condutor e colocado na parte de trás da carroça.

Há diversas seqüências da carroça da morte andando pela tela, transparente, fantasmagórica, fantasma.

Descrevo isso para tentar realçar o visual extraordinário do filme de Sjöstrom – um filme feito em 1921! Não sei se estou conseguindo realçar o suficiente tanto o visual extraordinário quanto o fantástico que é isso ter sido feito numa época tão distante.

É fantástico, é extraordinário, mesmo para quem vê filmes há 50 anos, ou mais, e conhece um pouco da história do cinema.

         Um parêntese pessoal

Aliás, me permito um parêntese pessoal aqui. Acho que vi, tenho recordação de ter visto A Carruagem Fantasma, num ciclo apresentado no Instituto Goethe, lá por 1969, no prédio da Rua Augusta onde hoje funcionam as salas 4 e 5 do Espaço Unibanco de Cinema. Fui checar no meu caderno, o segundo caderno onde anotei filmes, e não achei; está lá que vi, em 1969, um outro filme de Victor Sjöström, The Wind, de 1928, feito nos Estados Unidos, com Lilian Gish. E está lá também que vi, em 1969 e no Instituto Goethe, Greed, a obra genial de Erich Von Stroheim, de 1924. Das duas, uma: ou eu fiz confusão na minha memória, e nunca tinha visto A Carruagem Fantasma, ou então eu vi, sim, naquela época, mas não anotei no caderno. Isso é possível. Deixei de anotar muitos filmes, na correria, por falta de tempo. Se não anota na hora, dança.

Mas isso não importa.

         Jovem que acha que o mundo nasceu ontem pode achar ridículo

O fato é que o visual de A Carruagem Fantasma é de babar.

Claro, jovens sem um mínimo de informação sobre história do cinema poderão morrer de rir dos efeitos visuais, poderão achá-los primários, risíveis, ridículos. Não são, mas os jovens habituados às CGI, às imagens geradas em computador, que acreditam que o mundo começou no dia em que eles nasceram, poderão achar.

Mas não são ridículas, as imagens que Sjöström e seu fotógrafo Julius Jaenzon criaram. São fascinantes, são extraordinárias – são impressionantes, marcantes.

Já gastei vários parágrafos para falar do visual, e ainda não disse nada sobre o que é o filme, o que ele conta, de que ele trata. Pois vamos lá.

É um filme sobre o sentido da vida, os valores morais básicos, a escolha que cada pessoa pode fazer entre o certo e o errado, o desvio, o erro, o pecado, o vício, a reincidência, a possibilidade de redenção, Deus, a outra vida.

Alguém aí poderia achar que parece Ingmar Bergman?

Bem, Victor Sjöström, afinal de contas, é sueco, é nórdico, e aquele povo é meio chegado a uma metafísica, uma teosofia. Sim: acho que dá para dizer sem grande medo de errar: Sjöström é assim uma espécie de proto-Bergman.

         Um dos maiores realizadores do cinema mudo

Nasceu no interior da Suécia, em 1879 – nove antes do fim da escravidão no Brasil, dez anos antes de o Brasil virar república. A família emigrou para os Estados Unidos, mas ele voltou à Suécia natal depois da morte da mãe, e lá fez seus estudos. Trabalhou no teatro a partir de 1896. Começou no cinema como ator, e rapidamente dirigiu seu primeiro filme, em 1912 – quase um século atrás. Dirigiu um total de 55 filmes, alguns deles nos Estados Unidos, mas a maior parte na Suécia, até 1937, quando se retirou do ofício de diretor. Mas continuou trabalhando como ator; fez um filme em 1955, seu penúltimo. Em 1957, aos 78 anos de idade, faria seu último papel, sua despedida, interpretando o dr. Isak Borg, o homem que passa em revista toda a sua vida no dia em que vai fazer uma viagem para receber uma honraria em uma universidade, em Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman.

Diz o iMDB: “Victor Sjöström é indiscutivelmente o pai do cinema sueco e figura entre os mestres do cinema mundial. Sua influência vive no trabalho de Ingmar Bergman e de todos os diretores, suecos ou não, influenciados por seu trabalho e os trabalhos de diretores a quem ele próprio influenciou.”

Diz Jean Tulard no seu Dicionário: “Um dos maiores realizadores do cinema mudo. (…) Graças ao produtor Charles Magnusson e ao operador (de câmara) Jaenzon, ele abre a idade de ouro do cinema sueco. Com Terje Vigen, Sjöström acabou com o domínio teatral que pesava sobre a arte cinematográfica, dando à câmara um papel preponderante.”

Bem mais adiante, Tulard finaliza assim sua avaliação sobre o diretor: “Incontestavelmente os filmes de Sjöström envelheceram, como a maior parte do cinema mudo, mas a importância histórica desse realizador não deixa de ser considerável. Ele foi o cineasta lírico por excelência.”

         Svensk Filmindustri, em 1921 e até hoje – e nós, hein?

Mais um pequeno parêntese. É impressionante ver, nos créditos iniciais, o nome da produtora, Svensk Filmindustri, uma empresa que existe até hoje – se não estou muito enganado, o nome significa indústria sueca de filmes. O Brasil começou a fazer filmes bem cedo, também, teve grandes diretores em épocas longínquas, distantes – mas até hoje, passados 125 anos desde a exibição do trem chegando à estação de Ciotat, não temos uma indústria de filmes brasileira.

         Envelheceu, como todo filme mudo – mas é arrebatador

Não há como negar a afirmação de Tulard: é claro, é óbvio, é evidente, que A Carruagem Fantasma envelheceu, como a maior parte do cinema mudo. Sem algum conhecimento de história do cinema, sem colocar as coisas em perspectiva, sem contextualizar, não dá para ver o filme hoje – ou, no mínimo, é muito difícil.

Devo confessar que o filme me deixou intrigado em alguns pontos. Talvez pelo fato de a linguagem ser tão diferente, naquele tempo tão distante; talvez porque a narrativa use flashbacks constantes, para mostrar o ponto de vista de vários dos personagens; talvez porque misture um pouco de realidade e um tanto de delírio do protagonista; mas o fato é que tive em alguns momentos certa dificuldade para acompanhar a história.

Mesmo assim, ver o filme em 2010, quase 90 anos depois de sua criação, foi para mim uma experiência fascinante. Fiquei chapado de admiração com a beleza visual. Me impressionou demais toda a ambientação do filme, os locais miseráveis, os bares e os lares de aparência suja, mal cuidada, desleixada – tudo muito distante da Suécia que temos no imaginário, um dos lugares mais ricos e menos desiguais  do planeta. Mas tudo bem: a trama toda do filme envolve um sujeito, o David Holm interpretado por Sjöström, que desperdiça a vida, entrega-se à bebida, torna-se um mendigo, um lúmpen, um pária; a personagem feminina central, que está agonizando quando a ação começa, a irmã Edit (Astrid Holm), é uma abnegada servidora do Exército da Salvação, que portanto cuida dos desvalidos, dos miseráveis. Mas, mesmo sabendo que a história focaliza um mundo de pobreza, a miséria exposta na Suécia me chocou, me impressionou.

E impressiona demais, sobretudo, a carga moral de toda a história, a insistência na noção de que podemos escolher nosso caminho – e que, de qualquer forma, vamos ter que prestar contas a Deus, quando o condutor da carroça da morte vier nos procurar com aquela gigantesca foice. É fácil ver que todo o filme tem uma forte influência da religião, do luteranismo que domina a Suécia – assim como essa influência é visível nas obras de Bergman, afinal de contas um filho de pastor protestante.

Sjöström vai usar maiúsculas, ou caixa alta, como se diz no jornalismo, para estressar sua moral, e vai mesmo repeti-la, para que não haja possibilidade de passar despercebida: “Deus, deixe que minha alma amadureça antes de recolhê-la”.

Cacildabecker! Beleza de filme.

         Fatos, e outras opiniões

Bem. Vamos a outras opiniões e a alguns fatos.

Em 1921, o ano em que o filme foi feito, nasciam Dirk Bogarde, Simone Signoret, Satyajit Ray, Alida Valli, Yves Montand, Deborah Kerr. (Todos eles já morreram.)

Outros filmes lançados naquele ano: O Garoto/The Kid, o primeiro longa de Charles Chaplin; Pode o Amor Mais que a Morte/Der Müde Tod, de Fritz Lang; Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, de Rex Ingran, o primeiro grande sucesso de Rudolph Valentino – o sujeito que foi nos anos 20 o que James Dean seria nos 50, o que Tom Cruise seria nos 90, o que Brad Pitt seria nos 2000.

 

 

 

 

 

 

 

 

Naquele ano, o mesmo em que o aclamado diretor alemão Ernst Lubitsch fez sua primeira viagem aos Estados Unidos, onde se radicaria, surgiu na França a primeira revista dedicada ao cinema, Cinéa. A expressão “sétima arte” começava a ser difundida por intelectuais como o poeta italiano Riccioto Canudo, que cunhou, para definir o diretor de filmes, o termo “screenist”. O editor da revista Cinéa, um teórico da escola impressionista de pintura, veio com outro – “cinéaste”.

Eta ferro. Me perdoem os eventuais leitores pela digressão, mas história é uma coisa absolutamente fascinante.

Georges Sadoul, no seu Dicionário de Filmes, escreveu: “Filme mais famoso de Sjöström, mas não o melhor, por causa de sua predicação moralizante, salvadora e antialcoólica. Roteiro notavelmente bem construído sobre flashbacks. As cenas realistas são excelentes, os casebres, a porta quebrada a golpes de machado, e também a parte fantástica, onde o fotógrafo Jaenzon usou esplendidamente as superposições, sobretudo quando a carruagem fantasma avança dentro da bruma ou à beira-mar. Essas imagens fizeram o sucesso do filme, em 1920, com a forte e meio pesada criação de Sjöström.” O grande Sadoul errou o ano – é 1921.

O mesmo Sadoul, na sua impressionante História do Cinema Mundial, cuja primeira edição – a que eu tenho – foi publicada nos anos 60, fala muito de La Charrete Fantôme, no capítulo dedicado ao cinema sueco do pós-Primeira Guerra, chamado “A Florada Sueca”; Victor Sjöström e Mauritz Stiller são os principais nomes da época. O historiador reclama do tom moralizante do filme, mas elogia a beleza de diversas seqüências, e a estrutura com base em flashbacks, “narrações consecutivas que lhe permitem dar sucessivamente à narração o tom de três ou quatro testemunhos diferentes, quebrando ao mesmo tempo a cronologia”.

E isso de fato é fantástico. Tarantino faz uma brincadeirinha narrativa em Pulp Fiction – repetindo, aliás, o que Kubrick já havia feito em O Grande Golpe/The Killing, de 1956 -, e todo mundo baba, e acha que o cinema começou com ele. Pô, em 1921, duas décadas antes de Cidadão Kane, Sjöström desconstruía a cronologia, mostrava a verdade vista por três ou quatro personagens. É do cacete!

Informações que estão no iMDB, essa maravilha da era da internet que sabe que o cinema não começou com Tarantino:

* Victor Sjöstrom se fez passar por mendigo e conviveu um tempo com os habitantes de bairros miseráveis de Estocolmo, para se preparar para viver o personagem central. (Credo – havia bairros miseráveis em Estocolmo?)

* Consta (o iMDB dá isso como fato histórico, mas eu prefiro suavizar um pouco) que Sjöström viajou até a casa da escritora Selma Lagerlöf, a autora do romance em que se baseia o roteiro, em Marbacka, e leu para ela o que escreveu. Leu tudo, de cabo a rabo, de uma vez só – até cair exausto num sofá. A escritora então perguntou se ele gostaria de beber alguma coisa.

Beleza de história. Si non é vero, é bene trovato.

* Consta (também é dado como fato pelo iMDB, mas, como não vi em nenhuma outra fonte, prefiro relativizar) que Ingmar Bergman costumava ver A Carruagem Fantasma uma vez por ano, muitas vezes na companhia de pessoas mais jovens. Ele teria dito que esse filme, para ele, era “o filme de todos os filmes”, e que foi uma grande influência sobre seu trabalho.

Não sou, nem de longe, um bom conhecedor de Bergman. A rigor, alguém dizer que é bom conhecedor de Bergman é mais ou menos dizer que é bom conhecedor da Via Láctea – sua obra é tão vasta e complexa quanto a galáxia em que rodamos perdidinhos em nossa pequeneza. (Bem, tem gente, como Hitler, Napoleão, Stálin e Lula, que se acreditam grandes, mas esta é outra história.) A verdade é que, sim, mestre Bergman chamou Victor Sjöström para interpretar seu Isak Borg – e sua obra-prima tem, logo no início, uma seqüência fantasmagórica com uma carroça que carrega um morto.

Ah, sim, mais uma informação. Em 1939, o prolífico e muitas vezes fascinante Julien Duvivier refilmou a história, com o mesmo título francês do original, La Charrette Fantôme. Em 1958, um sujeito chamado Arne Mattson refilmou a história na própria Suécia.

Quem sabe algum americano – já que eles acham que, se o filme foi feito em outro país, não foi feito – resolve refilmar a história.

Boa sorte para ele e para seus eventuais espectadores, jovens ou não, mas eu passo.

Fico com o original.

A Carruagem Fantasma / Körkarlen

De Victor Sjöström, Suécia, 1921

Com Victor Sjöström (David Holm), Astrid Holm (Edit), Hilda Borgström (a sra. Holm), Tore Svennberg (Georges), Concordia Selander (a mãe de Edit), Lisa Lundholm (Maria)

Roteiro Victor Sjöström

Baseado no livro de Selma Lagerlöf

Fotografia Julius Jaenzon

Produção Svenk Filmindustri

P&B, 103 min no lançamento original. Há versões com 93, 100, 107 min

***1/2

Título na França: La Charrette Fantôme; em inglês, teve os títulos The Phantom Carriage, The Phantom Chariot, The Stroke of Midnight