3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Um pequeno grande, extraordinário filme. Mike Leigh mostra mais uma vez que é um dos maiores diretores de atores que há. E, depois de ir fundo nas relações familiares de pessoas humildes da working class inglesa, em Segredos e Mentiras, de 1996, e Agora ou Nunca, de 2002, faz uma alegre elegia à vida, um hino à felicidade.
Mike Leigh nunca foi um diretor do mainstream, a corrente principal, o cinemão comercial padrão; muito ao contrário, sempre foi um autor, um cineasta de estilo próprio que passa longe dos modismos. Ele reafirma isso de forma vigorosa neste Simplesmente Feliz/Happy-Go-Lucky, de 2008: vai contra a corrente, cada vez mais forte, das tramas complexas, cheias de surpresas, reviravoltas, acontecimentos extraordinários, e contra a corrente, já bem antiga e que permanece firme, de focalizar pessoas excepcionais, ou absolutamente heróicas ou absolutamente criminosas ou absolutamente loucas.
Seus personagens, mais uma vez, são gente normal, comum, ordinária no sentido estrito da palavra – gente como a imensa maioria da humanidade, como eu ou você, gente como a gente. E sua história é simples, de uma simplicidade imensa, absurda.
A protagonista é Poppy, uma mulher de 30 anos, professora primária, que leva uma vida absolutamente calma, comum. Vamos ver Poppy dando aula (é uma boa professora, atenta, dedicada), aprendendo a dirigir, saindo com as amigas para dançar (na foto, ela é a mais colorida da turma), para beber umas, indo a aulas de dança flamenca, visitando a irmã grávida, indo a um massagista tratar de uma dor nas costas, convivendo com Zoe, a amiga com quem divide uma apartamento faz dez anos, conhecendo um rapaz depois de muito tempo sem vida amorosa. Só isso. Nenhum fogo de artifício – vida de gente comum. Como entre as pessoas comuns há psicóticos, um deles cruzará o caminho de Poppy, como alguns cruzam com o de todos nós.
A única característica que torna Poppy uma pessoa especial é sua alegria. É uma pessoa alegre, de bem com a vida. Sorri o tempo todo, faz piada de tudo. O filme nos mostra isso desde o primeiro momento: enquanto vão rolando os créditos iniciais, vemos tomadas de Poppy andando de bicicleta pelas ruas de um bairro de Londres – o AllMovie diz que é a zona Norte de Londres; eu não identifiquei nada conhecido –, sorrindo o tempo todo, mostrando ao mundo sua alegria. Quando os créditos iniciais estão terminando, Poppy estaciona sua bicicleta, anda um pouco por uma rua onde há barracas vendendo coisas, entra numa livraria deserta, cumprimenta o funcionário, sorridente – e o sujeito olha para ela sério e sequer responde ao cumprimento. Poppy anda pela livraria, fuça uma coisa aqui, uma coisa ali, e se despede sorridente do funcionário de cara fechada, diz para ele ser feliz.
Ao longo de todo o filme, Poppy dirá para várias pessoas serem felizes.
Uma mulher cuca fresca
Aqui é preciso elogiar o título que deram para o filme no Brasil, eu, que me espanto com alguns títulos imbecis que dão para filmes estrangeiros: Simplesmente Feliz é o título perfeito em português para este filme. Os exibidores brasileiros acertaram bem mais que os de Portugal, onde o filme teve o título de Um Dia de Cada Vez. Sim, Poppy vive um dia de cada vez, mas o que o autor quis botar no título foi sua alegria, sua felicidade.
Não conhecia a expressão happy-go-lucky, do título original inglês. Segundo o dicionário da Longman, é um adjetivo em geral usado sem intenção ofensiva para designar pessoas ou comportamentos “showing a lack of careful thought or plannning, tendind not to worry; carefree” – que mostram uma falta de pensamento ou planejamento cuidadoso, com tendência a não se preocupar; despreocupado.
Pelo jeito, despreocupado é pouco – a melhor tradução para happy-go-lucky parece ser algo como cuca fresca.
Poppy é uma mulher cuca fresca. É uma dessas pessoas – me parece que é isso que o diretor Mike Leigh quis dizer com este filme – que sabem que têm sorte na vida: tiveram o privilégio de nascer sem grave deficiência, têm saúde normal, o dinheiro para as necessidades básicas. E mais ainda: sabem que as pessoas podem fazer sua própria sorte, enquanto outras perdem a oportunidade.
Uma atriz em momento de plenitude
A atriz que faz o papel de Poppy, Sally Hawkins, teve a grande oportunidade da vida – e soube aproveitá-la. É uma interpretação maravilhosa, excepcional, marcante. Por seu trabalho no filme, ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim, o Globo de Ouro de melhor atriz em comédia ou musical, os prêmio de melhor atriz das Associações dos Críticos de Boston, de Nova York e de Los Angeles, e mais o da Associação Nacional dos Críticos dos Estados Unidos. (Ao todo, o filme levou 20 prêmios e teve 15 indicações, inclusive para o Oscar de roteiro original.)
Sally Hawkins, nascida em Londres em 1976, não é uma mulher bonita, no sentido mais convencional, padrão – pelos conceitos tradicionais, muita gente poderá até achá-la feia. É uma mulher daquela beleza que vem de dentro, da personalidade, da vontade forte, da garra. E, meu Deus do céu e também da terra, como ela brilha neste filme aqui.
Não foi a primeira vez que teve a sorte de trabalhar com Mike Leigh. Havia feito papéis bem menores no já mencionado Agora ou Nunca/All or Nothing e em Vera Drake, de 2004, o excelente filme do mesmo diretor sobre uma mulher simples que fazia abortos de mulheres pobres na década de 1950. Fez também papéis secundários em O Despertar de uma Paixão/The Painted Veil, de 2006, bom filme de John Curran baseado em obra de Somerset Maugham, e em O Sonho de Cassandra, o filme de Woody Allen de 2007. Vi todos esses quatro citados neste parágrafo, e confesso que em nenhum deles havia reparado em Sally Hawkins. Dá até vontade de revê-los, porque a moça é uma atriz fantástica.
Bem, tudo indica que, depois deste Simplesmente Feliz e de todos os prêmios por ele, a carreira de Sally Hawkins deslanchou bonito. O iMDB lista oito filmes com ela que estão atualmente – escrevo em agosto de 2009 – em fase de produção, pré ou pós-produção ou que já foram anunciados.
A moça merece.
Gente de carne e osso
Depois que fiz a anotação acima, li o comentário sobre o filme feito no bom site spoiler (http://spoilermovies.com/). Há lá uma frase que eu gostaria de ter escrito: “Como no melhor Leigh, temos a sensação de não assistir a um filme mas sim ao cotidiano; não vemos personagens, mas gente de carne e osso.”
Simplesmente Feliz/Happy-Go-Lucky
De Mike Leigh, Inglaterra, 2008
Com Sally Hawkins (Poppy), Eddie Marsan (Scott), Alexis Zegerman (Zoe), Sinead Matthews (Alice), Andrea Riseborough (Dawn), Kate O’Flynn (Suzy), Sarah Niles (Tash), Sylvestra Le Touzel (Heather), Samuel Roukin (Tim)
Argumento e roteiro Mike Leigh
Fotografia Dick Pope
Música Gary Yershon
Produção Ingenious, Film 4. Estreou em SP 27/3/2009
Cor, 118 min
***
Título em Portugal: Um Dia de Cada Vez
Assim como ” Segredos e Mentiras ” , assisti este filme também, ontém.
Também gostei muito. Um grande filme.
Além de ela dizer para o dono da livraria ser feliz , ela diz tbm que não robou nada e,quando vai apanhar a bibicleta, tadinha, foi roubada . Mas ela encarou numa bôa com aquele estado de espirito feliz que tinha e diz: ” Puxa, nem tive tempo de me despedir”.
Eu jamais reagiria dessa forma.
A Poppy era uma otimista incorrigível. Um verdadeiro hino à vida.
Mas, fico com uma dúvida se , de fato , uma pessôa consegue ser assim, o dia todo, todos os dias. Será possível ??
Me lembrou até o personagem do Mateus Solano na novela ” Viver a Vida ” mas , de modo negativo. Ele era um dos gêmeos que vivia rindo de tudo e de nada , de desgraça dele e da alheia , de alegria e de tristeza. Dava nervoso. Acho que para ser uma pessôa alegre não é preciso ficar sorrindo “30 horas” por dia. Acho até que algumas mulheres não devem gostar de um homem que fique “arreganhando” os dentes o dia inteiro. Mas, via-se que era uma forçação de barra do “Maneco”.
Aqui neste filme com a Poppy é diferente ainda que eu continue com a dúvida.
Quero frisar que essa novela (muito chata)eu vi alguns poucos capitulos por fôrça de algumas circunstâncias pessoais.
O Scott era a amargura , o estresse , o desespero em pessôa.
De certa forma ela fazia ele ficar pior ainda com sua distração , desatenção nas aulas.
Para mim, as cenas entre os dois foram as melhores do filme. Gostei do Eddie Marsan. Se ele não é estressado, com certeza depois do filme ficou ( risos ).
Este filme encontrei na locadora e quero dizer que me interessei por ele , porque na sua opinião sôbre o filme ” Segredos e Mentiras ” , a amiga Claudia M , diz achar que as poucas que viram este filme , não gostaram. Quero dizer à ela que eu gostei muito.
Um abraço para ela. Outro para ti, Sergio.
Aqui está outro filme de Mike Leigh que vi recentemente e que me encantou. Cada vez gosto mais do cinema deste realizador. Também fiquei completamente banzado com a actriz Sally Hawkins que eu não me lembro de ter visto, embora apareça em filmes que eu vi. Enfim, outra maravilha. Por mim dava-lhe a nota máxima.