4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Este filme de título a princípio nada atraente é uma total, absoluta, maravilhosa delícia. É daqueles que encantam, fisgam o espectador já nos primeiros minutos, e ao fim dão vontade de aplaudir de pé como na ópera.
Em seu primeiro longa-metragem, Carlos Cuarón, nascido na capital mexicana em 1966, irmão mais novo de Alfonso Cuarón, faz uma gigantesca, cáustica, hilariante e ao final amarga gozação sobre o mundo do futebol, sobre a ascensão meteórica de jogadores da miséria para a riqueza extrema e sua incapacidade de lidar com isso, sobre a música brega, sobre a imprensa sensacionalista, sobre a corrupção endêmica, sobre o poder do tráfico de drogas, sobre a sociedade mexicana, em suma – mas poderia perfeitamente estar falando do Brasil.
É tudo igualzinho. É impressionante como o mosaico carnavalesco que o diretor e roteirista traça sobre o México faz lembrar a realidade brasileira. E é impossível a gente não deixar de ver na tela como a história de Rudo e Cursi é semelhante, em muitas coisas, às de ídolos nacionais como Ronaldo Fenômeno, Adriano Imperador de Roma e do Complexo do Alemão, Robinho, e tantos outros.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que este filme – feito em 2008 – reúne de novo Gael García Bernal e Diego Luna, os dois grandes atores-estrelas do atual cinema mexicano, umas espécies assim de Rodrigo Santoro e Selton Mello do paísão do Norte, tão perto dos Estados Unidos e tão longe de Deus, como se diz. Os dois atores tinham trabalhado juntos em E Sua Mãe Também/Y Tu Mamá También, de 2001, tremendo sucesso de público e crítica dirigido por Alfonso Cuarón, diretor que transita à vontade entre o cinema mexicano e o cinemão internacional feito em Hollywood (ele dirigiria, por exemplo, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban); o roteiro daquele filme foi feito a quatro mãos por Alfonso e seu irmão Carlos.
Neste filme aqui, Carlos Cuarón fez tudo – argumento, roteiro, direção. Alfonso Cuarón foi um dos produtores, ao lado dos dois outros grandes nomes do cinema mexicano atual, Guillermo Del Toro, de O Labirinto do Fauno e Hellboy, e Alejandro González Iñárritu, de 21 Gramas e Babel. Esses três caras juntos na produção de um filme seria o equivalente a um roteirista americano dirigir seu filme de estréia produzido por Spielberg, Scorsese e Coppola, juntos e ao vivo.
Então vamos lá. O filme conta a história de dois irmãos, Beto (Diego Luna) e Tato (Gael García Bernal), trabalhadores miseráveis na colheita de frutas de uma miserável área rural não muito distante da Cidade do México. Na verdade, eles são meio-irmãos, por parte da mãe, que ambos veneram; a mãe tem um filho com cada um dos vários homens que passam pela vida dela – e mais tarde a irmã de Beto e Tato vai se casar com o rico traficante de drogas do pedaço. No começo da ação, vemos que os dois irmãos odeiam o atual marido da mãe, um tipo grandão, violento, babaca.
Da Biafra à Suíça na velocidade da luz
Beto e Tato são apaixonados por futebol, e são muito bons de bola. Beto é goleiro, Tato é atacante. No campinho de várzea do lugarejo em que vivem, os dois são observados por Batuta (Guillermo Francella), um argentino malandro, safado a não mais poder, olheiro e empresário de talentos que ele descobre no interior do país e que poderão se dar bem em clubes profissionais. Batuta – veremos com o desenrolar da trama – ganha dinheiro dos jogadores que contrata e empresaria, dos técnicos, das diretorias do clube, das máfias das apostas, de todo o mundo envolvido no milionário e absolutamente corrupto universo do futebol profissional.
Batuta levará primeiro Tato e depois Beto para a Cidade do México; cada um vai para um clube, e neles os dois terão uma ascensão meteórica. É quando ganharão os apelidos que estão no título do filme. Beto, o goleiro, vai virar Rudo, porque é rude como uma lutador de boxe, dá porrada a três por quatro. Porque é romântico, apaixonado, e na verdade, mais do que jogar futebol, gostaria mesmo era de ser cantor popular de músicas bregas, Tato, o atacante, vai virar Cursi; segundo os dicionários, cursi é ridículo, afetado, de mau gosto; acho que não há palavra exata em português para definir o que os mexicanos chamam de cursi, mas parece ser assim uma junção de brega com piegas.
É sensacional a forma como Carlos Cuarón mostra essa travessia de Rudo, o rude, e de Cursi, o brega-piegas, da miséria para a riqueza abundante – uma viagem da Biafra para a Suíça à velocidade da luz. Rudo, que na sua área rural natal já tinha uma quedinha pela irresponsabilidade financeira e para o jogo, cairá de quatro diante da cocaína e da jogatina desenfreada. Cursi cairá de quatro apaixonado por uma bela modelo e apresentadora de TV, Maya (Jessica Mas) – e olha aí outra citação sobre os jogadores brasileiros. Não é com modelos que os craques milionários se casam – e elas depois não viram todas apresentadoras de TV?
O ritmo com que o diretor conduz seu filme é frenético, alucinante. Há um fato novo a cada minuto, uma nova piada, uma nova gozação. Diego Luna, Gael García Bernal e o argentino Guillermo Francella estão magníficos, sensacionais, os dois primeiros como os jogadores de futebol surpreendidos pela celebridade instantânea e o último como o malandro safado que os leva à fortuna e os explora. É tudo propositadamente exagerado, over, carnavalesco, latino-americanamente espalhafatoso e engraçado. As caras de sonsos de Luna e Bernal são hilariantes. E os textos com que o malandro Batuta vai pontuando a narrativa – ele é o narrador da história – são do mais absoluto brilhantismo.
Só para dar água na boca, lá vai uma das boas frases de Batuta (não é literal, mas é o que ele diz): “Nunca consegui gostar de goleiros. São um tipo horroroso. Afinal, estão ali para impedir que a gente tenha a alegria do gol.”
Faz tempo que eu, como brasileiro, sinto uma danada de uma inveja dos hermanos argentinos, que no futebol são, graças a Deus, mais pernas de pau do que nós, mas no cinema, cacilda, que goleadas nos dão. Agora estou também invejando os hermanos mexicanos. Filhos da mãe, como são competentes.
Um PS:
São estranhos os caminhos da distribuição de filmes. Feito em 2008, lançado em DVD no Brasil no primeiro semestre de 2009 como Rudo e Cursi, o filme foi exibido em São Paulo no 4º Festival de Cinema Latino-Americano de Cinema em julho de 2009 com o nome de Rude e Brega. Na França, o filme só estreou em setembro de 2010! Os franceses não tentaram traduzir os nomes: lá o filme se chamou Rudo et Cursi.
Rudo e Cursi/Rudo y Cursi
De Carlos Cuarón, México-EUA, 2008
Com Gael García Bernal, Diego Luna, Guillermo Francella, Jessica Mas, Adriana Paz
Argumento e roteiro Carlos Cuarón
Música Leoncio Lara
Produção Alfonso Cuarón, Alejandro González Iñarrutu, Guillermo del Toro. Canana, Cha cha chá, Focus Features.
Cor, 103 min
****
Este eu não conheço, fiquei motivada a vê-lo com suas estrelas. Vou procurar agora mesmo, abraços!
Ah eu vi e me deliciei com este filme. Ver Gael e Luna (talentosíssimos) como Rudi e Brega, não tem preço.
Confesso que também morri de inveja de nossos hermanos mexicanos, “putamadre” de talento, criatividade e do dom de comediar e denunciar ao mesmo tempo!
Belíssimo filme.
Delícia de filme mesmo!
Não sei se é impressão minha, mas não vi muitos comentários sobre ele, aqui no Brasil.
Adorei seu texto, super completo, como sempre, e morri de rir do “Adriano Imperador de Roma e do Complexo do Alemão”.
É realmente incrível como o filme poderia estar falando dos nossos jogadores.
Vamos ser sinceros: a breguice continua explícita mesmo depois que ficam ricos, adoram ostentar carrões e correntes de ouro; têm franca predileção por músicas e cantores bregas (aqui eles invariavelmente amam o pagode); luzes e penteados esdrúxulos fazem parte obrigatória do pacote.
Sem falar nas marias-chuteiras, representadas no filme pela namorada do Cursi.
Luna e Bernal estão ótimos (nem acho o Bernal tudo isso, mas ele se superou), e gostei muito também da atuação e do personagem do Guillermo Francella; pra quem gosta de futebol, o texto dele em off é ótimo (e hilário); as falas e até os palavrões são engraçados. E essa coisa de ele estar a cada hora com uma mulher diferente?
Tive dificuldade para entender o que Rudo, Cursi e sua família falavam, era muito rápido e arrastado.
Concordo totalmente com o seu último parágrafo: tb sinto inveja dos hermanos argentinos e dos hermanos mexicanos, no cinema!
***
Adorei o nome da produtora do trio parada dura, a Cha Cha Chá.
Curiosidade boba: a plantação de banana que aparece no filme é de propriedade da família Cuarón.
É um filme maravilhoso!!!
Muito bom msm a forma com que se conta toda essa máfia que se tornou o futebol e os persinagens são muito maneiros e engraçados.
Muito bacana!