Roma, um Nome de Mulher / Roma


3.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Este Roma, Um Nome de Mulher é um filme ambicioso. Conta a história de uma vida inteira, dos anos 50 até praticamente os dias de hoje – e, como pano de fundo, a história dos costumes, dos modos, da cultura, da sociedade e da política da Argentina ao longo de meio século. É um belo filme – longo, denso, carregado de amargura e de frases literárias que parecem querer ser definitivas, como as do testamento de um intelectual sobre o tempo que lhe deram para viver.

A ação começa em Madri, nos dias de hoje (o filme é de 2004): um rapaz vai de trem até uma casa nos arredores da capital, onde vive um escritor (foto abaixo). O rapaz, Manuel Cueto (Juan Diego Botto), filho de família humilde, de pescadores, estudante de jornalismo, foi convidado por uma editora para digitar o texto de um novo livro do autor. O escritor, Joaquín Goñez (José Sacristan), é um argentino que vive há três décadas na Espanha; já fez livros de sucesso, mas há seis anos não consegue escrever nada. Por dinheiro, resolveu escrever sua autobiografia; redige a mão, e caberá a Manuel o trabalho de digitação.

aroma2Goñez é um tipo pretensioso, brusco, grosseiro na relação com o jovem estudante. O rapaz precisa do dinheiro, sujeita-se ao tratamento quase brutal do mais velho. Goñez trata Manuel quase como um imbecil, um iletrado – embora ele não o seja; fala como se estivesse no alto de um púlpito, caga regras, dá lições tanto sobre literatura quanto sobre a vida.

Veremos que a agressividade, a grosseria dele vêm na verdade de uma grande amargura com que enxerga tudo na vida.

         Uma vida comum

Quando Manuel recebe as primeiras páginas escritas por Góñez e começa o trabalho de digitação, vem o primeiro flashback, que mostrará o que o escritor está descrevendo em seu texto – sua infância na Buenos Aires dos anos 50, quando era o garoto Joaco (Agustin Garvíe), e vivia confortavelmente numa bela casa com o pai músico (Gustavo Garzón) e a mãe também música, pianista, professora de piano. A mãe chama-se Roma (e é interpretada por Susú Pecoraro, uma atriz absolutamente extraordinária, a alma do filme a que seu personagem dá o título).

O pai de Joaco morre quando ele ainda está com uns 12 anos; Roma terá que cortar todas as despesas possíveis para sobreviver, mas manterá Joaco no caro colégio inglês em que estuda; quer completar o que o marido morto mais queria, dar uma boa educação para o filho único.

A ação voltará à Espanha, em novos diálogos entre Joaco transformado agora no velho Joaquin Góñez e o jovem Manuel, para em seguida voltar à Argentina, para acompanharmos mais capítulos da vida do biografado. É uma estrutura narrativa absolutamente tradicional, clássica, quase acadêmica. O diretor e co-roteirista Adolfo Aristarain, um veterano, não está nem um pouco interessado – percebe-se isso muito claramente – em inovações formais, criativóis, frescuras. Quer contar sua história – ele é o único autor do argumento. 

A história que ele conta é bem adequada ao estilo da narrativa: é igualmente tradicional, clássica. Não tem grandes reviravoltas, rodopios, surpresas. A vida de Joaco-Joaquín Góñez não tem, a rigor, nada de surpreendente. Muito ao contrário: é uma vida absolutamente comum de um intelectual classe média argentino, em muitas coisas parecido com a dos brasileiros de classe média, como qualquer um de nós que, como diria minha mãe, teve a oportunidade de alisar bancos de escola.

Adolescente e depois jovem (agora interpretado por Juan Diego Botto, o mesmo que interpreta o jovem Manuel na Espanha de hoje em dia), Joaco lê desesperadamente, profusamente. Para ganhar algum dinheiro, faz traduções do inglês para o espanhol e dá aulas, ao mesmo tempo em que começa a escrever alguns contos. Abandona a educação tradicional, não faz faculdade, mas seus amigos são universitários típicos dos anos 60; freqüenta um sebo em que o dono, Smirnoff (Marcos Mundstock), bebe e ouve música e faz digressões sobre jazz e jazzistas diante de uma platéia de jovens estudantes, que, por sua vez, namoram, trepam, vão ao cinema, militam no movimento estudantil contra a ditadura. Mais tarde alguns deles vão se envolver na luta armada.

Joaco faz tremendo sucesso com as mulheres; a única que ele não come é Renée (Marcela Kloosterboer), que tem um caso com um professor de semiótica 30 anos mais velho, naturalmente casado. Renée será a paixão de sua vida.

aromaA coisa mais marcante, mais extraordinária da vida de Joaco é exatamente Roma, sua mãe, uma pessoa esplêndida, maravilhosa, inteligente, sensível, carinhosa, que faz tudo o que é possível para dar felicidade ao filho.

         A história de uma geração

O que se percebe no filme é isto: o diretor optou por não contar uma vida extraordinária, e sim uma vida exatamente igual à de tanta gente de uma geração – a sua geração. É, claramente, uma autobiografia do diretor Adolfo Aristarain. Não dos fatos em si, mas do espírito, do tipo de pensamento, da forma com que cresceu e passou a ver o mundo – ele e seus companheiros todos de geração.

Aristarain nasceu em Buenos Aires em 1943. Teve uma longa e rica experiência no cinema antes de dirigir seus próprios filmes. Começou em 1965, aos 22 anos, portanto, e trabalhou tanto na Espanha quanto na Argentina, de onde saiu nos períodos piores da ditadura militar. O Dicionário de Cinema – Os Diretores, de Jean Tulard, enumera que ele foi assistente de direção em várias produções internacionais: Era uma Vez no Oeste, de Sergio Leone, Os Aventureiros, de Lewis Gilbert, Um Toque de Classe, de Melvin Frank, Caçada Implacável, de Peter Collinson. Estreou como diretor em 1978, com La Parte del León, mas amargou fracassos até Tiempo de Revancha, de 1981, que ganhou dez prêmios. Voltou a ter fracassos, mas com Um Lugar no Mundo, de 1992, teve prêmios na Argentina, na Espanha, Canadá, Suíça, França e Brasil (melhor filme e prêmio da Crítica em Gramado).  

Em 2002, fez o excelente Lugares Comuns, beleza de filme cheio de boas considerações sobre a vida, que conta a história de um casal maduro que, depois da aposentadoria do marido professor, troca Buenos Aires por uma pequena fazenda no interior.

         No testamento, homenagem a John Ford

Em 2004 fez este filme aqui – e não voltou a dirigir mais, o que aumenta a sensação de que este Roma é assim uma espécie de autobiografia e de testamento, embora ele ainda possa, é claro, realizar muitas novas obras.

Quando falta assim um terço para terminar sua longa narrativa (são 155 minutos), Aristarain resolve enfiar nela uma espécie assim de manifesto do que ele entende por cinema. Juaco, uma amiga, mais seu amigo ativista político Guido (Maximiliano Ghione) e sua namorada Alícia (Marina Glezer) vão a um grande cinema do centro de Buenos Aires ver um filme de John Ford. Na fila, falam sobre John Ford, sobre o fato de ele ter ficado conhecido como diretor de westerns, embora tenha feito de tudo, passado por todos os gêneros.

O filme que os personagens vão ver é Vinhas da Ira. A seqüência deles na fila, e depois lá dentro da sala de cinema gigantesca, é para entrar em qualquer antologia. A seqüência que passa na tela é uma das mais antológicas de todas as de cento e tantos anos de cinema, a do discurso de Tom Joad-Henry Fonda sobre a injustiça social: “Eu estarei lá no escuro – eu estarei em todos os lugares. Onde quer que haja uma luta para que as pessoas famintas possam comer, estarei lá. Onde quer que haja um policial batendo num sujeito, estarei lá.” 

Sim, claro, John Ford, o diretor que, como Aristarain, não perde tempo com criativóis, fogos de artifício, manobrinhas formais. Sim, claro, exatamente o discurso de Tom Joad-Henry Fonda sobre injustiça social. É o testamento de um diretor maduro, que resolveu fazer um balanço do tempo que lhe deram para viver. Tiro o chapéu para Adolfo Aristarain.

Roma, Um Nome de Mulher/Roma

De Adolfo Aristarain, Espanha-Argentina, 2004.

Com Juan Diego Botto, Susú Pecoraro, José Sacristán, Agustin Garvie, Marcela Kloosterboer, Maximiliano Ghione, Marina Glezer, Carla Crespo, Gustavo Garzón, Marcos Mundstock

Roteiro Mario Camus, Kathy Saavedra e Adolfo Aristarain

Baseado em história de Adolfo Aristarain

Produção Tesela, Aristarain P.C.

Cor, 155 min

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