3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Este filme parte de uma idéia absolutamente única e brilhante, que o jovem F. Scott Fitzgerald teve nos anos 20, e ninguém tinha ainda ousado levar para o cinema. E a realização do filme pôde, felizmente, contar com tudo o que Hollywood, o dinheiro e as modernas técnicas do cinema pós computação gráfica são capazes de fazer de melhor. É tudo, tudo perfeito, um banquete para os olhos.
Não só para os olhos; não é um filme só de beleza plástica e vazio de idéias. Fala, de forma bela, suave, triste, dos temas que mais importam – o amor, a passagem do tempo, a fugacidade de tudo, a eterna noção de que tudo é finito, passageiro, rápido, e a cada dia nos aproximamos mais do fim; os filhos; esse conjunto incompreensível, acima de qualquer explicação lógica, de pequenos encontros, eventos, desencontros, coincidências, casualidades, de que é feita a vida.
Tudo com uma beleza visual assombrosa.
Comprei 6 Contos da Era do Jazz, edição da Civilização Brasileira, em 1964, e li naquela época; releria especificamente O Curioso Caso de Benjamin Button em 1996, segundo tenho anotado, embora nem me lembrasse disso; li os demais livros de Fitzgerald (1896-1940) nos anos 60; faz muito tempo, portanto. Mas, se não me engano, se não me falha a memória, a história que ele bolou, engendrou, criou nesse conto é absolutamente singular dentro de sua obra. É o texto menos Fitzgerald de tudo o que Fitzgerald escreveu. O Curioso Caso de Benjamin Button, de apenas 30 páginas, foi publicado em setembro de 1921, dentro do seu segundo livro de contos, Tales of the Jazz Age.
É a história de um sujeito, esse Benjamin Button, que nasce, vive e morre de trás para diante. Nasce bem velhinho, com todo o aspecto de uns 70 e muitos, 80 anos. À medida em que o tempo vai passando, ele vai ficando mais jovem.
Ora, isso é uma idéia de ficção total – seria de se esperar que saísse da cabeça de um Arthur C. Clarke, de um Isaac Asimov, de um Fredric Brown, de um Clifford D. Simak. Pois saiu da cabeça de F. Scot Fitzgerald, um sujeito que, em todos os seus demais trabalhos (se não estou enganado, se não me falha a memória), falou apenas e tão somente das coisas mais reais, menos fantásticas possíveis – falou da vida que ele levava e que via as pessoas a seu redor levando, gente de carne, osso, sonhos, ambições, cachaça, muita cachaça, muita desilusão, alguns com muito dinheiro, a maioria morrendo de inveja daqueles poucos. “Os ricos são muito diferentes de você e de mim”, escreveu, na abertura de um de seus textos (ao que seu contemporâneo Hemingway, muito mais curto e grosso que ele, teria replicado dizendo: “É claro, eles têm mais dinheiro”).
Por que o sujeito que descreveu melhor do que ninguém a vida dos americanos ricos ou quase ricos dos anos 20, os roaring twenties, a jazz age, resolveu um belo dia ter a idéia ovo de Colombo, brilhante, única, singular, que nunca ninguém teve, nem Clarke, nem Asimov, nem Brown, nem Simak, vai lá a gente saber. Há mais mistérios neste mundo de Deus e do diabo do que pode imaginar a nossa vã filosofia, Horácio.
Grande Fitzgerald.
Uma vez eu anotei, quando ainda anotava sobre filmes só para mim mesmo, que “a verdade dos fatos, por mais triste que seja, é que F. Scott Fitzgerald e o cinema nunca se deram muito bem. Ele não foi feliz na temporada que passou em Hollywood, no fim da vida; não fez um grande roteiro, não conseguiu terminar The Last Tycoon, o romance que retrataria a vida de um poderoso chefão de estúdio – e nenhum grande filme foi feito com base nas obras dele”.
Como é inventivo, criativo, surpreendente, inesperado, o roteiro da vida. Em 2008, finalmente fizeram um belo filme baseado em Fitzgerald. Baseado justamente no seu texto menos Fitzgerald.
Uma bela história, com a História por trás
É preciso que fique claro que, na verdade, O Curioso Caso de Benjamin Button, o filme, a rigor, de Fitzgerald, só tem a idéia básica – a história de um sujeito que nasce, vive e morre de trás para diante. Toda a história que está no filme foi criada – a partir dessa idéia básica do grande escritor – por Eric Roth e Robin Swicord, e transformada em roteiro por Eric Roth. Não tenho idéia de quem seja Robin Swicord, mas Eric Roth é um senhor roteirista – fez, entre muitas outras coisas importantes, o roteiro de Munique, de Steven Spielberg, e de Forrest Gump, de Robert Zemeckis.
E fizeram um admirável trabalho ao construir a história desse Benjamin Button do cinema. É uma belíssima história, que começa em 1918, no dia do fim da Primeira Guerra Mundial, aquela que diziam que era para acabar com todas as guerras, e vai terminar em 2005, em plena era Bush, no dia em que o furacão Katrina chegava para destruir boa parte de Nova Orleans.
Lembra Forrest Gump, do mesmo roteirista Eric Roth, ao botar como pano de fundo da história daqueles personagens muitos dos fatos importantes da Grande História ao longo de 80 anos.
Lembra também – fiquei pensando nisso enquanto via o filme –, de uma certa forma, a história do Conde Drácula, filmada por Murnau, por Herzog, por Coppola, entre tantos outros, aquela coisa da dor profunda de quem tem uma vida completamente diferente da de todos os demais seres humanos, e com isso refletem, e fazem os espectadores refletir, sobre a finitude da coisas, a fugacidade de tudo, como todos e tudo somos passageiros, até mesmo os cobradores e os motorneiros, tudo tem data de vencimento – a grande tragédia é que não sabemos que data é essa.
De uma perfeição absoluta em termos visuais, o filme foi o que teve maior número de indicações para o Oscar 2009, o ano em que o grande vencedor foi o inglês-indiano Quem Quer Ser um Milionário. Foram 13 indicações: filme, direção para David Fincher, ator para Brad Pitt, atriz coadjuvante para Taraji P. Henson, roteiro adaptado, fotografia para Claudio Miranda, figurinos, montagem, trilha sonora original, som, direção de arte, maquilagem, efeitos visuais. Ganhou apenas os últimos três, que são de fato um brilho total.
David Fincher é um bom diretor de thrillers, de filmes de ação, sangue e assassinatos. Fez Seven, Clube de Luta (os dois com o mesmo Brad Pitt deste filme aqui), O Quarto do Pânico, Zodíaco. Estava fora de seu habitat natural, aqui. Perfeito: Fitzgerald também estava quando escreveu o conto que deu origem ao filme.
Brad Pitt está muito bem como Benjamin Button; cada vez mais ele prova que não é só um moço bonito, é também um ator de talento. Cate Blanchett, essa Meryl Streep das gerações mais novas, está ótima como sempre e especialmente linda como Daisy, o amor da vida inteira do protagonista, e o diretor David Fincher soube aproveitar tanto o talento dela quanto a beleza de seu rosto e de seu corpo espetacular, mostrados por uma câmara deliciada. Fiquei chocado comigo mesmo ao ver, nos créditos finais – não há créditos iniciais no filme –, que a atriz que faz Caroline, a filha de Daisy, é Julia Ormond. Enquanto via o filme, não a reconheci; achava que já tinha visto aquela atriz, mas não me caiu a ficha de que era Julia Ormond, uma atriz sensacional que adoro – e sobre quem já anotei várias vezes que deveria fazer mais filmes. Ela está – achei, em retrospecto – um tanto maquiada para parecer menos bonita do que é; me parece que quiseram mostrá-la como uma mulher um tanto mal tratada, um tanto desleixada.
Penso no povo do nariz empinado, os neguinhos papo-cabeça que não gostam de “cinema americano” (como se houvesse um, e não 20 tipos diferentes de cinema americano), os que não perdem um dos filmes de arte da Mostra de Cinema mas se recusam a ver filmes feitos naquela coisa menor, babaca, imbecil, que é o Império. Tadinhos, não verão O Curioso Caso de Benjamin Button. Vão perder uma das seqüências mais brilhantes da história do cinema, a das coincidências, fatalidades, encontros e desencontros, acasos, descasos, as pequenas coisas que fazem a vida – a seqüência, bem no meio do filme, em que há um acidente que muda a vida da personagem de Daisy. Demy, Lelouch, Kieslowski com toda a certeza gostariam de ter feito aquela seqüência. É algo para a gente ver e rever sempre, quando se está alegre ou quando se está deprimido com o estado do mundo, com tanta imbecilidade que nos cai sobre a cabeça diariamente quando lemos o jornal do dia. É de uma beleza tão grande que conforta.
Um texto de babar
O texto que Eric Roth escreveu para essa seqüência, e que é dito em off pela voz de Brad Pitt, é de um brilho fenomenal. As imagens da seqüência são incrivelmente belas, é tudo perfeito e maravilhoso. Mas tudo parte do texto, tudo começa no texto. Como sou uma pessoa apaixonada por belos textos, reproduzo a íntegra, que o iMDB, essa enciclopédia que tem tudo, transcreveu. É um tanto grande, fiquei com preguiça de traduzir; peço desculpas por isso, mas não resisto à vontade de ter este texto dentro do site:
“Sometimes we’re on a collision course, and we just don’t know it. Whether it’s by accident or by design, there’s not a thing we can do about it. A woman in Paris was on her way to go shopping, but she had forgotten her coat – went back to get it. When she had gotten her coat, the phone had rung, so she’d stopped to answer it; talked for a couple of minutes. While the woman was on the phone, Daisy was rehearsing for a performance at the Paris Opera House. And while she was rehearsing, the woman, off the phone now, had gone outside to get a taxi. Now a taxi driver had dropped off a fare earlier and had stopped to get a cup of coffee. And all the while, Daisy was rehearsing. And this cab driver, who dropped off the earlier fare; who’d stopped to get the cup of coffee, had picked up the lady who was going to shopping, and had missed getting an earlier cab. The taxi had to stop for a man crossing the street, who had left for work five minutes later than he normally did, because he forgot to set off his alarm. While that man, late for work, was crossing the street, Daisy had finished rehearsing, and was taking a shower. And while Daisy was showering, the taxi was waiting outside a boutique for the woman to pick up a package, which hadn’t been wrapped yet, because the girl who was supposed to wrap it had broken up with her boyfriend the night before, and forgot.
“When the package was wrapped, the woman, who was back in the cab, was blocked by a delivery truck, all the while Daisy was getting dressed. The delivery truck pulled away and the taxi was able to move, while Daisy, the last to be dressed, waited for one of her friends, who had broken a shoelace. While the taxi was stopped, waiting for a traffic light, Daisy and her friend came out the back of the theater. And if only one thing had happened differently: if that shoelace hadn’t broken; or that delivery truck had moved moments earlier; or that package had been wrapped and ready, because the girl hadn’t broken up with her boyfriend; or that man had set his alarm and got up five minutes earlier; or that taxi driver hadn’t stopped for a cup of coffee; or that woman had remembered her coat, and got into an earlier cab, Daisy and her friend would’ve crossed the street, and the taxi would’ve driven by. But life being what it is – a series of intersecting lives and incidents, out of anyone’s control – that taxi did not go by, and that driver was momentarily distracted, and that taxi hit Daisy, and her leg was crushed.”
O Curioso Caso de Benjamin Button/The Curious Case of Benjamin Button
De David Fincher, EUA, 2008
Com Brad Pitt, Cate Blanchett, Julia Ormond, Tilda Swinton, Elias Koteas,
Roteiro Eric Roth
História Eric Roth e Robin Swicord
Baseado no conto de F. Scott Fitzgerald
Fotografia Claudio Miranda
Música Alexandre Desplat
Produção Warner Bros e Paramount, Kennedy-Marshal Productions
Cor, 167 min.
***1/2
Concordo em absoluto, mas me restou uma dúvida: o que faltou para o filme receber nota máxima aqui – em seu site?
Sergio,
Uma pequena curiosidade: a parte do filme que se passa em Paris – justamente a da seqüência que te encantou – foi filmada em Montreal, no Canadá. Eu e e a Juliana estávamos por lá na época, 2007. Um dia, andando pela Old Montreal, acabei caindo sem querer numa rua em que as filmagens com o Brad Pitt estavam sendo feitas. Fiquei esperando para ver se dava para ver algo, mas não deu. As filmagens eram dentro de um prédio, só a parafernália da produção estava do lado de fora. Lembrança boba, mas no dia que vi o filme deu aquele pequeno orgulho besta de pensar que estava bem ali do lado.
Abração
Cara Flávia, a pergunta que você faz – o que faltou para o filme receber nota máxima – é daquelas difíceis de responder. Vou tentar.
Não raciocino muito sobre a nota – é uma coisa mais de intuição, ou de sensação, de gosto. É como se a nota se desse por si mesma, assim que termino de ver o filme. Mas, diante da sua pergunta, fiquei pensando… Acho que é assim: três estrelas é para um filme muito bom. Três e meia é para um filme ótimo, especial, todo muito bem feito. Quatro estrelas é para um filme excelente, imprescindível. Imprescindível – que tinha mesmo que ser feito, que acrescenta, que muda o jeito de a gente ver as coisas. É uma diferença sutil, mas é uma diferença.
Mas são todos conceitos muito pessoais, mesmo, muito mais do que científicos, pesados, sérios.
É um dos filmes que deu vontade de levantar da cadeira após os créditos e aplaudir, apaludir muito.
A mensagem que o filme traz, nos dias de hoje, é essencial.
Uma mensagem deixada de maneira simples e encantadora. Maravilhoso.
Irei me aprofundar no Fitzgerald, quero saber mais sobre.
Sérgio, aqui vou ter de discordar. Achei o filme bom, mas com pecados que não dá para deixar passar. Como que este homem vira bebê?!?!? Podia ter uma artimanha melhor.
Claro que a idéia é daquelas que pensamos: porque jamais foi feito um filme com esse enredo? Mas achei que seria arrebatado no cinema, o que não houve.
Talvez porque fui preparado para ver um filme inesquecível, me decepcionei. Saí com a nítida impressão de um Forrest Gump piorado.
Realmente o filme é ótimo, não segue à risca o texto de Fitzgerald onde inclusive o Button já nasce grande, em literatura não é preciso disfarçar de possível uma história para que ela seja aceita, já no cinema tem muita gente que não consegue ter o mínimo de abstração, como dá pra ver pelo Danilo Vicente aí. Enfim, eu queria que você falasse sobre a atuação da Tilda Swinton, na minha opinião ela rouba o filme para si quando aparece em cena.
Ainda um dia espero ter coragem para ver este filme – é que quase 3 horas de filme é muito cá para o rapaz!
(E também já li comentários pouco elogiosos).