3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Tive sensações diferentes, ao rever mais uma vez, agora, O Céu é Testemunha, o filme de John Huston de 1957 sobre um fuzileiro americano e uma freira inglesa juntos e sozinhos em uma ilha do Pacífico durante a Segunda Guerra. Em inglês ficaria mais bonitinho: mixed feelings. Sensações diferentes, às vezes conflitantes.
Há momentos em que o filme me pareceu brilhante, extraordinário. Há momentos em que ele me pareceu ingênuo demais, naïf – como os quadrinhos, as pequenas telas de estilo naïf que estão por toda a parte em que a gente for, no Brasil inteiro. Há outros momentos em que ele soa improvável, implausível, impossível.
Em algumas horas me peguei pensando que houve um grande erro de casting – tanto Robert Mitchum quanto Deborah Kerr estão maduros demais para os papéis. A história funcionaria melhor (cheguei a pensar) se o fuzileiro fosse mais verdinho, mais jovenzinho, da mesma forma que a freira. Mas em seguida me dava conta de que, não, não, o filme não existiria se não fossem exatamente eles, Robert Mitchum, aos 40 anos, com aquela cara de mil expressões diferentes – bravura, cuidado, temor, bravata, alegria, preocupação, estranheza, deslumbramento diante da bela mulher –, e Deborah Kerr, aos 36 anos, com aquela beleza resplandecente, angelical, educada, demonstrando às vezes surpresa, pueril, petrificada de medo, de espanto, até mesmo de dúvida.
Acho que é por aí mesmo. O filme é tudo isto. São dois grandes atores fazendo papéis que de fato ficariam mais adequados para uma dupla bem mais jovem – mas vem exatamente deles boa parte da força que o filme tem. E, sim, o filme tem uma grande força – é, na conta final, um belo, comovente, emocionante filme, embora tenha momentos de grande ingenuidade e outros absolutamente improváveis.
Afinal, é um filme do mestre John Huston, provavelmente o mais irregular dos grandes diretores.
O filme abre com tomadas do mar aberto, um pequeno bote salva-vidas, daqueles infláveis, de borracha, perdido na imensidão. Um letreiro nos avisa local e data: “Algum lugar do Pacífico Sul, 1944” – um ano antes do fim da guerra, portanto. Há no bote um sobrevivente de naufrágio – saberemos que é um cabo dos fuzileiros navais dos Estados Unidos, Allison. O bote acaba indo dar numa ilha tropical, onde o único outro ser humano é uma freira inglesa, a irmã Angela; tinha chegado ali quatro dias antes, com um velho padre, à procura de um outro padre; o navio em que estavam os dois acaba partindo sem eles; o velho padre morre, a freira está sozinha. Estava – agora tem como companhia o fuzileiro.
Viverão ali os dois diversos tipos de aventuras, da simples necessidade de achar comida até um jogo de esconde-esconde com centenas de japoneses que desembarcarão na mesma ilha. Passando, é claro, pelas emoções que a presença do outro provoca em cada um – ele, sujeito iletrado, inculto, criado em orfanato e reformatório, incréu; ela, pessoa doce, serena, dedicada ao serviço religioso, fé inquebrantável em Cristo.
Encontro-choque de personalidades díspares, um choque cultural entre Eva e Adão no que poderia até ser um belo paraíso tropical, o mar, a praia, o riacho, os coqueiros – se não fossem as bombas dos japoneses, a guerra, a fome, a privação de tudo.
De uma certa forma, é um pouco a reedição do que Huston havia feito seis anos antes, em Uma Aventura na África/The African Queen, em que uma missionária inglesa (interpretada por Katharine Hepburn) se encontra no coração da selva africana com um duro americano (o papel de Humphrey Bogart). Um choque cultural envolvendo um homem e uma mulher, num ambiente hostil, longe de qualquer traço de civilização.
“Acho que foi uma das melhores coisas que já fiz”
Pela sua belíssima interpretação da freira, Deborah Kerr teve uma de suas seis indicações ao Oscar; não levou; o prêmio foi para Joanne Woodward, por As Três Máscaras de Eva/The Three Faces of Eve. John Huston e John Lee Mahin também tiveram a indicação ao Oscar de roteiro adaptado; o prêmio foi para outro filme do mesmo ano sobre a guerra contra os japoneses, A Ponte do Rio Kwai. Robert Mitchum teve uma indicação para o Bafta, o Oscar britânico.
Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4: “Maravilhosa, tocante história da freira Kerr e do fuzileiro Mitchum isolados numa ilha do Pacífico infestada por japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Sólidas interpretações dos astros”.
Pego na estante John Huston – Um Livro Aberto, a bela autobiografia do cineasta, lançada em 1980 e publicada no Brasil em 1987 pela gaúcha L&PM, para ver o que ele próprio diz sobre o filme. Começa bem: conta que Budd Adler, que Huston conhecia desde a época da Segunda Guerra, e na época era chefe-executivo de produção na 20th Century Fox, mandou para ele um argumento “escrito por John Lee Mahin, que tinha sido um dos melhores roteiristas dos bons tempos da Metro”.
“A história era bem interessante, apesar de baseada num péssimo romance que explorava todas as mais óbvias implicações sexuais da presença de um fuzileiro naval e uma freira isolados, depois de um naufrágio, numa ilha do sul do Pacífico”, escreve Huston. “Por esse motivo eu já tinha rejeitado a idéia de aproveitá-la para um filme. Mas o tratamento dado por Mahin reavivou meu interesse. Ele havia suprimido os excessos de mau gosto da situação e eu vi como se poderia – com algumas modificações – transformá-la num bom filme. Mahin e eu fomos lá para Ensenada, na Baja Califórnia, onde escrevemos o novo roteiro em cinco ou seis semanas, trabalhando sem parar e permutando cenas entre nós dois.” (…)
“Nosso roteiro, a meu ver, ficou muito bom. A escolha do elenco também me agradou muito: Deborah Kerr e Robert Mitchum. O meu conhecimento de Bob era fortuito, mas sentia grande respeito pelo seu talento. Tratava-se de uma história ainda mais limitada a dois personagens do que Uma Aventura na África.” (…)
John Huston faz grandes elogios à seriedade e dedicação tanto de Bob Mitchum quanto de Deborah Kerr. Conta que filmou três ou quatro vezes a seqüência em que Mitchum rasteja no chão, à procura de alguma comida do acampamento japonês; quando ficou satisfeito, após a terceira ou quarta série de tomadas, viu que o ator estava sangrando “dos pés ao pescoço – tinha se arrastado por um terreno coberto de urtigas”. Perguntou então a ele por que raios havia feito aquilo, e Mitchum respondeu: “Porque você pediu”.
Sobre Deborah Kerr – aquela atriz de porte fidalgo, elegante, com uma aparência de certa fragilidade física –, o diretor conta a história da seqüência em que ela sai da cabana no meio de uma tempestade e acaba caindo num mangue, onde passa a noite desmaiada. Tobago, onde o filme foi rodado, “oferecia o que aquela seqüência pedia – um pântano cheio de lodo e limo, infestado por cobras e bichinhos estranhos”. “Deborah tinha que se deitar no meio daquele horror, o que fez sem reclamar nem um pouco. Só anos depois fiquei sabendo que isso havia sido uma prova tão terrível que ela quase se acovardou por completo. Não disse nada quando filmamos a cena, mas teve pesadelos por causa daquele pântano durante semanas a fio. E até hoje, de vez em quando, ainda sonha com ele.”
“Alisson quase nunca é objeto de comentários, mas acho que foi uma das melhores coisas que fiz até hoje. Era despretencioso, com um diálogo muito simples, bem feito, e apoiado numa estrutura de primeira ordem. Não caímos no lugar-comum da freira e do fuzileiro naval, e o assunto foi abordado com grande delicadeza de sentimento. (…) As platéias aprenderam a amar aquelas duas criaturas.”
Duas criaturas adoráveis
É bem verdade. Disse-o bem o mestre Huston. São duas criaturas adoráveis, a freira e o senhor Allison, como ele a chama o tempo todo todo – ele a chama de madame, mad’am, no seu sotaque americano. E não poderiam ter sido interpretados por mais ninguém a não ser por Mitchum e Deborah Kerr. O céu sabe, Sr. Allison.
Um detalhinho de nada, já que citei o belíssimo título original, Heaven Knows, Mr. Allison. O título brasileiro do filme aparece de duas formas diferentes. É O Céu Por Testemunha na capa do DVD da ClassicLine, no Dicionário de Jean Tulard editado no Brasil pela L&PM e no livro Tudo Sobre o Oscar. E aparece como O Céu é Testemunha no Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho, em John Huston – Um Livro Aberto, e também no IMDb.
Os franceses seguiram o espírito do título original: Dieu Seul le Sait, só Deus sabe. Os exibidores portugueses abriram o vidrinho de criativol e saíram-se com O Espírito e a Carne. Tudo o que John Huston não queria que fosse.
Me ocorre que este é mais um daqueles filmes que jamais seriam feitos pelo cinemão de Hollywood hoje em dia, como tantos outros dos anos dourados das décadas de 30 a 50. É sério; não fala muito para platéis adolescentes – de idade ou de cabeça. Não tem exageros, grandes surpresas, reviravoltas. É filme para gente grande.
Obrigado, mestre Huston.
O Céu é Testemunha/Heaven Knows, Mr. Allison
De John Huston, EUA, 1957
Com Deborah Kerr, Robert Mitchum
Roteiro John Lee Mahin e John Huston
Baseado no livro de Charles Shaw
Fotografia Oswald Morris
Música Georges Auric
Produção 20th Century Fox
Cor, 108 min
R, ***
Título em Portugal: O Espírito e a Carne. Título na França: Dieu Seul le Sait
SENSACIONALMENTE MARAVILHOSO RETRATA A MINHA INFANCIA NASCI EM SOBRAL CEARÁ MORO EM FORTALEZA.CEARÁ BRASIL VALEU.
foi um que marcou a minha vida positivamente.o jamis esqueci.valeu nora mil
a historia da vida conta com amor.
Adoro esse filme. Estou com vontade de revê-lo. Os atores são maravilhosos. É interessante isso que você disse sobre os atores serem muito velhos para os personagens. Mas, no fim, funciona muito bem. Isso acontece em muitos desses filmes clássicos. Por que será? Acho que vou comprar o DVD.