4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Kanal é um filme impressionante. É “brilhante, excessivo, barroco, e comporta vigorosas seqüências, ao lado de exageros que beiram o mau gosto”. É também um filme de enorme, gigantesca importância histórica.
Não é, de forma alguma, um filme fácil, agradável de se ver. Não é para todas as platéias. Muito ao contrário. É forte, poderoso, de uma violência absurda – tanto, mas tanto, que chega a ser repulsivo. Retrata os últimos dias de um pelotão de poloneses que participam do levante de Varsóvia, em setembro de 1944; a maior parte da ação se passa dentro dos esgotos (“kanal”, em polonês) da capital polonesa, por onde aquele bando de homens e umas poucas mulheres tentam escapar dos nazistas que ocupam seu país, às vésperas da chegada, pelo Leste, do Exército soviético em seu avanço rumo à Alemanha, enquanto os demais aliados chegavam pelo Oeste.
Alguém definiu o filme como dantesco. É uma bela definição. Um dos personagens citará Dante – e o filme é de fato uma descida ao inferno.
Durante os créditos iniciais, vemos cenas estarrecedoras da grande cidade em ruínas, depois dos sucessivos bombardeios aéreos. Já vi em muitos filmes tomadas das cidades européias após bombardeios, mas essas me impressionaram demais. Só essas cenas já são chocantes, um grito desesperado sobre a insanidade da guerra. Ao fim dos créditos iniciais, há um longo, brilhante plano-seqüência em que vemos o pelotão de revoltosos caminhando entre os prédios em ruínas e escondendo-se do fogo alemão. A voz em off de um narrador vai nos apresentando os personagens do drama que veremos a seguir, enquanto a câmara vai em prolongado travelling passando pelas diversas pessoas do grupo. O narrador termina sua apresentação nos dizendo: “Olhem bem para eles. Estão vivendo as últimas horas de suas vidas”.
Só com esse longo, genial plano-seqüência, já está dito, anunciado, berrado ao mundo: surgiu um grande cineasta, um dos maiores da história.
Andrzej Wajda tinha 30 anos em 1956, quando filmou Kanal. Tinha se formado na escola de cinema de Lódz, e dirigido um outro longa-metragem antes, Geração/Pokolenie, de 1955. Esses dois, mais Cinzas e Diamantes/Popiól i diament, de 1958, compõem o que ficou conhecido como A Trilogia da Guerra.
Kanal foi exibido no Festival de Cannes em 1957, e deixou a crítica mundial estarrecida. Levou o Prêmio Especial do Júri, e chamou a atenção do mundo inteiro para o cinema que jovens realizadores poloneses formados em Lódz estavam fazendo – Jerzy Kawalerowicz, Andrzej Munk, o próprio Wajda; um pouco mais tarde viriam, da mesma escola, Roman Polanski e Krzysztof Kieslowski. Passou a ser um fato estabelecido que o novo cinema polonês era o mais talentoso e brilhante do mundo comunista, um dos melhores do mundo inteiro.
Dos livros dos anos 60 até os especiais dos DVDs
Era o que estava dito nos livros sobre cinema publicados nos anos 60, como The Contemporary Cinema, de Penelope Houston, Film World, de Ivor Montagu, a História do Cinema Mundial, de Georges Sadoul; é do grande estudioso e historiador Sadoul, na edição brasileira de 1963, da Livraria Martins Editora, a frase entre aspas do primeiro parágrafo desta anotação aqui. Li esses livros adolescente, enquanto começava a aprender sobre história do cinema, e passei a admirar Wajda desde então. Vi Kanal e revi Cinzas e Diamantes (tinha visto uma vez em 1969) agora, 2009, nos DVDs lançados no Brasil pela Aurora DVD. Os DVDs incluem excelentes entrevistas de Wajda, de Janusz Morgenstern, que trabalhou como assistente de direção e foi responsável por trechos do filme, e de um professor e crítico polonês, Jerzy Plazewski; os especiais foram feitos já nos anos 2000 pelos editores da Criterion, responsáveis pelo que parecem ser os mais completos e perfeitos DVDs de filmes clássicos do mundo.
As entrevistas são excelentes, porque botam todos os fatos dentro do seu contexto, iluminam o que pode passar despercebido pelos espectadores que não têm muitas informações sobre o levante de Varsóvia – e quem é que tem? Bem, eu não tinha, ao ver o filme.
Então, o que me pareceu que o filme quis mostrar foi, através de um caso, um acontecimento, um grupo de pessoas, a insanidade que é a guerra, qualquer guerra; o sofrimento absurdo a que são submetidas as populações. Sim, o filme mostra isso, é claro – de uma forma arrebatada, exagerada, nua, crua, dolorosa, como alguns outros manifestos, Apocalypse Now, de Coppola, Johnny Vai à Guerra, de Dalton Trumbo, Nascido para Matar, de Kubrick.
Isso é bastante. Mas o filme é muito mais que isso – o espectador entende melhor com as belas entrevistas do especial do DVD.
O levante de Varsóvia – nos conta a Wikipedia – “foi uma luta dos poloneses para liberar Varsóvia da ocupação pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. O levante começou a 1º de agosto de 1944, como parte de uma rebelião por todo o país. A intenção era fazer com que a revolta durasse uns poucos dias, até que o Exército soviético chegasse à cidade. O avanço soviético, no entanto, foi interrompido, enquanto a resistência polonesa contra as forças alemãs continuaram por 63 dias, até que os poloneses se renderam, no dia 2 de outubro.
“O levante começou quando o Exército soviético se aproximava de Varsóvia. Os principais objetivos dos poloneses eram expulsar as forças de ocupação alemãs da cidade e ajudar na luta maior contra a Alemanha e as potências do Eixo. O objetivo político secundário era liberar Varsóvia antes da chegada do Exército soviético, para garantir a soberania polonesa e evitar a divisão da Europa Central em esferas de influência pelos países aliados. Os insurgentes pretendiam reinstalar a autoridade dos poloneses sobre seu país, antes que o Comitê de Liberação Nacional Polonês, controlado pelos soviéticos, pudesse assumir o controle.” Fecham-se as aspas da Wikipedia.
Uma leve brisa liberal permitiu a existência do filme
Wajda conta, no depoimento que está no DVD de Kanal, que, na Polônia de 1956, com o regime tutelado pela União Soviética, não era de interesse das autoridades que se fizesse um filme sobre o levante de Varsóvia. Mas havia uma brisa boa – Stálin havia morrido pouco antes, em 1953, e o então presidente polonês Wladyslaw Gomulka havia tornado o regime um pouco mais liberal; isso permitiu que Wajda fizesse o filme, baseado em um roteiro de Jerzy Stefan Stawinski, que havia participado do levante, uma década antes.
As primeiras críticas polonesas sobre o filme não foram boas, conta Wajda. Mas aí o filme foi exibido em Cannes, deixou a imprensa internacional boaquiaberta – e, ao voltar à Polônia, o jovem diretor percebeu que seu filme passou a ser visto com outros olhos em seu próprio país.
Então, o que Wajda quis mostrar – ele diz isso explicitamente –, e que seus conterrâneos entenderam perfeitamente, foi o absurdo da decisão de Stálin e seu governo de segurar o avanço do Exército soviético, para que o levante de Varsóvia fosse primeiro aniquilado pelos nazistas. Só aí, então, as forças soviéticas avançaram sobre a capital polonesa – e impuseram lá, como nos demais países do Leste europeu, um regime comunista subjugado a Moscou.
O filme mostra isso, de forma simbólica, mas que de fato deve ter sido absolutamente clara para os poloneses, na época do filme, em uma seqüência belíssima, esplendorosa, bem no final daquela jornada sufocante, abjeta, pelo inferno dos esgotos.
Kanal, portanto, além de um filme lindíssimo, impressionante, sobre o horror, a loucura, a falta de sentido da guerra, é também um panfleto anti-soviético, feito em um país do bloco comunista, dependente do império soviético e tutelado por ele. É um grande filme – e um filme histórico em mais de um sentido.
Kanal
De Andrzej Wajda, Polônia, 1957
Com Tereza Izewska, Tadeusz Janczar, Wienczylaw Glinki,
Argumento e roteiro Jerzy Stefan Stawinski
Fotografia Jerzy Lipman
Música Jan Krenz
Produção Kadr
P&B, 91 min
****
Um dos filmes referência da minha formação. Causou um impacto profundo na chamada “geração Paissandu”, do Rio. É barroco, necessariamente barroco. Cinzas e diamantes confirmou a grandeza do diretor.