2.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Este drama dos tempos áureos de Hollywood que tem o teatro como pano de fundo foi feito por um bando de gente boa, teve quatro indicações ao Oscar de 1947, levou dois e também um Globo de Ouro. Não chega a ser um filme extraordinário, mas tem muitas qualidades.
O bando de gente boa começa com George Cukor (1899-1983), um entendido da alma feminina, diretor de uma penca de filmes importantes (My Fair Lady, Núpcias de Escândalo/The Philadelphia Story, A Costela de Adão/Adam’s Rib, Les Girls, entre tantos outros). Os roteiristas Ruth Gordon e Garson Kanin, casados na vida real, fizeram esplêndidas peças teatrais e roteiros com tramas bem sacadas e diálogos inteligentes, espertos, intelectualizados, como A Costela de Adão, Nascida Ontem/Born Yesterday, A Mulher Absoluta/Pat and Mike.
O húngaro Miklos Rozsa (1907-1995), de formação erudita, foi um dos principais compositores de trilhas da época de ouro do cinema americano; trabalhou com os principais diretores, fez trilhas de filmes de todos os gêneros, de Quando Fala o Coração/Spellbound, de Hitchcock, e Pacto de Sangue/Double Indemnity, de Billy Wilder, a Ben-Hur, de William Wyler, e El Cid, de Anthony Mann. Por este filme aqui, teve um de seus três Oscars.
As duas indicações deste Fatalidade que não levaram o Oscar foram de diretor e roteiro original. O outro Oscar que o filme ganhou, além do da trilha sonora, foi o de ator para o inglês Ronald Colman, que também ganhou o Globo de Ouro. Depois de servir durante a Primeira Guerra e ser dispensado das Forças Armadas após ser ferido em batalha, Ronald Colman (1891-1958) começou a trabalhar no teatro e no cinema ingleses, e em 1920 emigrou para os Estados Unidos, onde participou de várias peças e filmes ainda mudos. Já era um ator de sucesso na passagem para o cinema sonoro, em 1927, e saiu da transição ainda maior, graças à bela voz e ao sotaque inglês que agradava às platéias. Nos anos 30, era um dos maiores atores do cinema americano, trabalhando em diversos filmes românticos e de aventura. Foi o protagonista de Horizonte Perdido/Lost Horizon, certamente o filme mais audacioso de Frank Capra. Antes do Oscar por este filme aqui, teve duas outras indicações para o prêmio de melhor ator.
Um famoso ator da Broadway, que vive uma relação complexa com a ex-mulher
É voz comum que este Fatalidade foi seu trabalho mais importante. E o filme, por sua vez, gira inteiro em torno de seu personagem, Anthony John, um ator de teatro que faz um imenso sucesso na Broadway tanto em dramas quanto em comédias leves. Quando a ação começa, Tony tem seu nome em gigantesco letreiro sobre um teatro da Broadway, como o astro principal da montagem de uma comedinha ligeira, The Gentleman’s Gentleman, em que contracena com sua ex-mulher Brita (Signe Hasso). Bonito, famoso, Tony atrai as atenções de todas as mulheres por onde passa – e críticas dos homens, que obviamente invejam o encantamento que ele provoca no público feminino.
O relacionamento de Tony com Brita não é simples, linear. Como em outras histórias criadas pela dupla Ruth Gordon-Garson Kanin, o casal de atores vive um romance complexo, multifacetado – o que absolutamente não era comum nos filmes daquela época. Tony e Brita se amam profundamente, mas o relacionamento é conturbado, difícil; dois anos antes dos dias em que se inicia a ação, tinham se divorciado, embora continuassem a atuar juntos nos palcos e continuassem a se amar, a se respeitar e a ser amigos.
Brita diz especificamente, ainda no início do filme, que Tony, que já tem um temperamento em geral difícil, fica ainda mais impossível quando ele interpreta dramas.
E aí vem a chave da história. Os produtores querem porque querem que, depois da temporada de sucesso da comedinha ligeira, Tony e Brita façam uma luxuosa, gigantesca produção do Othello de Shakespeare. Será a chave do filme – e a perdição do personagem de Tony. A encenação faz um tremendo sucesso; ao longo de dois longos anos, Tony encarna todas as noites o possessivo, loucamente ciumento mouro de Veneza.
E de fato Ronald Colman interpreta com brilho o ator que vai sendo devorado pelo personagem que é devorado pelo ciúme.
A atriz que faz Brita, Signe Hasso, esse nome difícil, não teve uma passagem marcante pelo cinema. Sueca, atriz teatral desde os 12 anos de idade, não teve boas oportunidades diante das câmaras; este aqui talvez seja seu filme mais marcante – e ela está muito bem como Brita-Desdêmona, uma boa pessoa que vê seu amigo, amor e ex-marido sendo consumido pela loucura.
A loucura de Tony vai se voltar para Brita, mas também para Pat, uma bela, atraente, um tanto inocente mas muito dada garçonete de um pequeno restaurante italiano na região da Broadway. Pat é interpretada por Shelley Winters, essa grande atriz que fez mais de 150 filmes e/ou episódios para TV entre 1943 e 1999; a lembrança que Shelley Winters deixou na memória da minha geração é da mulher com belo rosto e bem gordinha, com o sobrepeso lhe dando um ar de matrona muito antes da hora. Neste filme aqui – quatro anos antes de fazer a trágica operária por quem o alpinista social interpretado por Montgomery Clift se apaixona em Um Lugar ao Sol/A Place in the Sun -, ela está belíssima, sensacional (ela está na primeira das duas fotos reproduzidas aqui, ao lado de Ronald Colman).
É isso. Não chega a ser um filme extraordinário, mas é muito, muito interessante.
Fatalidade/A Double Life
De George Cukor, EUA, 1947.
Com Ronald Colman, Signe Hasso, Edmond O’Brien, Shelley Winters
Roteiro Ruth Gordon e Garson Kanin
Música Miklos Rozsa
Produção Garson Kanin, Universal.
P&B, 104 min.
**1/2
Título em Portugal: Abraço Mortal
Oi, Sérgio, vi esse filme ontem e estava louca de vontade de fazer algumas observações. Primeiramente, vc q implica quando mudam o título do filme, como fez no q vi anteriormente, “Muito mais que um crime”, dessa vez não comentou que o título original é “Uma vida dupla”, q expressa exatamente o q acontece durante o filme com o seu personagem principal e não “Fatalidade”, conforme foi traduzido.
Outra coisa curiosa: é claro q o personagem do Ronald Colman levou essa característica até as suas últimas consequências, deixando-se possuir pelo personagem e aí a vida deixou de ser dupla para ele ser apenas o Otelo; mas já observei q fora da ficção atores de teatro e de novela, q vivem o mesmo personagem todos os dias durante um certo período de tempo, internalizam características de personalidade e hábitos desse personagem. Há pouco tempo li uma entrevista com a Débora Secco em q ela falava de dieta e vc não sabia se ela estava falando dela atriz, pessoa ou de sua personagem, tão misturadas estavam as coisas p ela!O filme realmente nada tem de extraordinário e para falar a verdade, o q seria interessante seria essa incorporação pelo ator do personagem q ele interpreta, mas será q isso é alguma grande novidade? Ou talvez em 1947, com a falta de conhecimento que se tinha de Psicologia, o filme fosse uma verdadeira aula sobre o assunto, já desgastado para nossos(quer dizer meus, pois vc achou interessante) olhos? Com a palavra o mestre em cinefilia, para elucidar as minhas dúvidas e questionamentos.
Beijão
Guenia
http://www.sospesquisaerosrschach.com.br
Cara Guenia, sem essa de gozação de mestre em cinefilia, tá?
De fato, eu deveria ter mencionado a coisa do título brasileiro. “Fatalidade” é muito mais pobre, me parece, do que o original “Uma Vida Dupla”.
E, sim, concordo com você: hoje em dia, é algo muito conhecido essa incorporação do ator pelo personagem que interpreta. Mas não era, acho eu, um tema comum nos anos 40 – assim como não são muitos os filmes que abordam relações complexas como a do ator e sua ex-mulher.
Um abraço!
Sérgio