3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: O diretor americano Brad Anderson fez seu primeiro filme, The Darien Gap, de 1996, acumulando dívidas nos cartões de crédito. Para realizar Expresso Transiberiano, um thriller passado na China e na Rússia, teve dinheiro da Espanha, Inglaterra Alemanha e Lituânia – e atores de várias nacionalidades. Fez um bom filme.
Expresso Transiberiano é muito bem feito. Envolve o espectador, prende sua atenção, o deixa agoniado. Seus personagens são muito bem construídos, e todo o belo elenco internacional tem atuações marcantes. Mas, sobretudo, o filme, na minha opinião, estabelece definitivamente a jovem inglesa Emily Mortimer como uma grande atriz.
A ação começa em Vladivostok, que, como sabem no mínimo todas as pessoas que já jogaram War na vida, fica no extremo Leste da Rússia, muito mais perto do Alasca que de Moscou. Num barco no porto de Vladivostok, um sujeito acaba de ser morto com uma faca na nuca; um detetive veterano (interpretado pelo sempre ótimo Ben Kingsley) e os policiais locais sabem que o crime tem a ver com o tráfico de drogas.
Corta, e estamos na China, onde um grupo de americanos faz trabalho social junto a crianças. No meio do grupo está o casal Roy (Woody Harrelson) e Jessie (Emily Mortimer, os dois na foto). Para voltar aos Estados Unidos, vão fazer o caminho mais complicado, lento e aventureiro – pegarão o famoso Expresso Transiberiano, que liga Pequim a Moscou ao longo de mais de 9 mil quilômetros e seis dias e seis noites de viagem.
No trem, dividem a cabine com outro casal, Carlos (Eduardo Noriega), um espanhol, e Abby (Kate Mara), outra americana.
Num thriller, um belo retrato psicológico de quatro pessoas
Ao longo de quase toda a primeira metade do filme, o espectador acompanha a viagem dos dois casais, e fica conhecendo um pouco – ou bastante – quem são aquelas pessoas.
E esta é uma das qualidades do filme: depois daquela abertura em que vemos uma vítima de homicídio violento, relacionado a tráfico de drogas, passamos quase metade do filme – um filme de ação, um thriller – sem que aconteça propriamente nada de extraordinário. Ficamos conhecendo os personagens; sabemos que algo virá, mas não temos a mínima idéia do que será, como, em torno do quê. Brad Anderson e Will Conroy, que divide com o diretor os créditos pelo roteiro, constroem um belo clima de suspense, a partir do perfil psicológico dos quatro viajantes. A narrativa vai represando a sensação de agonia do espectador – até que os acontecimentos explodem, quase na metade do filme.
Roy é uma personalidade simples, a mais simples dos quatro. É religioso, trabalha em serviços sociais de ajuda aos desvalidos, despossuídos; é bom, alegre, feliz, bem resolvido – e bastante inocente, alheio aos perigos e trapaças desta vida. Escolheu fazer aquela longa viagem de trem para proporcionar à mulher algum gosto de aventura. Woody Harrelson, um ator que sabe ter mil caras, mil personalidades, compõe o tipo com maestria.
Carlos é um sujeito expansivo, falante, comunicativo. O espectador desconfia de cara que tem algo mais complicado que isso, possivelmente alguma ligação com droga – mas nada é exposto claramente. O espanhol Eduardo Noriega também está ótimo no papel.
Abby, a mulher de Carlos (os dois na foto), é uma jovem com um quê de mistério. Ao contrário do marido, ou namorado, é bem fechada. Fala pouco, esconde-se atrás de uma maquiagem pesada, um tanto dark. Numa conversa com Jessie, que pergunta de onde ela, de onde é sua família, diz que é de Seattle, mas na verdade não é de lugar algum, e não tem família alguma para onde retornar depois das viagens ao exterior. A atriz Kate Mara, que eu não conhecia, tem o tipo físico perfeito para fazer Abby, e trabalha corretamente.
Jessie, a mulher do sempre feliz e inocente Roy, é de longe a figura mais complexa do grupo. Antes da metade do filme – e antes que os acontecimentos comecem a se atropelar, e a trama comece de fato a se desenhar –, veremos que ela já foi uma drogada; mudou de vida depois que conheceu Roy, o anjo bom, e conheceu Roy ao bater de frente contra o carro dele, bêbada. Agora, casada, passada dos 30 anos, está melhor, mais estável, mais contida – mas há muitos demônios em seu passado. Ela mesma diz isso, durante uma conversa dos quatro no restaurante do trem. Recusa a bebida que o sempre expansivo Carlos oferece, mas fuma muito, e Carlos diz que aquele veneno mata mais depressa. Roy rapidamente concorda, diz que tem feito o possível para afastá-la desse vício, o único pecado de sua mulher, e Jessie cita uma frase:
– “Tente tirar de mim todos os demônios, e tirará também todos os anjos”.
Emily Mortimer rouba o filme
Emily Mortimer tem uma interpretação impressionante, extraordinária como Jessie, a dócil fotógrafa que esconde demônios. Ela rouba o filme.
Londrina nascida em 1971, Emily Mortimer ainda não é propriamente uma estrela, e talvez nem chegue a ser uma. O eventual leitor pode não ter ainda guardado o nome dela. Mas é uma atriz que já mostrou talento em vários filmes; o iMDB, enciclopédico, registra quase 50 trabalhos dela no cinema e/ou na TV, e este site já falou de quatro deles. Em A Sombra e a Escuridão, de 1996, faz um papel pequeno, como a esposa do engenheiro do Exército inglês contratado para construir uma ponte em Uganda no final do século XIX. Em 2004, fez uma mulher triste e solitária, uma típica Eleanor Rigby da canção, mãe de um garotinho surdo de 12 anos, no belo Querido Frankie; sua interpretação é extraordinária. No ano seguinte, 2005, fez Match Point, de Woody Allen – ela interpreta Chloe, a garota rica, simpática, inteligente, sensível, que se apaixona pelo alpinista social interpretado por Jonathan Rhys-Meyers.
E em 2008 nos brindou novamente com uma interpretação extraordinária em Cinturão Vermelho/Redbelt, de David Mamet. Quando vi o filme, anotei: “A inglesa Emily Mortimer, como a jovem advogada, dá um show. É uma maravilhosa atriz, que já havia me impressionado no belo e triste Querido Frankie; trabalhou com Woody Allen em Match Point, é uma artista a ser observada e seguida”. Não me embaraço muito em citar a mim mesmo; muitas vezes faço observações erradas, ou previsões que não se confirmam, mas, quando acerto, é claro que fico contente.
Emily Mortimer é coisa séria.
O outro grande ator inglês do filme, Ben Kingsley, que está na seqüência inicial do filme, vai reaparecer na segunda metade. Tinha ficado conhecendo Roy. Jessie o vê pela primeira vez num jantar no restaurante do trem; Roy o apresenta à mulher como Ilya Grinko, um detetive de departamento de narcóticos da Rússia, que está indo de Vladivostok para uma importante conferência em Moscou. Nessa seqüência, há um diálogo fantástico, fascinante. Diz Ilya-Ben Kingsley:
– “No tempo da União Soviética, uma autoridade como eu viajaria de avião, na primeira classe. Agora são 7 dias de trem.”
E Roy, o anjo inocente, que não percebe nada, sequer entende que o sujeito não está defendendo supostas maravilhas igualitárias do comunismo, e sim reclamando do fim das mordomias da nomenklatura privilegiada:
– “Espere aí, Ilya, não me diga que você sente falta da União Soviética. A União Soviética era um império sombrio do mal.”
– “Talvez. Éramos pessoas vivendo na escuridão, agora somos pessoas morrendo na luz. O que é melhor? Quando éramos União Soviética, um homem vivia até os 65 anos. Agora são 58 anos. Sei disso muito bem, porque tenho 58 anos.”
Mantém seu talento, o ex-durango Brad Anderson. Para meu gosto pessoal, usou no filme close-ups demais – mas eles se justificam, já que o filme é em boa parte um estudo de caráter, de personalidades, e ele trabalhou com atores de primeira qualidade. A verdade dos fatos é que ele não desaprendeu nada, na passagem do cinema independente (ele é o autor do simpático Próxima Parada, Wonderland/Next Stop Wonderland, marco importante, um grande sucesso do movimento indie) para o cinemão comercial com grana transnacional.
Expresso Transiberiano/Transsiberian
De Brad Anderson, Espanha-Inglaterra-Alemanha-Lituânia, 2008
Com Emily Mortimer (Jessie), Woody Harrelson (Roy), Ben Kingsley (Ilya Grinko), Eduardo Noriega (Carlos), Kate Mara (Abby), Thomas Kretschmann (Kolzak)
Roteiro Brad Anderson e Will Conroy
Fotografia Xavi Giménez
Música Alfonso de Villalonga
Produção Castelao Productions, Filmax, Future Films, Universum
Cor, 111 min
***
ESTE COMENTÁRIO CONTÉM SPOILER.
Não dava muito por esse filme, nem sabia que era um thriller, mas o desfecho me surpreendeu (apesar de eu ter achado que ela fosse ser pega no avião de volta aos EUA). Confesso que não gostei do Roy, era boa pessoa (bom até demais, acho) mas meio bobo alegre, sei lá. Engraçado que ele era todo daquele jeito, só que na hora do aperto, ficou esperto na marra, rsrs.
Emily Martimer está realmente excelente; ela mudava de expressão muito rapidamente – na hora do maior suspense – de acordo com os personagens que ia encontrando pelo caminho.Uau.
Não lembrava do Eduardo Noriega, apesar de já ter visto filmes com ele. Tá muito bem (e muito bonito) e conseguiu fazer um personagem repulsivo. Pra mim o Carlos tinha um quê de quase-psicopata.
E Ben Kingsley é Ben Kingsley; no final o personagem dele tb me surpreendeu. E a capacidade que ele tem de fazer diversos sotaques é fantástica. Lembrei que em “Casa de Areia e Nevóa” ele fez um iraniano com um inglês bem carregado. De tirar o chapéu.
Eu dos sotaques do Ben Kingsley não sei nada, o meu inglês não chega para isso, agora o que sei é que ele já interpretou e muito bem um judeu em “A Lista de Schindler”, um indiano em “Gandhi” e um iraniano no tal “Casa de Areia e Nevóa”.
Embora seja inglês tem ascendência indiana, pelo menos.
E gostei muito deste filme que vou rever logo que possa.