Edu Coração de Ouro


2.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Frasista afiadíssimo, Domingos Oliveira tem uma ótima frase para explicar por que Edu Coração de Ouro, feito logo após Todas as Mulheres do Mundo, em 1967, foi um fracasso de bilheteria: “No Brasil é proibido fazer sucesso duas vezes seguidas.”

Todas as Mulheres do Mundo, que eu considero o melhor filme brasileiro de todos os tempos, rendeu 13 vezes o seu custo, uma façanha e tanto. Edu Coração de Ouro só empatou as despesas, diz o diretor, em uma entrevista ao Canal Brasil que foi incluída como extra no DVD do filme, lançado em dezembro de 2008 pela Casa de Cultura de Porto Alegre. Em seguida ele diz a frase que reproduzi aí em cima, e complementa: “Na segunda vez a turma já está armada pra descer o cacete em você, não importa o filme que você faça”.

Domingos prossegue dizendo que muita gente achou que Edu Coração de Ouro era uma espécie de repetição de Todas as Mulheres do Mundo, o que, para ele, evidentemente não é verdade.

aedu1Hum… É e não é. O ator principal, que faz o protagonista, é o mesmo Paulo José; seu personagem, o Edu do título, tem bastante a ver com Paulo, o personagem de Todas as Mulheres do Mundo; como o anterior, o filme tem Leila Diniz, essa mulher-fenômeno, essa coisa extraordinária, luminosa, incandescente, embora neste aqui ela apareça bem menos, só bem chegando ao final da narrativa. Os dois filmes se passam no mesmo ambiente, a Zona Sul dourada do Rio de Janeiro Cidade Maravilhosa dos anos 60. Os dois usam pequenos truquezinhos, invencionices, como congelar a imagem em determinados momentos, usar uma seqüência de fotos em um outro momento. Então não dá propriamente para dizer que um não é, ao menos em parte, a repetição do outro.

Claro que há diferenças. O primeiro filme foi uma declaração de amor a uma mulher, talvez a mais apaixonada e mais bela declaração de amor a uma mulher já feita pelo cinema – Leila, que tinha vivido com Domingos um casamento de um ano e meio, uma paixão fenomenal. O segundo é uma declaração de fé no não-compromisso com coisa alguma na vida.

         Um filme ferozmente fora de época e de lugar

Domingos Oliveira pode até ter razão quando diz que no Brasil é proibido fazer sucesso duas vezes seguidas. Mas a verdade é que não era mesmo para Edu Coração de Ouro fazer sucesso. Não só o filme era anocrônico, era fora do tom, fora da época, como era agressivamente, violentamente, ferocíssimamente tudo isso. Cacilda, era 1967, véspera de 1968, o auge dos protestos de rua contra a ditadura militar instalada em 1º de abril de 1964; tudo o que se fazia na cultura brasileira era pau na ditadura; Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, aquela maravilha doçamarga, muito amarga, mas também doce, seria vaiada flagorosamente no Maracanã, porque o povo não queria doçura de tipo nenhum; queria era Caminhando, o hino socialista de Vandré. Não havia espaço para nada que não fosse ideológico, esquerdista, denúncia das mazelas sociais – era a época de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Os Fuzis, Vidas Secas, Ganga Zumba, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, Terra em Transe.

E aí vem Domingos Oliveira pela segunda vez seguida mostrando um sujeito classe média folgadão, absolutamente alienado (a palavra era muito usada na época), que não trabalha, não pega no batente, só pensa em mulher e curtição da vida adoidado, festa, música, samba, carnaval fora da época. E, ainda por cima, numa cena lá pelo final, o cara aparece fantasiado de cangaceiro, e explica que o nome de sua fantasia é Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Não dava – era demais, era um acinte, uma afronta feroz a tudo que era considerado bom tom na época.

A abertura já era um tapa na cara dos politizados todos. Paulo José sai da calçada da praia de Ipanema, a Pedra da Gávea e o Morro Dois Irmãos lá atrás, vem em direção à câmara, dá um pulo no ar, a imagem congela (como no início de Todas as Mulheres do Mundo o cineasta havia congelado a imagem de Leila Diniz no meio das ondas do mar em Copacabana), e a voz do ator em off diz a seguinte barbaridade (para a mentalidade esquerdista vigente na época, claro):

“Nunca penso na vida. A não ser que eu esteja gripado, doente ou coisa assim. (Pausa.) Quanto ao problema social, prefiro não ler o jornal. Agora, Deus não existe. Agora, se Deus existe, o problema é dele.”

E aí, em seguida, enquanto ainda estamos nos créditos iniciais, Paulo José passa a seguir uma mulher na rua, uma bela mulher com um vestido estampado com os símbolos do baralho, o coraçãozinho do baralho, Edu Coração de Ouro – e a câmara focaliza em close a bunda da mulher!

Eu tinha me esquecido dessa seqüência de abertura, em que a câmara focaliza em close a bunda de uma mulher. Domingos Oliveira antecipou-se a O Cheiro do Ralo em exatos 39 anos!

Credita-se o roteiro a Domingos Oliveira e Eduardo Prado, com base em história de Eduardo Prado. A rigor, não há propriamente uma história, embora o filme seja dividido em duas partes, “Um dia comum de Edu” e “O Dia da Festa”, mais um Epílogo e um Epílogo do Epílogo. São pequenos esquetes, momentos da vida desse Edu, um adepto do não-compromisso com absolutamente nada.

É óbvio, é claro, é lógico, é evidente que Domingos Oliveira não fez um filme reacionário, direitista, pró-ditadura, pró-milico. Não é nada disso. Mas como eram tempos maniqueístas, ou preto ou branco, ou tudo ou nada, ou você protestava contra a ditadura ou era um reacionário filho da puta, não havia como defender um filme que era anti-Establishment em outro sentido que não o estritamente político-ideológico.

O filme era anti-Establisment no sentido comportamental. Pregava o descompromisso com o sistema todo, como realça o próprio cineasta em sua entrevista feita há pouco tempo, provavelmente depois de 2006, 2007. Domingos diz que seu filme foi visionário, vanguardista, porque, em 1967, defendia algo que o movimento hippie viria a defender só depois, no ano seguinte, 1968 – exatamente o descompromisso com o sistema todo, já que o personagem de Edu é um anarquista.

Aí, nessa coisa de dizer que o filme veio antes da onda do descompromisso, do hippismo, vai um certo exagero de pai da obra. Os hippies já existiam em meados dos anos 60 – 1968 só marcou a explosão do movimento da contracultura. Para não falar do anarquismo, que é bem mais velho que o século XX. E personagens comprometidos apenas com o não-compromisso também não eram propriamente novidade no cinema: estão aí o James Dean de Juventude Transviada/Rebel Without a Cause, de 1955, e mesmo da primeira parte de Assim Caminha a Humanidade/Giant, de 1956, e o Marlon Brando de O Selvagem/The Wild One, de 1953, para provar.  

Mas estou contradizendo a afirmação de Domingos Oliveira de que o filme veio antes da época do descompromisso com o sistema todo apenas e tão somente por me apegar a firulas. O que importa é que, de fato, sem dúvida alguma, o filme marchava contra a corrente do que se fazia na época, e só por isso já mereceria respeito.

         É um filme para se ver. É Domingos Oliveira. E ainda por cima tem Leila

Falei que eu tinha me esquecido da seqüência de abertura. Na verdade, eu não me lembrava de muita coisa do filme, que vi na época, em 1967 ou 1968 (ainda checo isso nos meus cadernos), e depois nunca mais, até agora, 2009, quando revi para poder escrever este comentário.

Tudo bem: para um pai, todos os filhos são maravilhosos; é absolutamente compreensível que Domingos defenda seu segundo filme com unhas e dentes. Mas, ao contrário de Todas as Mulheres do Mundo, que revi com imenso prazer e me pareceu tão belo, fresco, excepcional quanto das outras vezes todas, Edu Coração de Ouro me pareceu envelhecido, bastante datado. Foi a sensação que eu tive. Todas as Mulheres é magia pura, encantamento puro, é um filme maior; Edu, hoje, me pareceu uma brincadeira gostosa, bem humorada, com algumas sacadas inteligentes, mas um pouquinho repetitivo, um pouquinho cansativo. E não tem – paciência – o brilho do outro.

Não que não deva ser visto – isso não, de forma alguma. Quem viu deveria rever; e quem não viu deveria conhecer. É importante, é histórico, é Domingos Oliveira. E ainda tem, durante uns 15 minutos, já para o final, Leila Diniz.

Leila estava com 22 anos. Aparece de trancinhas, maria-chiquinha. Edu a encontra na rua – o personagem dela se chama Tatiana –, ficam juntos por algumas horas. Edu pergunta a idade de Tatiana, ela diz que tem 17. Leila tinha 17 anos quando o destino deu a Domingos Oliveira, então com 25, a sorte grande, o prêmio na loteria de conhecê-la.

Na entrevista ao Canal Brasil reproduzida no DVD do filme, Domingos conta que quis mostrar Leila como ele a conheceu, aquele vulcão de 17 anos de idade.

Lá pelas tantas, no meio de uma rua qualquer do Rio de Janeiro – um Rio de Janeiro que não existe mais, embora continue sempre Cidade Maravilhosa –, Tatiana-Leila Diniz recita o poeminha que criou, e Milton Nascimento, que teve a sorte de tomar umas biritas com ela nos bares da Zona Sul, musicaria no disco Sentinela, de 1980: “Brigam Espanha e Holanda/ Pelos direitos do mar/ O mar é das gaivotas/ Que nele sabem voar./ Brigam Espanha e Holanda pelos direitos do mar/ Brigam Espanha e Holanda / Porque não sabem que o mar/ É de quem o sabe amar”. 

  Até conhecer Tatiana, Edu, que passa o filme inteiro correndo atrás de mulheres, só havia conseguido comer a empregada da casa onde mora com os pais. Mais ninguém. E parte de Tatiana a iniciativa; é ela que oferece a banana para o macaco: “Quer dormir comigo?”

 Mesmo no filme feito para ser uma elegia do descompromisso, Domingos Oliveira não consegue deixar de fazer declaração de amor a Leila Diniz. Quem conseguiria?  

Edu Coração de Ouro

De Domingos Oliveira, Brasil, 1967

Com Paulo José, Leila Diniz, Amilton Fernandes, Luiz B. Netto, Joana Fomm, Maria Gladys, Dina Sfat, Yan Michalski, Mauro Madruga, Márcia Tânia, Carlos Albertro de Souza Braga, Pepita Rodriguez, Betina Viany, Normal Bengell, Ziembinski

Roteiro Domingos Oliveira e Eduardo Prado

Argumento Eduardo Prado

Fotografia Mário Carneiro e Dib Lufti

Montagem Alberto Salvá

Produção BJD Produções

P&B,

R, **1/2

3 Comentários para “Edu Coração de Ouro”

  1. Ainda acho que edu, coração de ouro, possa ser um filme melhor que todas as mulheres do mundo. Acho que depende muito do momento. Na primeira vez que o vi, achei melhor. Hoje em dia acho que estão no mesmo patamar.

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