De Punhos Cerrados / I Pugni in Tasca


3.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Marco Bellocchio chocou e encantou os críticos do mundo inteiro com seu primeiro longa-metragem, este De Punhos Cerrados/I Pugni in Tasca, de 1965. Foi imediatamente saudado como mais um grande cineasta italiano, juntando-se a um time nobre que já tinha Visconti, Fellini, Antonioni, Monicelli, De Sica, Dino Risi, Francesco Rosi e os mais jovens Scola, Bertolucci.  

É um filme que demonstra talento em cada detalhe – uma extraordinária fotografia em preto-e-branco, uma montagem estudadamente provocante, deixando hiatos, lacunas na história, uma alternância permanente entre planos gerais e close-ups, e uma vigorosa, excepcional direção de atores. Um filme com a coragem, a audácia, a capacidade de provocar, inquietar, assombrar, típicas de um jovem cheio de talento – Bellocchio tinha apenas 26 anos, e toda a raiva que é possível alguém acumular.

         Suco concentrado de loucura, infelicidade

Porque o filme é também um suco concentrado de loucura, doença, amargura, infelicidade, ódio, frustração, inadequação como pouquíssimas vezes o cinema viu igual.

Nos últimos 15, talvez 20 anos, o cinema independente americano tem feito muitos filmes sobre o que se convencionou chamar de famílias disfuncionais. Se pudéssemos juntar num liquidificador toda a disfuncionalidade das famílias apresentadas em uns cem filmes sobre o assunto, ainda assim seria fichinha diante da loucura da família que Bellocchio retrata.

apugni1É uma família de classe média, de média-média para média-alta. Não são ricos, mas têm uma boa propriedade no campo, uma antiga mas ampla casa, a alguns quilômetros de uma cidade – não se precisa qual, nem se diz exatamente a região (a não ser que tenha sido dada alguma pista que não consegui perceber); o que se sabe é que fica no Norte, porque neva; o Norte da Itália, como se sabe, é mais rico que o Sul. Então a família possui essa propriedade, e não passa por necessidades das coisas materiais básicas. O pai está morto. A mãe (Liliana Gerace) é cega. Só o irmão mais velho, Augusto (Marino Mase), trabalha; os demais três irmãos não fazem coisa alguma a não ser se dedicar 24 horas por dia, sete dias por semana, à fruição da infelicidade e da loucura.  

Giulia (Paola Pitagora), a única mulher entre os quatro irmãos, nutre uma relação de profundo amor e ódio tanto com Augusto quanto com Alessandro (Lou Castel) – é uma relação que por um lado beira o incesto e por outro se exprime em tapas e agressões físicas e morais. O filme não diz claramente, mas o que ele mostra é que Giulia sofre de profunda PMD, a psicose maníaca-depressiva que hoje tem o nome mais politicamente correto de distúrbio bipolar.  

O único momento em que Giulia faz alguma coisa ainda que remotamente parecida com um esforço intelectual, ou um momento de diversão, em que fica um pouquinho longe de seu próprio umbigo e seus próprios problemas, aparece numa seqüência em que ela folheia, desinteressadamente, sem ler, sem prestar atenção, uma revista do Pato Donald. 

apugni2Augusto, Giulia e Alessandro praticamente ignoram a existência de Leone (Pier Luigi Troglio), o irmão mais calado, mais fechado em si mesmo, que às vezes parece um tanto retardado – mas ao mesmo tempo é quem é capaz de exclamar a verdade dos fatos numa das poucas vezes em que abre a boca: “Que tortura é viver nesta casa”.

         Um sujeito que é uma bomba-relógio

Leone é epiléptico. Alessandro também é epiléptico – mas a epilepsia é o menor mal de que é acometido. Alessandro é louco de pedra, do tipo muito, mas muito perigoso. É uma bomba-relógio prestes a explodir.

A família é tão absolutamente louca que quando, ainda na primeira metade do filme, Alessandro, sem carteira de habilitação, vai dirigir o carro da família, levando a mãe cega e os dois irmãos doentes para visitar o túmulo do pai, numa estrada cercada por precipícios, e deixa para Augusto um bilhete dizendo que vai matar todos de uma vez, Augusto, o mais são da família, não faz absolutamente nada. 

A crítica babou.

“A contestação transformada em arte cinematográfica”, define o professor e crítico francês Jean Tulard no seu Dicionário de Cinema. “De Punhos Cerrados anunciava, assim como La Chinoise de Godard, maio de 68. O filme instigava à revolta contra a autoridade familiar. (…) Para Bellocchio, a revolta é necessária e eficaz, mas desde que seja lúcida.”

“Amazing”, define o Film Guide da inglesa Time Out – e amazing não é apenas surpreendente, espantoso, mas também estupendo, maravilhoso. “A stunning film, literally” – literalmente atordoante, impressionante, formidável, excelente. 

A biografia no americano Baseline diz sobre Bellocchio: “Diretor iconolasta cujo primeiro longa, De Punhos Cerrados era uma sarcástica alegoria política sobre uma família de burgueses epilépticos. O filme, ao lado de Antes da Revolução, de Bernardo Bertolucci (1964), foi tido como o começo de uma nova era no cinema italiano”.

apugni3Até Leonard Maltin, que não é tão atento assim para o cinema europeu, derreteu-se. Deu 4 estrelas, a cotação máxima, e elogiou assim: “Brilhante e único sobre uma louca família de epilépticos cujo protagonista (aqui ele revela informações que não tem sentido adiantar; é spoiler total), enquanto sua irmã meramente se prepara para o incesto reprimido. Embora não muito reconhecido, (é) um dos grandes filmes estrangeiros dos anos 60, com Castel mais do que apto para as exigências do papel difícil”.

Esse “embora não muito reconhecido” aí é coisa especificamente de americano. Tudo indica que o filme não teve grande divulgação nos Estados Unidos. É o que se depreende do texto de Maltin e também deste trecho aqui do AllMovie: “Há muito elogiado por críticos e historiadores como um filme injustamente ignorado, I Pugni in Tasca  foi um dos 15 títulos selecionados pelo Museu de Arte Moderna de Nova York para sua retrospectiva ‘Segundo Ato’ de filmes italianos do pós-guerra na primavera de 2000”.

Problema deles lá, essa coisa de terem ignorado o filme. Aqui, De Punhos Cerrados sempre foi elogiadíssimo, tido como importantíssimo, fundamental. Sempre ouvi falar de I Pugni in Tasca – embora só tenha visto o filme agora, no DVD lançado pela Silver Screeen Collection, uma dessas empresas pequenas que põem no mercado filmes antigos e muitas vezes sem detentores de direitos autorais. Aparentemente, a versão que está no DVD dessa Silver Screen Collection é a versão recuperada – está com a imagem perfeita, magnífica – pela Criterion Collection, os europeus responsáveis pelos melhores DVDs de filmes mais antigos e de importância artística. Se a empresa brasileira pagou os direitos autorais à Criterion não é problema meu.

Embora Maltin e o AllMovie falem dessa coisa de o filme ter sido ignorado nos Estados Unidos, Pauline Kael, a crítica maravilhosa que acompanhava muito bem o cinema europeu, falou do filme, com seu texto que corta mais que peixeira. Aí vai, na tradução de Sérgio Augusto no livro 1001 Noites no Cinema, da Companhia das Letras:

“O primeiro filme de Marco Bellocchio deve ser com certeza uma das estréias mais espantosas de diretor na história do cinema, mas é difícil saber como reagir a ele. A direção mostra-se estimulantemente fria e segura, e todo o filme carregado de temperamento, mas o material é louco. Trata-se de uma família burguesa de monstros doentios; ataques de epilepsia multiplicam-se entre acessos de matricídio, fratricídio e incesto. O material é tão bárbaro que o filme muitas vezes parece pretender ser engraçado, mas o porquê dessa intenção não fica claro. Traz o melhor estranho retrato de um irmão e uma irmã desde Les Enfants Terribles: Lou Castel, como seu jeito de fraldiqueiro, e Paola Pitagora, parecendo uma gazela devassa.”

         De dar ânsia de vômito

Eu aqui no meu cantinho concordo com Dona Pauline quando ela fala que é difícil saber como reagir a este filme. Sim, é um filme que exibe muito talento – e muita loucura. Dá ânsia de vômito.

Não é exatamente o tipo de coisa que eu mais admiro, filme que dá ânsia de vômito.

E, de resto, é mais um para entrar naquela categoria de que eu falo sempre: segundo os filmes italianos, quem tem mais dinheiro do que o mínimo necessário para sobreviver é, forçosamente, angustiado, triste, infeliz.

Ou, como anotei um pouco mais longamente em 2007 depois de ver Dias de Abandono/I Giorni dell’Abandono: “Famílias da classe média para cima infelizes são uma tradição no cinema italiano do pós-guerra: os aristocratas e os burgueses de Visconti, os burgueses de Antonioni, os ricos de uma maneira geral do jovem Bertolucci, os ricos e corruptos de Scola em Nós Que Nos Amávamos Tanto, os ricos de alguns dos De Sica, os poderosos de Elio Petri. A lista não terminaria nunca. Parecia que, para aquela geração de cineastas que veio depois do fascismo, estar acima do limite da pobreza trazia o inferno para dentro de casa. Petri chegou a fazer um filme – A Classe Operária Vai ao Paraíso – para afirmar que até mesmo os operários, quando seu salário ultrapassa o nível das necessidades de subsistência, perdem seu valor e seus valores.”

De Punhos Cerrados entra para essa categoria direto no primeiro lugar, porque, para Bellocchio, não basta que os não-pobres sejam angustiados, tristes, infelizes: são também loucos varridos, incestuosos, matricidas, fratricidas. 

De Punhos Cerrados/I Pugni in Tasca

De Marco Bellocchio, Itália, 1965.

Com Lou Castel, Paola Pitagora, Marino Mase, Pier Luigi Troglio, Liliana Gerace

Argumento e roteiro Marco Bellocchio

Fotografia Alberto Marrama

Música Ennio Morricone

Produção Doria.

P&B, 105 min

***

Título nos EUA: Fist in his Pocket; título na Inglaterra: Fists in the Pocket; título na França: Les Poings dans les Poches

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