3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Maravilha de filme. Feminino até a medula, delicadíssimo, sensível, cheio de pequenos detalhes encantadores. E extremamente bem realizado.
São retratos de momentos do cotidiano de seis mulheres na Beirute de hoje, seus pequenos dramas, suas pequenas alegrias, frustrações, esperanças, sua sensualidade, e a maneira como cada uma delas lida com sexo. Não há nada de especial, diferente, único, inusitado nas vidas delas – nem na trama do filme. É vida comum de gente como a gente.
Três dessas seis mulheres trabalham num salão de beleza, chamado Si Belle; a letra B do letreiro diante do salão está caindo, e ninguém se incomoda em consertá-la – um dos muitos pequenos detalhes de que o filme é cheio. Uma quarta mulher é cliente do salão. As duas outras que compõem o sexteto mostrado na história são irmãs; a mais nova, Rose (Siham Haddad), de uns 60 anos, é costureira, e a mais velha, Lili (Aziza Semaan) é completamente louca. Elas vivem num prédio bem próximo ao salão de beleza, conhecem as vizinhas, são amigas.
As três colegas do salão são todas mulheres bonitas, mas uma delas, Layale (interpretada pela diretora e co-roteirista Nadine Labaki, na foto ao lado), é esplendorosa. Veremos que ela mora com os pais e um irmão bem mais jovem, e que é amante de um homem casado. Quando ele pode, quando consegue dar uma escapada, liga para o celular dela ou passa diante do salão e buzina, e Layale larga o que estiver fazendo para se encontrar com ele. Com a maior suavidade, discretamente, o filme dá a entender que os dois trepam no carro; o camarada não se digna sequer a levar aquela mulher deslumbrante, lindíssima, a um hotel, ou a uma garçonnière, como se dizia antigamente – e veremos que dinheiro para manter uma ele tem.
Rima (Joanna Moukarzel, na foto ao lado) é lésbica. A diretora Nadine Labaki mostra isso de forma discreta e suave, como tudo no filme: num final de expediente, Rima sai do salão de beleza, leva uns aventais para serem consertados à oficina de Rose e em seguida pega um ônibus; no ônibus, senta-se ao lado dela uma moça com a saia ligeiramente acima dos joelhos; a câmara mal pega o rosto da moça, nem se fixa nos seus joelhos, mas vemos que Rima olha para eles.
Jamale (Gisèle Aouad) é uma cliente regular do Si Belle; está separada do marido, e mora com os dois filhos, um garoto adolescente, de uns 14 anos, e uma menina de uns sete ou oito. Está sempre fazendo testes em agências de modelo, para trabalhar em publicidade ou, quem sabe, na TV. Como tantas pessoas, recusa-se a admitir a passagem dos anos; lá depois da metade do filme, haverá duas cenas envolvendo Jamale e menstruação – cenas suaves, delicadas, discretas, mas interessantíssimas, mais um daqueles pequenos detalhes de que o filme é rico. Não vou revelar o que é, não teria sentido, mas confesso que é uma coisa tão feminina que não entendi o que era – Mary precisou me explicar.
E finalmente temos Nisrine (interpretada pela bela Yasmine Al Masri, na foto). A primeira seqüência em que o espectador vê Nisrine em destaque é mais uma demonstração do estilo magistral da diretora Nadine Labaki de construir sua narrativa com base em pequenos detalhes e muitas elipses, muitas coisas não mostradas, apenas sugeridas, subentendidas. A câmara mostra Nisrine em um carro, sentada ao lado do motorista, um personagem que, depois veremos, chama-se Bassram (Ismail Antar). Eles falam pouco; Nisrine vai abotoando a blusa que estava aberta, vestida sobre uma camiseta; ou seja, não estava, absolutamente, indecente, insinuante, nada disso. Mas ela vai abotando a blusa, até em cima; desenrola as mangas da blusa, para cobrir inteiramente os antebraços que antes estavam à mostra; e prende os cabelos, que antes estavam soltos. Aí então ela pergunta a ele:
– “Está melhor agora?”
E ele: – “Podia parar de chupar o chiclete.”
Nisrine está sendo levada pelo noivo para um jantar na casa dos pais dele.
Insistindo, enfatizando: não havia absolutamente nada de indecoroso no jeito como Nisrine estava vestida antes, ao sair do trabalho no salão de beleza. Mas ainda assim era avançado demais para a família muçulmana do noivo.
Beirute, a Paris do Oriente Médio. Mas no Oriente Médio
E aqui chegamos ao ponto importante, fundamental. Não podemos nos esquecer de que o filme se passa em Beirute, Líbano. Beirute já foi e continua sendo hoje – destruída mais de uma vez pelas guerras eternas do Líbano e depois reconstruída – conhecida como a Paris do Oriente Médio, uma cidade cosmopolita, ocidentalizada, bonita, com belos prédios. Boa parte da população é cristã, a colonização francesa deixou marcas profundas. (O filme não especifica, não diz explicitamente, mas percebemos que Nisrine é de uma família muçulmana pouco ortodoxa, pouco rígida; a família de Layale é cristã.) É a Paris do Oriente Médio, mas não deixa de ser Beirute, Líbano, mundo muçulmano, aquela civilização de preceitos, costumes, tradições rígidos, mesmo quando está longe de ser radical, xiita, taliban.
Modernas, contemporâneas, vaidosas, sem véu, maquiadas, as mulheres do salão de beleza Si Belle andam sobre o fio da navalha; se vivessem no Irã ou no Afeganistão dos talibans estariam correndo o risco de serem apedrejadas até a morte. Ainda agora, em setembro de 2009, uma jornalista do Sudão de 43 anos de idade, Lubna Hussein, foi condenada a um mês de prisão por usar calça comprida numa festa.
E essa é uma das maravilhas deste filme escrito e dirigido por uma mulher, protagonizado por mulheres. Ele nos mostra um universo que desconhecemos inteiramente, o dia-a-dia das mulheres de hoje num país muçulmano.
E é um dia-a-dia muito diferente do nosso, dos países não muçulmanos todos. Mesmo em Beirute, a Paris do Oriente Médio – o filme é dedicado à cidade –, questões que para nós são antigas, bobagens já resolvidas, preconceitos dinossáuricos que já foram extintos, como a mulher ter que casar virgem, ainda afligem as pessoas, e até cortar os longos cabelos é um gesto importante de rebeldia e libertação.
Nadine Labaki, um nome para se guardar
É absolutamente fascinante ver como é possível que uma moça tão jovem (Nadine Labaki nasceu em 1974) tenha a maturidade para co-escrever, roteirizar e dirigir um filme tão bem feito em todos os detalhes, com tantas observações sutis sobre a vida, o amor, a sociedade. A moça começou cedo, dirigindo clips musicais no Líbano. Estudou cinema na Universidade de São José, em Beirute; trabalhou como atriz em três curta-metragens e em um longa, antes de fazer este Caramelo, seu primeiro roteiro, seu primeiro filme. Como é que pode uma coisa dessas? É chocante, fascinante.
O filme foi mostrado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2007, e em seguida passou por diversos outros festivais. Ganhou três prêmios em San Sebastián, na Espanha, e foi um grande sucesso de bilheteria em diversos países. Segundo a Wikipedia, rendeu US$ 13 milhões (até julho de 2009), ante um custo de US$ 1,6 milhão. Lançado no circuito comercial de São Paulo em 5 de junho de 2009, fez um grande sucesso de público, para uma produção independente, sem campanha de marketing.
Vejo no site YaLibnan uma notícia de agosto de 2007: “Caramelo é o sabor do mês na França. A comédia libanesa sobre mulheres atraiu 160 mil espectadores na semana passada, na semana de sua estréia, e pode estar caminhando para ser o maior sucesso de filme falado em língua árabe de todos os tempos na Europa. ‘É absolutamente inacreditável, especialmente para um filme de estréia sem estrelas’, diz Jean Labadie, chefe da distribuidora francesa Bac Films.”
Numa entrevista ao jornal espanhol El País, publicada no início de 2008, depois dos prêmios no Festival de San Sebastián e alguns dias antes da estréia do filme no país, Nadine Labaki diz o seguinte: “A maior parte dos filmes libaneses fala da convivência entre religiões. Bem, rodam-se três ou quatro filmes por ano (no país). Os realizadores libaneses têm uma necessidade vital de falar da guerra, tentar analisar o que acontece, os diferentes pontos de vista… Eu vi que já se havia analisado tanto que preferi dar uma visão diferente. Porque em meu país também há pessoas ardentes, com problemas como todo mundo.”
Depois o repórter pergunta a ela sobre a situação política do Líbano. Vale a pena transcrever a resposta. Tirando as referências à situação específica do Líbano, as guerras civis, a situação geográfica entre a Síria e Israel, parece um brasileiro consciente falando da situação do país após sete anos de desgoverno Lula:
“Melhor não pensar nisso. Há uma fuga em todas as direções. Vira algo absurdo… Estamos absorvidos por uma cultura absurda. Já não entendemos nada. Nem sequer conseguimos nos unir para parar e meditar sobre uma solução. Estamos nos matando entre nós mesmos. O caos e a contradição que existe no Líbano se reflete em nosso caráter. Somos um povo contraditório, entre dois mundos, desgarrado. Nota-se isso geograficamente. Não sou fatalista, mas vivo uma dura relação de amor e ódio com a minha pátria, entre a ternura por uma gente que quer sobreviver e a raiva pelo que ocorre. Não aceito a situação, mas… Veja, terminamos de rodar o filme (em 2007) e três dias depois começou outra guerra. Tínhamos filmado num ambiente de esperança de que as coisas melhorassem, e chegou a desilusão. Fiquei no Líbano, me senti inútil e com um pouco de culpa por ter feito um filme que não falava da guerra, e sim de mulheres, de cor, de alento. Vivi dúvidas enormes sobre o que tinha feito e sobre se teria sentido ou não. Depois fui para Paris para montar o filme e me invadiu mais ainda a culpa com a sensação de fuga.”
A revista americana Variety, bíblia do show business americano, colocou Nadine Labaki na sua lista de 10 Diretores a Prestar Atenção. Está certíssima a Variety: se na sua estréia, com menos de 35 anos, a moça faz um filme como este, se ela tem esse raciocínio tão lúcido, tão claro, cacilda, o que poderá fazer no futuro?
Sex in the City com cérebro
Vejo no iMDB o comentário de um leitor, sujeito de San Francisco, que é um brilho: ele diz que o filme é como Sex in the City com cérebro e realismo, e sem afetação.
A trilha sonora do filme é ótima – rica, variada, uma beleza. Vi na Wikipedia uma informação que demonstra que o compositor, Khaled Mouzannar, além de competente, é também um sujeito de sorte: logo depois do lançamento do filme, casou-se com a diretora.
Bem, e falta dizer o que significa o caramelo do título, que poderia induzir os desavisados a acharem que é mais um filme sobre a magia da culinária, como Chocolate, Como Água para Chocolate, A Festa de Babette, Simplesmente Marta. Não, nada disso. É que o caramelo – me informa Mary – é usado na depilação, nos salões de beleza.
Caramelo/Sukkar Banat
De Nadine Labaki, Líbano-França, 2007
Com Nadine Labaki (Layale), Yasmine Al Masri (Nisrine), Joanna Moukarzel (Rima), Gisèle Aouad (Jamale), Adel Karam (Youssef), Siham Haddad (Rose), Aziza Semaan (Lili), Fatme Safa, Dimitri Stancofski, Fadia Stella, Ismail Antar (Bassram)
Roteiro Rodney El Haddad, Jihad Hojeily e Nadine Labaki
Baseado em argumento de Nadine Labaki e Jihad Hojeily
Fotografia Yves Sehnaoui
Música Khaled Mouzannar
Produção Les Films des Tournelles, Bac Films, Les Films de Beyrouth. Estreou em SP 5/6/2009
Cor, 95 min
***1/2
Contém SPOILER (se é que alguém que lê o site, lê os comentários, a não ser eu mesma, hoho):
Filmão, adorei! A Layale é mesmo muito bonita, dá de dez a zero nas atrizes de beleza fabricada de Hollywood. Ela me lembrou uma atriz brasileira, só que não consegui saber quem é. Já a Rima , apesar de discreta, dá pra ver que tem todo um jeitão de lésbica, me lembrou um pouco a Cássia Eller. Só achei ruim associarem o fato d’ela usar calça ao lesbianismo, como que por ser lésbica ela só usasse calça ou como que por ser mulher ela tivesse que usar apenas vestidos. Confesso que não entendi muito bem as cenas da Jamale e da menstruação… a primeira eu acho que entendi, mas a segunda, não consegui encontrar sentido (sinto que a Mary vai ter que explica pra mim tb em off, hehe). A Nisrine tb é muito bonita e tem um papel emblemático.
Que bom que ela optou em falar sobre mulheres e não sobre guerra. E sobre as coisas que na grande maioria das vezes só as mulheres são capazes de fazer, pro bem ou pro mal. Sobre a dor de ser a amante abnegada (e se submeter a transar numa “banheira” velha, como vc já disse), de abrir mão dos prazeres, do amor, da vida pra cuidar da irmã (ou em muitos casos da mãe), de negar a passagem dos anos e querer parecer jovem a qualquer custo, de ter que aparentar ser virgem pra ser aceita por uma família, etc. etc. Sem falar no masoquismo de se submeter a uma dor atroz com a desculpa de ficar mais bonita, rs. E mesmo os momentos tristes foram tão bem feitos, que não precisaram apelar para o melodrama , nem para a pieguice. É realmente um Sex and The City com cérebro, e com mulheres bonitas, mesmo as que só fizeram uma ponta. Ainda bem que para as espectadoras sobrou o guarda de trânsito, que depois que tirou o bigode até que ficou apresentável, hehe.
Eu não sabia dessa jornalista que foi condenada a um mês de prisão por usar calça comprida numa festa!! Coincidentemente, nesta semana em que vi o filme, eu tive que ouvir a pérola de que mulher que usa vestido é mais mulher (do que as que usam calça). Quase enfartei e até hoje não digeri a frase. Acho que não é a roupa que deixa a mulher mais ou menos mulher, ou feminina, ou sei lá o quê. Nessas horas , apesar de todo o machismo reinante, dou graças a Deus por morar num país onde eu posso usar short, bermuda e calça quando e sempre que desejar, até pra ir a uma festa, se assim eu quiser. Acho que eu só não poderia entrar em determinadas igrejas, mas graças a Deus tb que eu não pertenço a nenhuma delas. Porque era só o que faltava uma igreja* poder mandar no meu ir-e-vir e no meu vestuário. Mas enfim, tergiversei.
E vendo um filme desses, de uma diretora jovem e estreante , fico mais uma vez com vergonha do cinema brasileiro, que torra milhões de uma produtora como a Globo Filmes, por exemplo, pra fazer filminhos descartáveis com dublês de atores e celebs wanna be.
Um salve à Nadine Labaki!!
P.S.: Fiquei séculos sem comentar, mas esse comentário valeu por todos esses dias, hein?! Ficou enorme, sorry :/.
*Se bem que hj em dia até algumas igrejas mais rígidas estão liberando geral, que é pra arrecadar mais dinhei… digo, fiéis.
Ah, esqueci de dizer que o que mais gostei no filme foi da amizade e da cumplicidade entre as 4 amigas. Acho que é um tipo de amizade que só existe entre as mulheres – de estar presente no pior e no melhor momento, de dar suporte mesmo sem dizer nada, de entender por que mulher se preocupa em arrumar o cabelo, rsrs – e que está cada vez mais difícil encontrar.
Tb esqueci de falar que quando eu era criança minha mãe fazia essa cera (que no filme elas chamam de caramelo) e a gente chamava de puxa-puxa. Nem sempre dava certo, não ficava no ponto, então eu acabava comendo. Era uma mistura de açúcar, água e limão. Eu adorava e até hoje gosto de tudo que contenha açúcar caramelizado.
And last but not least, tb gostei bastante da trilha sonora!
Excelente filme. Narrativa bastante precisa, objetiva e ao mesmo tempo rica, cheia de significado.
A diretora e uma das protagonistas é sem dúvida muito competente, inteligente e sem dizer que é LINDA. A fotografia do filme em si é de encher os olhos…
Atenção: spoiler
E , desculpe o ‘spoiler’, mas pra quem não entendeu a sutileza das situações com Jamale em relação à menstruação, o que me pareceu é que ela não aceita bem o envelehcimento e nem mesmo a menopausa. Por isso tenta ainda se mostrar como jovem para as outras garotas, veja o jeito como ela olha pras meninas e como tenta de todas as formas simular e deixar bem evidente que ainda está em seus anos de fertilidade…
Como bem foi dito, um filme que pode-se dizer é um Sex n’ the City com cérebro! 😉
Muito bom!!!!
É um filme maravilhoso, de uma simplicidade absoluta e que nos faz refletir sobre todas as facetas complexas que existem ali. Afinal, nada é mais complexo do que ser simples.
E concordo contigo, Sérgio. A protagonista é belíssima! E talentosa. E tem uma voz lindíssima! Deve ser protegida por um gênio muito benfazejo!
De todas as cenas a minha predileta é uma em que a Layale está preparando o caramelo, esticando e enrolando e faz uma bala e coloca na boca, e continua esticando e enrolando…