A Vida num Só Dia / Miss Pettigrew Lives for a Day


2.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Este A Vida num Só Dia, feito em 2008, é (ou ao menos me pareceu ser) uma espécie assim de homenagem às dezenas de comédias escapistas com que Hollywood encheu os cinemas do mundo nos anos 30, durante a Grande Depressão.

Naqueles tempos sombrios, pavorosos em que centenas de milhares de pessoas perderam seus empregos e suas famílias mergulharam na miséria, e filas gigantescas se formavam diante dos locais que distribuíam sopa de graça, fizeram-se pencas de comédias leves, levianas mesmo, em que gente rica, elegante, os homens de smoking, as mulheres em vestidos longos para a noite, vivia indo de uma festa para outra, de um night club para outro, bebendo champagne, comendo finos pratos. Escapismo, mesmo, literalmente: por 25 centavos do dólar (preço para adultos; crianças pagavam 10 cents, ou one dime), os americanos sem emprego, sem perspectivas, podiam escapar da dura realidade da vida e entrar num sonho durante uma hora e meia.

Woody Allen fez uma genial homenagem a esses filmes, em A Rosa Púrpura do Cairo, em que Cecília (Mia Farrow), uma mulher pobre, infeliz, viu tanto um filme que chamou a atenção de um dos atores, interpretado por Jeff Daniels – e o ator sai da tela para conhecê-la.

A Vida num Só Dia começa ao som de uma canção, em arranjo jazzístico para uma big band, que demorei um pouco para identificar. É Brother, Can You Spare a Dime? – irmão, você pode me dar uma moeda de dez cents?, uma música que ficou muito conhecida durante a Grande Depressão e que fala exatamente, como mostra o título, de tempos de miséria. Ainda durante os créditos iniciais, e ao som de Brother, Can You Spare a Dime?, vemos que a personagem interpretada pela excelente Frances McDormand, a Miss Pettigrew do título original, uma empregada doméstica, está sendo demitida de um emprego. Deixa o prédio onde trabalhou com uma pequena mala, que contém tudo o que ela possui na vida; choca-se com um sujeito que está acabando de sair da prisão, a mala cai no chão, se abre, o vento espalha as poucas roupas dela pelo chão, ela sai correndo dele. Em seguida a vemos na fila da sopa – exatamente a fila da sopa que já vimos em tantos filmes sobre a Grande Depressão e fotos da época; quando ela está para comer a comida ruim, tromba de novo com um passante, o prato cai no chão.

Um jornal numa estação de trem – é a Victoria Station, em Londres – onde a mulher procura um banco para se sentar depois de tanto infortúnio informa ao espectador que estamos às vésperas da guerra. É 1939. 

         Da miséria profunda à opulência, em dez minutos

amiss1Com menos de dez minutos de filme, a pobre, miserável, sofrida, azarada Miss Pettigrew está entrando em um apartamento riquíssimo, onde se apresenta para trabalhar para a moradora, a jovem e bela Delysia Lafosse (Amy Adams, com Frances McDormand na foto), cantora de um night club, teúda e manteúda pelo dono do cabaré, Nick (Mark Strong). Delysia aspira ser estrela de teatro, e por isso acaba de passar a noite com o filho de um rico produtor, Phil (Tom Payne). Haverá ainda um terceiro homem na vida da alpinista social Delysia – Michael (Lee Pace), um pianista cheio de talento e sem um tostão.

Delysia precisa botar Phil para fora do apartamento, porque o sujeito que paga por ela, Nick, está para chegar. Pede a ajuda a Miss Pettigrew – e assim, num piscar de olhos, como num conto de fadas, aquela mulher miserável vai entrar a partir daí em ambientes ricos, elegantes, que incluem uma passagem pelo exclusivíssimo hotel Savoy, e até conhecer um Príncipe Encantado, Joe (interpretado pelo irlandês Ciarán Hinds, na foto abaixo, o César da excepcional série Roma, da HBO e BBC).

Assim que Miss Pettigrew entra no riquíssimo apartamento de Delysia, o filme, que havia começado mostrando miséria ao som de uma música sobre miséria, muda de tom, vira uma comédia, uma coisa farsesca, em que tudo – inclusive as interpretações das duas atrizes, Frances McDormand e Amy Adams – foge espetacularmente do realismo, para um jeito artificial, falso.

Levei um bom tempo para entender o que estava acontecendo; comentei com Mary que tudo era falso, esquisito artificial – o que esses caras estão querendo?

Os caras estavam querendo – foi o que eu achei, finalmente, depois de uns 20, 30 minutos de filme – aquilo que eu descrevi lá em cima: fazer uma homenagem às comédias escapistas dos anos 30. E como fazer isso em 2008, a não ser optando exatamente pelo tom de farsa, pelo registro anti-realista, artificial?

Me lembrei de Angel, primeiro filme inglês do competente e sério François Ozon; quando vi Angel, também demorou para cair a ficha e eu entender que aquele tom adotado na narrativa – tudo também falso, artificial – era absolutamente proposital, que o que Ozon queria era criar o mesmo tom das noveletas de quinta categoria para mocinhas sonhadoras, como se fazia muito no século XIX. 

Ainda estava meio zonzo, depois que finalmente caiu a ficha de que aquilo era uma homenagem aos filmes hollywoodianos dos anos 30, quando o filme me surpreendeu com uma longa tomada especialmente brilhante – numa festa no apartamento chique, a câmara vai fazendo um travelling de 360 graus, em torno de si mesma, mostrando todo o ambiente, e continua rodando, até mostrar o mesmo apartamento depois que todos os convidados já tinham embora e estão ali apenas as duas protagonistas, a alpinista social Delysia e a dama por um dia Miss Pettigrew. Depois daquela tomada, não poderia haver mais dúvida: é um filme feito por gente de talento. 

         2008, nem tão longe assim de 1929

Vejo agora, depois de fazer a anotação acima, que o diretor, Bharat Nalluri, nasceu na Índia, em 1965. Fez muitos filmes e episódios para a TV; aparentemente, este aqui é seu primeiro longa para o cinema. O cara tem talento – e coragem, para fazer um filme tão cheio de estilo e longe do realismo e da realidade.

Ou não tão longe da realidade. O ano em que o filme foi feito, 2008, afinal, foi o ano da maior crise econômica mundial desde a Grande Depressão. Por muito pouco não caímos no fundo do fundo do poço de uma crise global, sem precedentes.

amiss2Ah, sim – e só agora, depois de escrever os parágrafos acima, foi que vi no iMDB, sempre ele: o livro de Winifred Watson no qual o filme se baseia foi publicado no outono de 1938 e foi um grande sucesso. Planejou-se fazer um filme em Hollywood com base nele, com Billie Burke no papel de Miss Pettigrew, mas aí veio o início da Segunda Guerra, e o projeto foi abandonado. O livro foi relançado em 2000, e foi então – diz ainda o iMDB – reencontrado por Hollywood, 60 anos depois.

Então parece que eu entendi corretamente o que o filme pretendia. Demorei, fui bem lerdinho, mas entendi.

Simon Beaufoy, um dos autores do roteiro deste filme aqui, assinou também o roteiro de Quem Quer Ser um Milionário?, o grande vencedor do Oscar de 2009 (filmes exibidos em 2008). 

O fato de os produtores terem escolhido duas atrizes americanas para os papéis principais é facilmente explicável: é uma óbvia tentativa de agradar as bilheterias americanas, o maior mercado consumidor de filmes do mundo. Frances McDormand, a senhora Joel Coen desde 1984, não é uma estrela no sentido convencional, mas é uma atriz respeitabilíssima – ganhou o Oscar por sua maravilhosa interpretação como a chefe de polícia Margie Gunderson em Fargo, dos irmãos Coen, de 1996, e teve outras três indicações para o prêmio da Academia, por Mississipi em Chamas, de 1989, Quase Famosos, de 2001, e Terra Fria/North Country, de 2005; ao todo, coleciona 35 prêmios e 26 outras indicações. 

E essa moça Amy Adams, embora muito nova (nasceu em 1974), já tem 38 filmes e/ou episódios de TV no currículo, e no mesmo ano deste filme aqui fez Dúvida, que deu a ela sua segunda indicação para o Oscar de atriz coadjuvante. Três anos antes, em 2005, já havia tido sua primeira indicação, por Junebug

Lá pelas tantas, alguns parágrafos acima, usei, de propósito, a expressão Dama por um Dia. Dama por um Dia/Lady for a Day foi o nome de um filme que o mestre Frank Capra fez em 1933, no fundo da Grande Depressão. Era um filme escapista, como tantos que se fizeram naquela época – mendiga vendedora de maças (May Robson) é transformada em dama rica e chique por gângster (Warren William), para que possa receber a visita da filha que estuda na Europa e vem visitar a mãe com o noivo rico. O próprio Capra refilmaria a história em 1961, com Bette Davis no papel da mendiga e Glenn Ford no do gângster bonzinho; o filme se chamou Pockefull of Miracles – foi o último milagre realizado pelo veterano imigrante italiano, um dos maiores diretores da história do cinema americano, criador de diversos grandes clássicos nos anos 30 e 40. No Brasil, o filme de 1961 teve o mesmo nome do original, Dama por um Dia. A Vida num Só Dia homenageia a obra de Capra, assim como tantas outras comédias daqueles tempos sombrios.

A Vida num Só Dia/Miss Pettigrew Lives for a Day

De Bharat Nalluri, Inglaterra-EUA, 2008

Com Frances McDormand, Amy Adams, Ciarán Hinds, Mark Strong,

Tom Payne, Lee Pace, Clare Clifford, Christina Cole

Roteiro David Magee e Simon Beaufoy

Baseado em novela de Winifred Watson

Fotografia John de Borman

Música Paul Englishby

Produção Keylight, distribuição Focus Features.

Cor, 92 min

**1/2

Título em Portugal: A Vida num Só Dia

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