A História Oficial / La Historia Oficial


3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Foi muito bom rever A História Oficial. É um belo filme, com interpretações absolutamente extraordinárias, fantásticas, emocionantes. E tem um grande valor histórico. Tem também – me pareceu – um sério problema de implausibilidade, mas que absolutamente não empana o brilho do filme.

Tinha visto A História Oficial uma única vez, na época do lançamento; me lembrava de pouquíssima coisa.

O filme é de 1985, e a ação se passa em 1983. Retrata um casal de classe média alta de Buenos Aires, Roberto (Héctor Alterio) e Alicia (Norma Aleandro). Ele tem uns 50 e poucos anos, é empresário, diretor de uma empresa; não se diz exatamente qual é o ramo do negócio, mas o espectador saberá que a empresa tem ligações com um grupo americano; o espectador também poderá perceber que há algo de escuso, de ilegal, de corrupto, nos negócios de Roberto – que também incluem uma ligação não bem explicada com os militares. Alicia é uma mulher de uns 40 e tantos anos; dá aula de História da Argentina em um colégio particular, para alunos ali na faixa dos 17 anos. É uma professora rígida, que exige estrita disciplina de seus estudantes.

O casal tem uma filhinha de cinco anos, Gaby (Analia Castro), e os dois são absolutamente apaixonados por ela. A impressão que se tem é de que Gaby é a maior alegria da vida de Alicia, e também da de Roberto.

Os dois se dão bem, aparentemente – mas, apesar dessa aparência feliz, na verdade não se falam muito, não se abrem um para o outro; não há, a rigor, uma grande confidência, um relacionamento mais íntimo, mais profundo. Roberto trabalha muitas horas, chega tarde em casa; o casal se vê pouco. 

De tempos em tempos, Alicia participa de reuniões de um grupo de amigas dos tempos de escola. Veremos, com uns 10, 15 minutos de filme, uma dessas reuniões, em que está presente Ana (Chunchuna Villafañe), uma das maiores amigas de Alicia, recém retornada a Buenos Aires após um período de sete anos fora do país. Depois da reunião do grupo de amigas, Alicia leva Ana para jantar em sua casa; depois do jantar, já tarde, Roberto se retira para dormir e as duas amigas continuam conversando.

         Uma seqüência estupenda – duas grandes atrizes em close

E, aqui, o diretor Luis Puenzo e as atrizes Chunchuna Villafañe e Norma Aleandro (nesta ordem, da esquerda para a direita, na foto abaixo) proporcionam ao espectador uma seqüência esplendorosa, maravilhosa, estupenda. As duas estão lembrando histórias, rindo, bebendo licor – tinham bebido vinho durante o jantar. A câmara pega o rosto das duas, bem juntas, em close-up, fixa-se nelas – e teremos uma tomada bem longa, bem longa, e emocionante. De repente, no meio da conversa brincalhona, das risadas, Ana começa a contar como foi presa e torturada.

É uma das seqüências mais impressionantes que eu já vi. Além do tour-de-force das duas atrizes, focalizadas bem de perto, ao longo de alguns minutos sem corte algum, há o texto, impressionante: o que Ana conta é estarrecedor.

Ao final de seu desabafo, seu relato chocante sobre os dias em que ficou presa e foi torturada, Ana diz: “Havia mulheres grávidas que perdiam os filhos ali. Outras os levavam, mas voltavam sozinhas, pois os filhos iam para famílias que compram sem fazer perguntas.”

Alicia leva um susto grande, e reage: – “Por que você está dizendo isso pra mim?”

É a partir dessa seqüência, que acontece quando estávamos com uns 20 minutos de ação, que o filme começa a revelar ao espectador do que, afinal, ele vai tratar. É a partir daí, também, que Alicia começará uma dolorosa jornada que a afastará inapelavelmente da pessoa que havia sido até então – uma burguesa acomodada, alienada, distante da realidade de seu país.

         Não é plausível uma professora de História tão absolutamente alienada de tudo

E é exatamente aí que reside a questão da implausibilidade de que falei lá em cima. Tudo bem: certamente havia na Argentina, como também no Brasil, no Chile, no Uruguai, no Peru, nos tempos das ditaduras militares dos anos 60 a 80, senhoras burguesas absolutamente alienadas, que não sabiam nada a respeito de prisões, torturas, desaparecimentos de milhares de pessoas. Que não sabiam de nada a respeito do que faziam seus maridos, que tipo de ajuda prestavam aos porões da repressão. (Aliás, a figura de Roberto me fez lembrar o ótimo documentário Cidadão Boilesen, sobre o dinamarquês naturalizado brasileiro que coordenou a ajuda dos empresários brasileiros aos aparelhos da repressão da ditadura militar.) Mas uma professora de História da Argentina?

Não sei o que as outras pessoas podem achar, mas, para mim, o diretor Puenzo, também co-autor do roteiro, juntamente com Aída Bortnik, forçou demais a barra ao pintar com cores tão fortes a total alienação de Alicia – que só começa a acabar a partir dessa conversa com sua amiga Ana.

         Lá foram mais golpes militares que aqui

Embora as histórias da Argentina e do Brasil tenham diversos pontos em comum, há também, é claro, diferenças importantes. Os dois países tiveram nos anos 40 e 50 governantes populistas que deixaram forte marca – Perón lá, Getúlio Vargas aqui. Os dois países passaram por ditaduras militares nos anos 60 a 80. Mas o número de golpes militares na Argentina foi maior que no Brasil; aqui, depois da redemocratização de 1945, houve um golpe militar, o de 1964, com um golpe dentro do golpe em 1968; a Argentina teve golpes militares em 1955 (Perón foi deposto), em 1966 (Arturo Ilia foi deposto) e 1976 (Isabelita Perón foi deposta).

Os militares que assumiram o poder em 1976 arrastaram a Argentina para a tragédia da guerra das Malvinas, em 1982. Em 1983, o regime militar estava em seus estertores – foi naquele ano que houve eleições, vencidas por Raul Alfonsin, que iniciou o processo de redemocratização (três anos antes do Brasil, para manter o paralelo entre os dois países).

O filme se passa em 1983. A professora de Historia Alicia havia presenciado em sua vida três golpes militares. É inconcebível que ela não soubesse o que estava acontecendo em seu país atrás e além da história oficial.

         O filme começou a ser feito ainda durante a ditadura

É uma coisa implausível, e é preciso registrar – mas isso não tira a importância e o valor do filme.  

O iMDB diz que as filmagens começaram ainda em 1983, o ano em que se passa a ação, o ano que começou com os militares ainda no poder e terminou com um governo civil eleito democraticamente. “As filmagens foram canceladas devido às ameaças recebidas pelo diretor, pelos atores e particularmente pela família de Analia Castro” – a criança que faz Gaby. Na verdade, diz ainda o iMDB, anunciou-se que as filmagens haviam sido canceladas, embora a produção tivesse prosseguido secretamente até 1985. 

Quando foi lançado, em 3 de abril de 1985, o país já vivia novamente numa democracia; começavam naquele mesmo dia os primeiros julgamentos dos militares envolvidos na “guerra suja”, em que milhares de pessoas foram mortas.

A História Oficial foi escolhido pela Argentina para a corrida rumo ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – e o filme foi um dos cinco indicados e em seguida venceu. Foi o primeiro filme latino-americano a vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Teve ainda uma indicação para o Oscar de roteiro original. Venceu também o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. Participou da mostra competitiva de Cannes – o que em si já é um prêmio importante – e Norma Aleandro foi escolhida melhor atriz (dividindo o prêmio com Cher, por Marcas do Destino/Mask, de Peter Bodgnovich). Norma Aleandro ganhou ainda outros prêmios por sua interpretação fantástica, majestosa. 

         Um filme para ser visto ou revisto

Gostaria de registrar o que Leonard Maltin diz sobre o filme, para o qual deu 4 estrelas, a cotação máxima. Muitas vezes Maltin tropeça, mas em outras tantas acertou em cheio. Foi o caso: “Aleandro está excepcional como uma mulher que vive uma boa vida, protegida contra as turbulências políticas que a cercam na Argentina… até que ela (e aqui ele adianta fatos que eu não gostaria de adiantar, que considero spoilers, mesmo em se tratando de um filme tão conhecido). Um daqueles raros filmes que consegue fazer uma forte afirmação política em meio a uma história danada de boa. Difícil acreditar que foi o primeiro longa-metragem do diretor Puenzo (ele também é o autor do roteiro, com Aída Bortnik). Um nocaute.”

O diretor Luis Puenzo faria, em Hollywood, em 1989, Gringo Viejo, um dos últimos da carreira de Gregory Peck e um dos últimos de Jane Fonda antes de seu sumiço das telas por 15 anos. Gostei do filme, na época; gostaria de revê-lo.

E, se for permitido, gostaria de sugerir ao eventual leitor que veja, ou reveja, A História Oficial. É um belo filme, e um filme importante.

         Um P.S.

Revi A História Oficial e fiz a anotação acima no dia 17 de dezembro. Agora, dia 31, na hora de escolher que filme colocar no último post de 2009, optei por A História Oficial por dois motivos, um positivo e um triste. O positivo é porque ele é um grande filme – nada mal encerrar um ano e começar outro com um grande filme no alto da página.

O triste é que tenha acontecido, nos últimos dias do ano, mais um de tantos absurdos perpetratados pelo desgoverno Lula, e que torna atualíssimas todas as questões levantadas pelo filme – a edição de um decreto que abre caminho para a revogação da Lei da Anistia e cria a Comissão Nacional da Verdade para investigar os crimes cometidos durante a ditadura. Naturalmente, como sabemos como age o atual desgoverno, a Comissão Nacional da Verdade investigará apenas a verdade que interessa aos donos do poder hoje, ou seja, os crimes cometidos pela ditadura, e não os cometidos pelos que optaram por combatê-la com armas, bombas e crimes de morte. Depois de um quarto de século da Lei da Anistia (anistia = perdão geral; e a anistia brasileira, pela qual fomos às ruas, foi ampla, geral e irrestrita), as facções esquerdóides do desgoverno Lula se preparam para jogar no lixo uma transição que foi pacífica e está absolutamente consolidada, e para criar uma Comissão Nacional da Meia Verdade.

Que 2010 seja o último ano com essa corja no poder.

A História Oficial/La Historia Oficial

De Luis Puenzo, Argentina, 1985

Com Norma Aleandro (Alicia), Héctor Alterio (Roberto), Chunchuna Villafane (Ana), Analia Castro (Gaby) 

Roteiro Luis Puenzo e Aida Bortnik

Fotografia Felix Monti

Música Atilio Stampone

Produção Historias Cinematograficas Cinemania

Cor, 112 min

R, ***1/2

16 Comentários para “A História Oficial / La Historia Oficial”

  1. O passado se foi. Nosso compromisso é tirar os ensinamentos do ocorrido e utilizá-los no presente para que tenhamos um futuro promissor como seres humanos e cidadãos de um país

  2. Já vi esse filme, não lembro se foi por indicação ou curiosidade (acabei de lembrar! foi num festival de cinema latino que teve no Sesc Arsenal há pouco tempo (“di grátis”), por isso ele está tão fresco na minha memória). Depois volto para comentar.

    Um ótimo e iluminado novo ano para vc e para a Mary! E “que 2010 seja o último ano com essa corja no poder”. Amém.

  3. Sergio, primeiramente, obrigado por mais um texto. Encontrei aqui uma fonte de boas criticas de cinema que queria.

    Quanto ao filme em questão, particularmente vejo a profissão da protagonista uma caricatura. Assistindo o filme e mesmo depois, também estranhei bastante. Mas acredito que tenham forçado a barra propositalmente. Me lembro da cena em que ela reprime fortemente um aluno, que deu uma outra versão da historia, do tipo que muitas vezes tem muito mais veracidade que as dos livros.
    A caricatura então seria, da força que o sistema tem, para manipular, e transmitir a história da forma que ele quer (incobrindo o lado obscuro, que bons professores de historia fazem questão de mostrar-los).
    A critica também, vai em cima ao padrão de vida (o qual você citou). Muitas vezes a burguesia é iludida e alienada, pelo seu conforto social.
    Abraço

  4. Amei o comentário, não assisti o filme ainda,estou baixando na versão original, mas senti todas as emoções que o filme poderia me passar, apenas pela leitura que fiz.

  5. Você afirma que é impossível alguém como Alicia não saber o que estava acontecendo, mas às vezes as pessoas fazem questão de não saber, isso não é tão incomum, mesmo sendo uma professora de história.

  6. Depois do teu P. S. eu acredito ainda mais que era possível sim a professora de historia ser alienada, pois acreditar que tivemos uma transição pacifica do governo militar é o mesmo que acreditar em papai noel, superando assim a professora do filme, deem uma pesquisada melhor a respeito do militarismo no Brasil, e vai descobrir que não foram pelas “passeatas pacíficas” que este chegou ao fim.

  7. O comentário da Lise Rafaela tem mais lucidez do que a crítica ao filme, que, diga-se de passagem, é bem fraco (roteiro, fotografia, planos, etc). Pior, somente o P.S. do cronista e a sugestão de esquecermos o passado e “passar pano” nos crimes cometidos pelo Estado Brasileiro. O cinema latino-americano já produziu películas bem melhores sobre a ditadura militar. Já tivemos melhores críticos também.

  8. Implausível é Maduro ser recebido como um defensor da democracia, pelo governo brasileiro (a “Venezuela vai bem,obrigado “)principalmente pelos professores de história das universidades do Brasil…Me espanta a ingenuidade dos comentários diante da alienação da professora tal como está ocorrendo aqui,agora ou os comentaristas também dirão que a alienada, a louca sou eu?

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