4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Só ouvi e vi falar bem de A Culpa é do Fidel!, de Julie Gavras, a filha do respeitabilíssimo Konstantinos Costa-Gavras. Não é à toa. Merece todos os elogios possíveis. É um brilho, uma obra-prima. Demonstra um talento absurdo, acachapante, a Gravrinhas.
É da série Meu Deus do céu e também da terra, como é possível um talento assim, uma maturidade assim, logo no primeiro filme? Antes, ela havia dirigido apenas um documentário, Le corsaire, le magicien, le voleur et les enfants, de 2002. O iMDB registra que ela trabalhou como assistente de direção em quatro filmes, o mais recente deles o ótimo Amen, de 2002, dirigido pelo pai. Nunca tinha escrito um roteiro na vida, antes deste aqui.
Como é possível?
Não dá para saber, é claro. Mas foi possível.
É quase um milagre. Não achei a idade da moça na internet, mas o filme de estréia dela tem uma maturidade que não se vê em obras de muitos diretores experientes, veteranos. Para começo de conversa, ela faz uma narrativa direta, simples – sem qualquer rebuscamento, invencionice, criativol, fanfarra, fogos de artifício. A direção de atores é extraordinária, de babar. Todos os aspectos técnicos são perfeitos, absolutamente perfeitos. E ela trata de assuntos sérios, seriíssimos, com um fantástico, delicioso senso de humor, na medida certa, sem exageros, mas com uma fantástica ginga de corpo. Não sobra nada, não falta nada.
Não tem filme que conte uma história do ponto de vista de uma criança melhor que este
Há muitos filmes que contam uma história pelo ponto de vista de crianças, mas não consigo me lembrar de nenhum que seja melhor – nessa característica específica – do que A Culpa é do Fidel!
E que história maravilhosa. Também não conheço o livro no qual Julie Gavras baseou seu roteiro, com a colaboração de Arnaud Catherine. A autora da novela Tutta Colpa di Fidel é uma italiana, Domitilla Calamai. Possivelmente foram necessárias adaptações para que a história italiana passasse a ser uma história francesa – mas o fato é que as adaptações foram tão bem feitas que dá para jurar que a história foi escrita originalmente sobre uma realidade francesa.
É sempre complicado entender o mundo dos adultos.
Mas que mundo complicado vê nossa heroína, Anna, interpretada por Nina Kervel. Que mundo danado de complicado para uma criança tentar compreender.
Quando o filme começa, numa festa de casamento numa casa no campo, a casa de seus avós maternos, Anna está com 9 anos de idade; estamos em 1970. Os avós, de quem Anna gosta demais, são ricos, proprietários de vinhedos – e conservadores, comportamental e politicamente. Anna e o espectador verão o avô amarguradíssimo com a morte de De Gaulle – ele acha que a França acabou. A mãe de Anna, Marie (Julie Depardieu), é jornalista, trabalha na Marie Claire, uma revista progressista, comportamentalmente falando. O pai, Fernando (Stefano Accorsi), é advogado, nasceu na Espanha, de uma família extremamente rica – e franquista. Marga (Mar Sodupe), a tia de Anna, irmã de seu pai, está na festa de casamento que abre a narrativa, com a filha Pilar (Raphaëlle Molinier), que não fala francês; Marga e Pilar vão passar um tempo no confortável apartamento em que Anna vive com os pais e o irmãozinho mais novo, François (Benjamin Feuillet) e mais a empregada Filomena (Marie-Noëlle Bordeaux). E isso – o fato de a tia e a prima ficarem um tempo na sua casa – é a primeira das muitas dezenas e dezenas de irritações que Anna terá ao longo dos maravilhosos 99 minutos do filme que passam depressa demais e deixam um gosto de quero mais.
Porque Anna, aos 9 anos de idade, tem uma aguda inteligência, uma personalidade forte e um apego muito grande, mas muito grande, ao seu status quo. Anna detesta mudanças, novidades que alterem sua vida, sua rotina, seu dia-a-dia. Anna, neta de ricos franquistas de um lado e ricos gaullistas de outro, criada num lar confortabilíssimo e burguês, estudando em colégio de freiras, é uma danada de uma conservadora.
E então se irrita com aquelas parentes que invadem sua paz, seu statuos quo.
Sua tia Pilar acaba de perder o marido, morto pela ditadura do generalíssimo Francisco Franco. Depois da morte do cunhado, Fernando passará por uma mudança profunda. Antes dedicado apenas a trabalhar em prol do conforto da família, Fernando será tomado por uma urgência de fazer alguma coisa maior, mais nobre, pela humanidade. Ele e a mulher deixarão Anna e François aos cuidados da empregada Filomena e passarão uma temporada no Chile, onde acabava de ser eleito Salvador Allende, a promessa de um socialismo construído dentro da democracia.
Filomena é uma exilada cubana; sua família perdeu suas propriedades quando a revolução para derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista deu a guinada em direção ao comunismo, e então Filomena odeia o comunismo, los barbudos, todos os comunistas, como o marido morto de Pilar – e expressa seu ódio para Anna. Filomena desconfia que seus patrões estão virando comunistas.
E quando Fernando e Marie voltam de sua temporada chilena, dispostos a se dedicar a apoiar o governo da Unidade Popular, construir pontes entre o Chile de Allende e a França, ele, o pai, aparece barbudo! E logo depois, como resultado do maior idealismo e menor produção capitalista dos pais, a família é obrigada a se mudar para um apartamento bem menor. E pouco depois a mãe perde o emprego na Marie Claire, e passa a se dedicar ao projeto de escrever um livro em defesa do aborto
Anna, a que gosta do status quo, a que detesta mudanças, tem sua vida inteiramente virada de cabeça pra baixo. No apartamento bem menor, em que tem que dividir o quarto com François, que faz barulho quando dorme, ela ainda terá que assistir a desfiles de barbudos alegres e de mulheres tristes que contam suas vidas para sua mãe. E ainda por cima vai trocar a babá cubana por uma grega, e depois por uma vietnamita. É muita mudança demais da conta.
Faíscas de inteligência
A história é um brilho – sai faísca de inteligência de cada pequena passagem. A forma com que é contada é um brilho – de fato, é tudo como se a câmara fosse os olhos da pequena, aturdida e cada vez mais irritada Anna. A seqüência da passeata anti-Franco – só para dar um exemplo – é uma aula de cinema, um show.
E, credo em cruz, mas o que que é isso, essa menina Nina Kervel! A gente vê muito ator mirim bom, bem preparado, bem dirigido – mas a garota Nina Kervel é um absoluto brilho. As carinhas que ela faz, as expressões, são de uma riqueza, uma variedade, uma gama extensa, um absurdo.
A trilha sonora foi escrita por Armand Amar, que colaborou com Costa-Gavras em vários de seus filmes mais recentes, Amen, de 2002, e O Corte/Le Couperet, de 2005, e foi o autor também as trilhas dos ótimos Indigènes e Mon Colonel, os dois feitos em 2006, o mesmo ano de A Culpa é do Fidel! É extraordinária, a trilha; em alguns momentos, tem um toquezinho latino-americano. Quem acompanhou a explosão da música chilena nos tempos de Allende vai com certeza reconhecer a canção Venceremos, do grupo Quilapayun – que, depois do 11 de setembro de 1973, passou a ter um gosto extremamente amargo.
Uma veia política que, felizmente, vai de pai para filha
Costa-Gavras, o pai, fez um belíssimo filme sobre o Chile pós-11 de setembro, Missing/Desaparecido, um Grande Mistério, de 1982, em que um americano de classe média, absolutamemente apolítico (interpretado, com brilho, por Jack Lemmon), vai a Santiago logo após o golpe militar tentar localizar o filho que, como muitos outros jovens idealistas de várias partes do mundo na época, foram ao Chile presenciar e participar da primeira tentativa de um socialismo de face humana nas Américas.
Grego de família e nascimento, francês por adoção, cineasta do mundo, Costa-Gavras é o diretor de cinema político por definição. Atacou a ditadura dos coronéis em seu país natal (Z), mas também a ditadura comunista na Checoslováquia (A Confissão); reconstituiu o seqüestro de um agente americano pelos tupamaros no Uruguai (Estado de Sítio); remexeu em fundas feridas da França ao lembrar um vergonhoso episódio durante o governo colaboracionista de Vichy (Sessão Especial de Justiça); remexeu em feridas dos Estados Unidos ao retratar os racistas da Ku-Klux-Klan (Atraiçoados); irritou a Igreja católica ao mostrar a leniência – para dizer o mínimo – com que o Vaticano tratou o nazismo (Amen); e, ao criticar a globalização e o capitalismo selvagem que mostrou sua cara feia após o fim do comunismo, transformou a falta de emprego resultante da fusão de empresas e enxugamento de custos em uma trama policial macabra (O Corte).
A veia política passou forte para a filha Julie. Mas A Culpa é de Fidel não é, de forma alguma, um filme maniqueísta. Alguns mais apressados podem até enxergá-lo assim: os comunistas são bonzinhos, bem intencionados, os ricos, os burgueses, são egoístas, se recusam a dar sequer os anéis, quanto mais os dedos, para que haja mais justiça na face da terra.
Naquele tempo, as coisas eram mais simples, mais fáceis de se entender
Mas o filme é bem mais complexo que isso. A começar pelo fato de que as realidades que ele aborda – o Chile de Allende e a Espanha de Franco – são de fato exemplos fáceis. Ninguém em sã consciência poderia ser a favor da ditadura fascista que se estabeleceu na Espanha depois da sangrenta guerra civil, a última das guerras românticas a que o mundo assistiu. Assim como ninguém em sã consciência poderia ser contra a experiência tentada pela Unidade Popular no Chile, de fazer as mudanças sociais dentro da plena democracia. Defender o Chile de Allende e ser contra a Espanha de Franco não era favor algum – era obrigação.
As coisas eram mais fáceis, nos anos 70 que a diretora Julie Gavras escolheu para focalizar em seu filme de estréia. Era bem mais simples distinguir o bom do mau.
E mesmo assim já era bem mais difícil – o filme mostra isso de maneira clara – vivenciar os valores básicos de solidariedade e justiça na prática do dia-a-dia. Lutar por um ideologia que prega a solidariedade é uma coisa; avançar nas questões práticas, comportamentais, é outra completamente diferente. A discussão acalorada do pai e da mãe a que Anna assiste espantada, a partir de uma atitude prática (e correta, e boa, e progressista) de Marie que deixa Fernando apopléxico, é uma maravilha. E todos sabemos muito bem que ser de esquerda, ou se proclamar de esquerda, não signfica ser progressista em termos de comportamento, do dia-a-dia da vida. A bem da verdade, se a gente se lembrar bem, de uma maneira geral era exatamente o contrário: quanto mais comunista em tese fosse a pessoa, mais reacionário em termos comportamentais ela era. Danados de machistas eram os mui comunistas, naquele tempo – ou talvez sempre.
Ao longo de todo o filme, discute-se sobre certeza e dúvida, opiniões fechadas, monolíticas, diante de uma realidade multifacetada. É possível ter certeza de que tal ponto de vista é o correto?
O que pensaria da vida hoje a jovem Anna, que em 1970 tinha 9 anos? Mary fez a pergunta algum tempo depois que o filme acabou, e estávamos os dois maravilhados com a experiência de vê-lo.
Vi, en passant, uma anotação do sempre bom Luiz Carlos Merten, em seu blog no Estadão, em que ele diz que tinha acabado de ver o filme pela terceira vez e estava cada vez mais encantado com ele. É bem isso: é um filme encantador, para ser visto várias vezes, bem curtido, bem deglutido.
Eu, pessoalmente, acredito – mas sem certeza absoluta; as certezas absolutas costumam ser muito próximas da indigência mental – que Anna, hoje, beirando os 50 anos, seria uma ardorosa defensora do direito ao aborto, contrária à pena de morte, a favor da solidariedade entre as pessoas, possivelmente uma ativista pela causa ambiental; teria votado em Ségolène Royal nas últimas eleições presidenciais da França, e seria uma torcedora por Barack Obama; admiraria a experiência chilena pós-Pinochet, mas deploraria o esquerdismo infantilóide, personalista e ditatorial dos Chávez, Evo, Corrêa, Kirschner.
A Culpa é do Fidel!/La Faute à Fidel!
De Julie Gavras, França-Itália, 2006.
Com Nina Kervel (Anna), Julie Depardieu (Marie, a mãe), Stefano Accorsi (Fernando, o pai), Benjamin Feuillet (François, o irmão), Martine Chevallier (a avó materna), Olivier Perrier (o avô materno), Marie-Noelle Bordeaux (Filomena), Mar Sodupe (Marga, a tia), Marie Kremer (Isabella, a tia), Raphaëlle Molinier (Pilar, a prima), Gabrielle Vallières (Cecile, a colega)
Roteiro Julie Gavras, com a colaboração de Arnaud Cathrine
Fotografia Nathalie Durand
Música Armand Amar
Produção Gaumont, B Movies, France 3 Cinéma, Canal +
Cor, 99 min
****
Ahhhhh, finalmente vc falou desse filme! Pensei que vc não fosse assistir nem escrever sobre ele, pq uma vez vc disse que tinha preguiça de filmes narrados sob o ponto de vista de crianças e isso me marcou pra sempre, rsrs. Eu amei esse filme, vi 3 vezes seguidas (em dias diferentes, mas na mesma semana. Realmente é um filme pra ser visto várias vezes, eu até comentei isso num outro site logo que assisti). A Nina Kervel-Bey é um assombro, um espanto, extraordinária, uma atuação de gente grande, impecável. Todo o filme é mesmo muito bem dirigido, todos os atores. Veia política e seriedade à parte, até pq desse tema todos os textos já falaram, eu gostei mesmo foi das crianças, sem elas o filme não teria sido tão bom nem teria sido contado com humor e leveza. A cena dessa última foto em que os dois se viram e olham pra trás (para a babá) é uma das impagáveis; eles com medo dos barbudos. E depois, já quase no final, os dois no carro se escondendo tb foi demais. Um fato que notei e que acrescentaria, mas é uma visão minha e talvez não da diretora, é de que até que ponto vale “sacrificar” ou prejudicar a vida em família por um ideal. Porque além de mostrar um filme com fundo político, ela tb mostrou muito do dia-a-dia de uma família envolvida nessa política, o que eu acho que foi o “plus a mais” do filme.
Preciso dizer que o figurino tb estava um brilho, e é muito bom ver crianças vestidas com roupas de crianças.
Jussara, você é demais. Adoro sua sensibilidade, sua percepção aguda das coisas, sua capacidade de estar sempre ligada a tudo. Babo com sua inteligência. Você é assim uma espécie de Itaipu – quando ela está ligada e funcionando, é claro: você funciona a 200.000.000 de megawatts. Vou falar pra você: se não fosse por qualquer outro motivo, valeria a pena ter feito este site só para conhecer você.
Um grande abraço!