Janis e John / Janis et John


0.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2008: Por causa de Marie Trintignant, eu gostaria muito que este filme Janis e John fosse bom. Foi o último filme que ela completou. Mulher linda, no auge da vida, uma espécie assim de princesa do cinema francês, filha da diretora Nadine e do imenso Jean-Louis, cinco vezes indicada ao César, o maior prêmio do cinema francês.

O filme estava para estrear na França, com grande publicidade, em outubro de 2003; em junho ela tinha sido morta – espancada pelo então namorado, durante a rodagem de um novo filme, na Lituânia.

Infelizmente, o filme é ruim. Vale por ela, apenas.

A seqüência, no final, em que ela, já de novo sem as roupas de Janis Joplin, num bar enfumaçado, solta a voz e o corpo – na verdade, ela está dublando Janis – é muito bonita. Mas é também chocante, dura, tristíssima, por sabermos da tragédia que cortou sua vida no apogeu. 

Vou falar do filme, é claro – mas mais tarde. Antes, quero falar de Marie Trintignant. Na verdade, vou transcrever trechos de uma anotação que fiz sobre a viagem a Paris em setembro-outubro de 2003, o ano em que Janis e John estreou e em que Marie Trintignant foi morta:

 “Uma campanha que me impressionou era sobre violência. Em cada estação de metrô, havia um painel dela, com uma foto de um jovem e o grande título:

A violência, quanto menos se fala dela, mais faz mal.

Embaixo, o nome da campanha, e, acho, um telefone para contato:

Jovens Violência Escuta.

Me pareceu que é uma campanha sobre a violência doméstica contra os jovens. Mas não é absolutamente claro; pode ser sobre a violência dos próprios jovens.

O tema violência voltará em seguida, logo abaixo. Infelizmente.

Nos anúncios culturais, de tudo. (…) A gigantesca exposição da fase Taiti do Gauguin no Grand Palais em reforma. O novo disco da Cesária Évora e sua próxima turnê por Paris, em 2004. (Anunciam-se eventos culturais com uma antecedência colossal.) A próxima turnê dos The Doors 21st Century, sem Jim Morrison, enterrado no cemitério de Père-Lachaise (onde estão também Edith Piaf, Yves Montand e Simone Signoret, entre tantos outros). Hedda Gabler, peça do Ibsen dirigida por Monsieur Polanski en personne, com Madame Polanski, Emmanuelle Seigner, no papel título. (“Cette jeune femme passionée entretien une saine ambition, celle d’apprendre, de s’améliorer”, diz dela o Figaro de 7 de outubro.) A versão teatral de Les Demoiselles de Rochefort no gigantesco Palais des Congrés, em frente do qual passamos de ônibus voltando de La Défense (e que fez o Figaro dar a última página com Michel Legrand, em que o jornal confessa que a França andou meio esquecida do grande músico). Uma peça com André Dussollier, o ator de Resnais. Uma peça com Irène Jacob, a atriz do Kieslowski. Uma peça com Richard Berry, o ator do Lelouch, com texto adaptado por ele, Berry. Os filmes de ação e aventura da estação – Bad Boys II, com Will Smith, A Liga Extraordinária, com Sean Connery. Os filmes românticos da estação – Le Divorce, Je reste!

Mas, dentro do capítulo anúncios culturais, um filme se sobressaía, e demais – Janis et John. Janis et John estava em todos os lugares da cidade. (O filme iria estrear no dia 15 de outubro, poucos dias depois de nossa volta ao Brasil, que foi no dia 7.) E o que seguramente mais impressionava nos anúncios todos não eram as figuras lendárias de Janis Joplin e John Lennon (acharam um ator muito, muito parecido com ele), mas a da atriz que faz Janis, Marie Trintignant.

Umas duas décadas atrás, uma tragédia assombrou o mundo, mas especialmente as pessoas mais bem informadas, mais intelectualizadas: um grande filósofo francês – Louis Althuser, se não me engano – teve um acesso de loucura, matou a mulher, dentro de seu apartamento em Paris, e em seguida se matou, ou tentou se matar, também não me lembro bem.

Vai ser difícil esquecer a tragédia de Marie Trintignant.

Ela aconteceu em junho – tão pouco tempo atrás. Três meses, apenas, antes da nossa estadia em Paris; três meses e meio antes da estréia do último filme que Marie Trintignant concluiu na vida. Dentro de poucos dias ela estará nas telas. Já está nas fotos em todas as ruas, nas estações de metrô, na pele de Janis.

Está nas bancas de revista, na capa da Paris Match datada de 2 a 8 de outubro – uma foto de Nadine Trintignant em sua casa, ao lado de um porta-retrato com uma foto preto e branco de Marie, com o título: “O ódio está em mim”.

Está em exposição, com grande destaque, em todas as livrarias, o livro de Nadine, Ma fille, Marie. Comecei a ler o livro já no vôo de volta para o Brasil. Não é propriamente bem escrito – é um tanto desagradável o fato de Nadine escrever o tempo todo dirigindo-se à filha morta; vai e volta no tempo talvez um tanto desnecessariamente; não relata objetivamente os fatos da tragédia – mas não se poderia mesmo esperar objetividade, é claro. O que não se pode dizer ou pensar é que Nadine esteja fazendo sensacionalismo. Ou melhor, ela está, sim, fazendo sensacionalismo, mas claramente por uma causa. Ela quer vingança.

E quem não iria querer vingança contra o assassino de sua filha?

Os anúncios no metrô pedem que se fale às claras sobre a violência envolvendo os jovens – quanto menos se falar da violência, piores ficam as coisas. Melhor remexer no lodo que fica embaixo da água, melhor deixar a merda subir à tona, melhor expor a imundície.

Nadine Trintignant bota a boca no mundo contra a violência dos machos diante de suas mulheres, essa chaga aberta fenomenal que não poupa a nação que se orgulha de ser uma das mais civilizadas do mundo: “Les ‘femmes batues’. Comment leur dire de ne pas accepter? Jamais! Elles sont un million et demi en France. En 1999, il n’y a eu que dix-sept mille plaintes. La plupart de cogneurs ont bénéficié de non-lieux. Un sur trois a été jugé. Ils ont écopé de peines avec sursis.”

 O Brasil viveu uma experiência um tanto semelhante com o assassinato da jovem Daniela Perez, atriz da Rede Globo e filha da famosíssima autora de novelas Glória Perez. Glória, assim como Nadine, foi à luta contra os assassinos da filha. Causou comoção nacional.

Mas a tragédia de Marie Trintignant é ainda mais brutal. É muito mais brutal – o assassino é o amante! E acontece não num obscuro país do Tiers Monde, mas no coração de uma família da mais alta nobreza do cinema da pátria da solidariedade universal.”

*** 

Bem, o filme… O diretor e co-roteirista Samuel Benchetrit – que foi casado com Marie e teve um filho (a) com ela – abre com um criativol à la Amélie Poulain, à la Todas as Mulheres do Mundo, em que o protagonista, Pablo (Sergi López), narra para o espectador o que as pessoas estão fazendo no início do terceiro milênio. O texto é ágil, esperto, e as imagens, montadas freneticamente, dão esperança de que venha algo interessante por aí.

Mas, quando começa a se desenrolar a trama, percebe-se muito rapidamente que vem aí uma história de um ridículo atroz. A percepção vai se tornando cada vez mais aguda à medida em que a história avança. Parece coisa de ginasiano que tomou ácido.

É assim: Pablo trabalha há 11 anos numa companhia seguradora. É casado há 14 com Brigitte (Marie Trintignant), e têm um filho de uns dez anos; o casamento não vai muito bem; Pablo não presta atenção a Brigitte, e ela se sente burra, sem atrativos, desprezada pelo marido, um poço de desânimo e frustração (ela narra isso para o espectador).

Depois de anos trabalhando honestamente, Pablo resolve tirar vantagem no emprego. Ao descobrir que um velho solitário, Cannon (Jean-Louis Trintignant, trabalhando sob a direção do ex-genro, certamente para dar uma forcinha para ele), quer fazer um caro seguro de um carrão milionário que ele jamais tira da garagem, Pablo passa a embolsar os pagamentos feitos pelo velho, sem registrar apólice de seguro algum na empresa.

Claro que o carro um dia sai da garagem e bate feio numa árvore: 500 mil francos de prejuízo.

É aí então que a mãe de Pablo conta que um primo dele, Léon, acaba de receber a herança do pai recém-falecido: um milhão de francos. Pablo e Léon haviam estado juntos quando eram bem crianças, e nunca mais haviam se revisto. Léon (Christopher Lambert) é um sujeito completamente doidão; quando jovem, em 1973, numa temporada na Swinging London, tinha cheirado todas e tomado um ácido numa viagem em que teve a visão de ter sido visitado por Janis Joplin e John Lennon, no banheiro de uma boate. Janis e John o cumprimentaram, e disseram que voltariam. Desde então Léon se dedica a Janis e John: tem uma loja, chamada Strawberry (après Strawbery Fields Forever, claro), que vende discos, fotos, memorábilia, todo tipo de relíquias de Janis e John.

 E assim o nosso genial Pablo tem a idéia de contratar um ator parecido com John Lennon (François Cluzet) e usar a pobre Brigitte como Janis Joplin para voltarem a aparecer diante do primo Léon – e pedirem a ele 500 mil francos emprestados.

No início, ainda dá para dar uma ou duas risadas, uns três sorrisinhos. A pronúncia francesa dos nomes a princípio é engraçada: Janís Joplín, John Lennón, tudo em oxítonas. Marie Trintignant faz bem a passagem da dona de casa suburbana entendiada e deprê pra neo-riponga doidona, e François Cluzet tem algum jeito como o ator desempregado que topa a oferta maluca. Christopher Lambert, tadinho, foi obrigado a usar uma cara só, de doidão que ficou sonso, com o olhar parado, para o infinito.

Mas a trama é tão idiota – neguinho jovem não deve entender direito a coisa dos dois ídolos dos tempos loucos dos anos 60, e quem já ouviu Janis e John tem inteligência e/ou quilometragem suficiente para achar tudo aquilo uma porcaria – que, com uma meia hora de filme, o espectador vai sentindo vergonha do que está vendo.

De fato, a única coisa que presta é Marie Trintignant cantando à la Janis bem no finalzinho.

E ver aquela mulher linda, sabendo que poucos meses depois daquela filmagem ela seria assassinada a porradas pelo namorado, dá uma violenta tristeza.

Janis e John/Janis et John

De Samuel Benchetrit, França-Espanha, 2003

Com Sergi López, Marie Trintignant, François Cluzet, Christophe Lambert, Jean-Louis Trintignant, Amparo Soler Leal

Argumento e roteiro Samuel Benchetrit e Gábor Rossov

Produção Alquimia Cinema

Cor, 105 min.

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