Irina Palm


Nota: ★★★★

Anotação em 2008: Irina Palm é um filme em tudo brilhante, estupendo, extraordinário. É um dos filmes mais tocantes, mais emocionantes que me lembro ter visto em muito, muito tempo. E tem uma interpretação magnífica de uma artista marcante, superlativa, Marianne Faithfull; vai ser muito difícil esquecê-la.

O tema com que o diretor Sam Garbarski lida é delicadíssimo. O perigo de que o filme deslizasse para um tom sensacionalista, grotesco ou apelativo é imenso. Irina Palm passa longe, muito longe disso, graças, sem dúvida, à habilidade do diretor e à interpretação de Marianne Faithfull.

Em menos de dez minutos, o drama está colocado, e extremamente bem colocado, diante do espectador. Ollie (Corey Burke), um garotinho de uns cinco anos, filho único de um casal da classe trabalhadora de um vilarejo da Inglaterra, Tom (Kevin Bishop) e Sarah (Siobhan Hewlett), tem uma doença degenerativa gravíssima, o quadro não melhora; ao contrário, está piorando, segundo explica o médico do hospital onde está o garoto. Mas há uma última cartada: existe um novo tratamento que está sendo desenvolvido por médicos australianos. Um especialista em Londres, para quem foram encaminhados, informa à família que eles tiveram sorte: a instituição aceita o caso, e agora têm que embarcar o mais rapidamente possível para lá, antes que Ollie fique fraco demais para fazer a viagem.

– Quem paga? – pergunta a mãe ao médico.

Ela deveria saber a resposta. Estamos nos anos 2000, décadas após Margaret Thatcher e o desmonte do sistema de saúde provido pelo Estado britânico.

O médico responde:

– O tratamento é gratuito. O resto, hospitais, passagens, acomodação, etc, ficam…

Em um pequeno grande brilho, mãe e pai falam exatamente ao mesmo tempo:

– Quem paga? – repete Sarah, a mãe.

– Por nossa conta – Tom, o pai, completa a frase do médico.

Não temos sequer dez minutos de filme, a essa altura. Diante do médico, junto com Tom e Sarah, nesse momento, está Maggie, a mãe de Tom, que o espectador já havia visto na abertura da ação, logo após a primeira tomada do filme – um travelling com a câmara em um helicóptero, ou em um dirigível a gás, mostrando um pequeno vilarejo inglês, em meio a um campo verdejante, o travelling aproximando-se pouco a pouco de um extremo da cidade, de onde sai de um conjunto de pequenos apartamentos um homem, Tom, o pai do garoto Ollie.

Com menos de dez minutos de filme, além de ter colocado, e muito bem colocado, o drama, o diretor Sam Garbaski já mostrou que: Maggie, a avó, vendeu a casa que o marido pagou a vida inteira para custear o tratamento de Ollie; Maggie e a nora Sarah não se dão bem; na verdade, está claro que Sarah desgosta profundamente da sogra; o relacionamento entre Tom e Sarah, se é que já foi alguma coisa melhor do que boa, no passado, hoje, depois de anos de desgaste com a doença do filho, é um horror total.

Na saída do médico, enquanto eles esperam o metrô para depois pegar o trem de volta à vila em que moram, Maggie diz que eles arranjarão o dinheiro. Seco, duro, Tom diz para ela calar a boca, que todos sabem que não têm como arranjar o dinheiro.

Maggie nunca trabalhou fora na vida; como tantas mulheres, foi apenas a esposa dedicada, até a morte do marido. Mas está decidida. Passa a ir a Londres constantemente, à procura de emprego. O único que consegue é num clube de sexo, quase um puteiro, que pertence a um imigrante do Leste Europeu, Miki (Miki Manojlovic). Não é o caso de revelar aqui, para quem ainda não viu o filme, exatamente o que uma senhora de mais de 50 anos vai fazer no clube de sexo. Mas ela aceita o emprego chocante, humilhante; o salário é bom. E ela fará bem, muito bem, o serviço.

E enfrentará o serviço, e o que virá depois, com uma dignidade absolutamente extraordinária.

E Marianne Faithfull dá um show. É marcante tudo nela: a postura digna, a determinação com que encara o dever de pagar pelo tratamento do neto, a força com que enfrentará a barra pesadíssima, os momentos de dúvida, de hesitação. É uma das atuações mais brilhantes que já vi, uma coisa assim comparável à de Helen Mirren como a Rainha Elizabeth II em A Rainha de Stephen Frears ou à de Marion Cotillard em Piaf – Um Hino ao Amor, de Olivier Dahan.

Como o filme a quem empresta brilho, Marianne Faithfull  é uma figura em tudo extraordinária. Teve várias vidas e duas sólidas carreiras, a de atriz e a de cantora. Em 1968, estrelou A Garota da Motocicleta/The Girl on a Motorcycle, ao lado de Alain Delon, então no auge da fama; fez a Ofélia no Hamlet de Tony Richardson em 1969; fez diversos outros filmes para o cinema e participou de séries de TV; recentemente, trabalhou no Maria Antonieta de Sofia Coppola.

Apesar de todo esse bom currículo, ela teve ainda mais sucesso como cantora. Nascida em 1946, filha de uma baronesa e de um agente do serviço secreto inglês, estreou como cantora em 1964, aos 18 anos de idade, e seu primeiro compacto chegou aos primeiros lugares nas paradas de sucesso da Inglaterra e dos Estados Unidos; era uma canção composta por uma dupla de iniciantes, chamados Mick Jagger e Keith Richards – As Tears Go By. A música só seria gravada pelos Rolling Stones um ano depois. 

Era uma menininha linda de doer, um rostinho perfeito, um tesão. A vozinha era pequena, mas de timbre gostoso, afinadinha, charmosa. Nessa sua primeira encarnação como cantora jovenzinha (haveria outras, depois), gravou pérolas pop, como Yesterday e Monday Monday, do folk, como The First Time Ever I Saw Your Face e Four Strong Winds, e do folclore dos Estados Unidos, como The House of the Rising Sun, e das ilhas britânicas, como Scarborough Fair (sim, é uma canção folclórica; Paul Simon fez apenas uma adaptação, um arranjo, embora tenha assinado como autor).  

Por uma grande ironia do destino, acabou ficando mais conhecida como a namorada de Mick Jagger do que como cantora e atriz. Até que, a partir dos anos 70 e do rompimento com Jagger, afundou nas drogas – cocaína, heroína, álcool. A filha de baronesa conheceu o inferno; conta-se que morou nas ruas de Londres durante mais de um ano.

“Poucas estrelas dos anos 60 se reinventaram com tanto sucesso quanto Marianne Faithfull”, escreveu, bem escrito, o autor de sua biografia no AllMusic. Em 1979, depois de anos sem gravar, voltou com Broken English, um álbum belíssimo, cheio de dor; passou a escrever canções, com grandes colaboradores – e grande talento. Fez diversos outros belos discos a partir daí. Era outra cantora, tinha outra voz – uma voz bem mais grave, quebrada como o inglês do título do disco do retorno, algo próximo da voz das cantoras de cabaré, entre uma Marlene Dietrich e uma Ute Lemper.

Ao interpretar Maggie, não tem quase nada a ver com a adolescente lindérrima dos anos 60. É uma mulher grande; não é propriamente gorda, mas é grande, aparentando uma estrutura óssea pesada, forte. Perfeita para o papel de Maggie, uma matrona inglesa. O rosto tem as marcas de quem passou pelo inferno e voltou, mas mantém os traços belos, os olhos luminosos.

Grande Marianne Faithfull. Grande filme.

Irina Palm

De Sam Garbarski, Bélgica-Luxemburgo-Inglaterra-Alemanha-França, 2007

Com Marianne Faithfull, Miki Manojlovic, Kevin Bishop, Siobhan Hewlett

Roteiro Martin Herron, Philippe Blasband e Sam Garbarski

Música Ghinzu

Produção Entre Chien et Loup e Sébastian Delloye. Estreou em São Paulo 4/4/2008.

Cor, 103 min

****

5 Comentários para “Irina Palm”

  1. Sergio, adorei sua análise do filme. Me fez rever a posição de não colocá-lo em meu blog By Star Filmes (http://bystarfilmes.blogspot.com/). Vou colocar Irina Palm com parte de sua postagem, com os créditos e link para o “50 Anos de Filmes”, é claro. Sei que não poderia escrever melhor. Parabéns pela página,
    um abraço,
    stella

  2. Cara Stella,
    Fiquei extremamente honrado ao receber sua mensagem e ver que você transcreveu o meu texto no seu blog (http://bystarfilmes.blogspot.com/). Eu não o conhecia; dei uma olhada nele, e gostei demais. Achei que seu blog é bem parecido com o meu no sentido de que você coloca lá comentários pessoais sobre os filmes de que você gostou; a escolha dos filmes é extremamente pessoal, sem compromisso algum com gênero, época da produção – a escolha é sua, pessoal, e pronto. Acho isso interessantíssimo.
    Repito, com alegria, o que você disse: parabéns pelo seu blog.
    Na verdade, parabéns pelos seus blogs, porque você tem outros dois além desse sobre cinema. Incrível como você é incansável. Parabéns mesmo!
    Um abraço.
    Sérgio

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *