3.5 out of 5.0 stars
Resenha na coluna O Melhor do DVD, no site estadao.com.br, em 2001: Segredos do Poder se baseia no livro Primary Colors, assinado por um misterioso Anonymous. Era um relato detalhado, cheio de nuances, das eleições primárias de 1992, em que Bill Clinton foi escolhido o candidato democrata à presidência. Tornou-se rapidamente best-seller, um dos livros sobre política mais populares da história americana – e virou um passatempo nacional tentar descobrir os nomes reais dos personagens descritos com minúcias como o tipo de pronúncia sulista das palavras. O personagem central, Jack Stanton, jovem, ambicioso e extremamente, mas extremamente mulherengo, era o próprio Clinton – essa era a primeira certeza de todos.
Em sua resenha sobre o livro publicada na revista Time de 29 de janeiro de 1996, o repórter e colunista político Walter Shapiro conta que ele mesmo leu a novela anotando um Quem é Quem que incluía os nomes reais de James Carville, o marqueteiro mór (que aliás andou visitando o Brasil e, segundo se comentou na época, dando conselhos para a primeira campanha de FHC), e Mario Cuomo, um dos pré-candidatos democratas. Shapiro diz na resenha que ele mesmo chegou a ser apontado como o Anônimo autor do livro, pelo fato de ter coberto a campanha de Clinton para a Time; e terminava dizendo: “Palavras não podem descrever quanto eu gostaria de ter sido o autor”.
O autor, revelou-se mais tarde, era um outro jornalista, colunista da Newsweek, chamado Joe Klein,
O diretor Mike Nichols e a roteirista Elaine May deixam claro o caráter mulherengo do personagem central, calcado no então ocupante da Casa Branca, que, naquele momento, 1997, 1998, estava às voltas com o escândalo Monica Lewinski. E é nisso que se costuma prestar mais atenção, no filme. É uma pena – porque isso é só uma parte de Segredos do Poder, e não a mais importante. Distanciando-se um pouco, talvez, do personagem real, Nichols e sua roteirista quiseram se aprofundar mais numa questão muito maior. Quiseram discutir seriamente o que restou dos sonhos da geração que pensou que poderia mudar o mundo (e acabou sendo mudada por ele, como disse em Nós Que Nos Amávamos Tanto Ettore Scola, o último dos grandes diretores do melhor cinema político do mundo, o italiano).
É interessante notar como podem ser tão diferentes entre si, embora tenham sido feitos na mesma época e tratem exatamente do mesmo tema – o envolvimento de um candidato a presidente pelo Partido Democrata em um escândalo sexual – os filmes Segredos do Poder e Mera Coincidência. Este último é sátira ferina, violenta, gozação total; é sarcástico, demolidor, não poupa nada, chama o povo de imbecil, os políticos de merda, a imprensa de incompetente; não deixa pedra sobre pedra. Segredos do Poder tem em alguns momentos suaves toques de comédia – mas o viés é extremamente sério.
Toda a trajetória nas primárias do governador Jack Stanton (John Travolta grande ator, brilhante, excepcional) é vista através dos olhos de Henry Burton (Adrian Lester), chamado para coordenar o trabalho, ele próprio o neto de um grande líder das campanhas pelos direitos civis dos anos 60. Stanton, sua mulher, Susan (Emma Thompson fantástica), e a grande amiga Libby (Kathy Bates, outro brilho), vamos vendo ao longo do filme, eram jovens estudantes nos anos 60 que fizeram a revolução dos costumes, e mantiveram os ideais libertários e da sociedade mais justa.
Jovem, idealista, Henry vai percebendo, entre incrédulo e chocado, fato após fato, sinal após sinal, que Stanton de fato quer o bem das pessoas, e não apenas o poder. Mas tanto ele quanto o espectador ficam com o pé atrás: será que é verdade? Será que ele não é afinal de contas apenas mais um político com grande capacidade de fingir? A dúvida persegue o personagem de Henry assim como persegue o espectador ao longo do filme – e Travolta, brilhante, adulto, maduro, com uma interpretação cheia de matizes, é fundamental para deixar pairar no ar a dúvida.
Em Mera Coincidência, os assessores do candidato são extremamente competentes, mas profissionais; não se importam se o seu candidato é melhor do que os demais; trabalham por dinheiro, e só. Em Segredos do Poder, não; neste, há sempre, a cada momento, a preocupação de mostrar que os assessores do candidato querem saber o fundo, a verdade – será que Stanton é de fato honesto, correto?
É um filme longo – 135 minutos -, com tempo para diálogos explícitos acerca do bem e do mal, o falso e o verdadeiro, o desonesto e o honesto. Discute-se muito, ao longo de todo o filme. Tudo é dito expressamente; não há ênfase nas entrelinhas. Discutem-se todos esses conceitos – honestidade, honra, compromisso com o bem estar geral.
O ritmo é dado desde o início. Stanton visita uma escola do Harlem onde há um programa de leitura para adultos (combater o analfabetismo adulto é seu lema principal de campanha); um negro disléxico conta demoradamente sua história – e ele, Stanton, reage com lágrimas, e em seguida como uma história de um tio que ficamos todos em dúvida se é verdadeira ou malufiana mentira. Ao ver que ele chora, Henry se espanta – é seu primeiro de muitos grandes espantos com o candidato. A seqüência é longa, certamente cansativa para os padrões atuais do cinemão americano.
Toda a questão tão atual da importância das mazelas da vida pessoal dos candidatos é colocada de maneira séria, densa – ao contrário da forma sarcástica de Mera Coincidência. O filme insiste em discutir, várias vezes, que fazer sexo fora de casa, cheirar pó, ser homossexual, o que for, não tem nada a ver com a capacidade para administrar um país.
No seu segundo filme, A Primeira Noite de Um Homem, Mike Nichols contava uma história cheia de simbologias sobre a chegada à idade adulta e produtiva da geração que rompeu com os ritos dos pais e achava que podia mudar tudo; o Ben de Dustin Hoffman achava – como tantos da geração nascida no final dos anos 40, começo dos 50 – que sua história de vida seria o oposto da de seus pais. Em Ardil 22, fez uma sátira demolidora, pregando que hierarquia era um absurdo total e só levava à loucura. Em Ânsia de Amar, fez um amargo apanhado do duro crescimento em uma sociedade em mudanças, em que o personagem que escolhia a contracultura era capaz de felicidade e aquele que não contestava as regras era levado à solidão e à impotência. Equivocou-se mais tarde a ponto de fazer quase uma elegia do yuppismo em Uma Secretária de Futuro, mas pediu desculpas pelo erro em Lobo e em Uma Segunda Chance; e, com este Segredos do Poder, fez um hino à coerência de princípios, a coerência na crença.
Segredos do Poder/Primary Colors
De Mike Nichols, EUA-França-Inglaterra-Alemanha-Japão, 1998.
Com John Travolta, Emma Thompson, Billy Rob Thornton, Kathy Bates, Dianne Ladd
Roteiro Elaine May
Baseado no livro de Joe Klein
Música Ry Cooder
Cor, 143 min
***1/2
Título em Portugal: Escândalos do Candidato
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