Anotação em 1998: Emocionante, comovente. Um filme sério, maduro, denso, que alia total domínio da técnica (como diversos outros filmes do renascimento do cinema brasileiro pós-Collor) a conteúdo admirável. Chorei de emoção no final – como quase todo o mundo – e fiquei absolutamente emocionado ao ver a fila gigantesca para a sessão seguinte. Está garantido: vai ser grande sucesso de público. Eu tinha me emocionado com essa coisa do renascimento do cinema brasileiro ao sair do Quatrilho, mas aqui é outra coisa totalmente diferente; O Quatrilho é uma novela da Globo comparado a este filme.
Disse pra Mary, meia hora depois de sair do filme, que este é o melhor filme brasileiro desde Bye Bye Brasil, e um dos melhores de toda a história. É bem verdade – e é interessante como tem a ver com o grande filme do Cacá, outro road movie pelo interior do Brasil.
Que orgulho, que coisa boa ver um filme sério como esse atraindo tanto público. Houve diversas pré-estréias em São Paulo; seguramente teve outras tantas no Rio; ontem, 3 de abril, foi o lançamento nacional, como grande produção de Hollywood; em São Paulo, está em oito salas. Não me importa se o fato de ter agradado no Sundance ou, sobretudo, ter ganho Leão de Ouro e de Prata para Fernanda em Berlim um mês e pouco atrás possa estar sendo responsável pela ida das pessoas ao cinema. Não importa. Importa é ver os brasileiros indo ver a cara do Brasil no cinema.
E o filme é a cara do Brasil. Uma cara feia, pobre, analfabeta, desdentada, mas ao mesmo tempo solidária, emotiva, no fundo boa, e sempre cheia de esperança.
O começo do filme é arrebatador e brilhante. As cenas na Central do Brasil são de um brilho visual absoluto – uma espécie assim de Koyaanisqatsi, do Godfrey Reggio, e sua continuação, Powaqqatsi. (Incrível como ninguém tenha feito essa associação antes.) A introdução da personagem de Dora no meio daquela movimentação incessante da estação, depois do rosto em primeiro plano da primeira mulher que dita uma carta, é fantástica. A cena do vagão do subúrbio vazio, sendo invadido pela multidão que entra pelas janelas, e depois Fernanda Montenegro entrando junto com os demais passageiros, é fantástica.
Há pequenas falhas no roteiro. Poucas, e pequenas, que absolutamente não comprometem. (A facilidade com que Dora entra no apartamento dos vendedores de crianças e retira de lá o garoto Josué, e depois a dificuldade que o casal da quadrilha tem em persegui-los, é uma delas. A outra é Josué embarcar, como se estivesse sozinho, no ônibus que vai para o Nordeste; isso não aconteceria nunca, na realidade.) Bobagem. As falhas saem no mijo.
São absolutamente emocionantes as cenas – primeiro no Rio, na Central do Brasil, e depois no Centro do Brasil profundo, no Nordeste – em que as pessoas analfabetas ditam as cartas a Dora. Tudo em primeiro plano, com gente que seguramente não tem experiência como ator, gente do povo, a cara do Brasil.
Belo, belíssimo filme. Incrível como esse menino, no terceiro longa de sua vida, consegue ser tão maduro, tanto em técnica quanto em conteúdo.
Quem vê o filme sem ter lido sobre ele (como era o meu caso) não sabe que quem representa a primeira dessas pessoas que dão seu depoimento olhando para a câmara, ditando suas cartas para Dora, é Socorro, uma ex-presidiária que escrevia cartas para o artista plástico Frans Krajcberg e que foi o foco do curta que Waltinho Salles fez em 1995, Socorro Nobre.
Tenho visto nos jornais que se discute de quem são as maiores influências sobre o filme. O JB disse que o filme bebe mais em Wim Wenders do que no Cinema Novo. Waltinho insiste em dizer que suas raízes são o Cinema Novo. Essa discussão não importa muito, ou não importa nada. Mas, é claro, tem muito Wim Wenders em Central do Brasil. Tem muito, especialmente, de Paris, Texas – a vastidão dos desertos do Oeste americano onde um homem que perdera todas as esperanças une-se, na busca incessante pela mulher, ao filho que a princípio o rejeita.
Aqui, Dora, uma mulher que igualmente havia perdido as esperanças e ganhava a vida cinicamente enganando pessoas esperançosas, escrevendo por elas cartas que elas não poderiam escrever e não as remetendo no Correio, une-se a um garoto que acaba de perder a mãe e tem a esperança de reencontrar o pai. De fato (eu, pra falar a verdade, não percebi isso claramente no filme; mas a descrição que Waltinho faz, e que li depois, é bem real), no início do filme, enquanto ainda se está no Rio, ou dentro do salão principal da Central do Brasil, ou no apartamentinho de Dora no subúrbio, tudo é aprisionado, claustrofóbico, sem horizontes; os planos são em geral próximos do close – com exceção das tomadas gerais da estação, por onde passam à la Koyaanisqatsi centenas de milhares de pessoas sem rumo. A fotografia de Walter Carvalho, brilhantíssima, como que faz um preto e branco em cores, sem luminosidade.
Quando Dora e Josué deixam a Central do Brasil e partem para o Brasil Central, tudo muda, a tela se invade de luz forte, poderosa; os planos passam a ser largos, imensos, a perder de vista – como no início de Paris, Texas, e como de resto em todos os grandes westerns, até Thelma e Louise, ele mesmo uma homenagem de Ridley Scott às paisagens de John Ford no Monument Valley.
O que se tem, então, com Dora e Josué, é aquele velho tema da aproximação dos opostos, dos distantes, dos antípodas (para lembrar apenas alguns, o próprio Paris, Texas, ou Kolya). Mas a aproximação se dá de maneira bem feita, bem narrada, rica, matizada. Dora e Josué, despossuídos, ela levemente cínica, ele dono apenas de uma esperança cega, vão se aproximando não numa linha reta, mas numa trajetória tortuosa, cheia de idas e vindas, até o encontro final, que resulta ao mesmo tempo no desencontro, na despedida. Nesse processo, Dora passa pela mudança que é certamente a maior simbologia do filme, seu elemento mais emblemático: ao voltar à antiga profissão de escrever para as pessoas as cartas que elas não sabem escrever, numa cidadezinha perdida no Brasil Central, Dora não mais atraiçoa os que entregaram a ela suas esperanças de se comunicar com o parente, amado distante; atravessa a rua, entra no pequeno posto do Correio.
Waltinho explicou bem o que queria, numa entrevista a Helena Salem publicada no Estadão de 3/4/98: “Um país confrontado consigo mesmo que talvez esteja cansado de viver da promessa de ser o país do futuro, eternamente vendida pelas estatísticas oficiais, sempre a reboque da miragem primeiro-mundista. Ele almeja talvez o contrário: ser um país onde certo humanismo, certa fraternidade sejam possíveis, onde a indiferença, o cinismo e a falta de ética talvez não mereçam mais ter vez. Então, o Central do Brasil é um filme sobre um menino que busca o pai, inverte o eixo da migração Norte-Sul dos anos 60/70. É a história de uma mulher que se insensibilizou ao longo dos anos, se tornou cínica e acompanha o garoto justamente para ter a possibilidade de viver uma segunda chance e redefinir sua história. Finalmente, é um filme à procura de um país.”
E, no mesmo dia, no Estadão, o Luiz Carlos Merten escreveu um belo parágrafo: “Ética e cidadania. Há poucos filmes tão generosos como Central do Brasil no panorama do cinema brasileiro. E por isso o filme emociona. Por que choram as pessoas nas sessões de Central do Brasil? Talvez porque queiram encontrar-se no elogio que o filme faz à decência. Não é coisa frequente numa cinematografia como a nacional, que tantas vezes fez (faz) o elogio do jeitinho brasileiro, do escracho. Talvez uma mudança esteja em processo no País – Salles soube captá-la. Ou, esperançoso, quis antecipá-la no seu filme.”
Central do Brasil
De Walter Salles, Brasil, 1997.
Com Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveira, Marília Pera, Othon Bastos, Otávio Augusto, Matheus Nachtergaele.
Arg Walter Salles
Rot Marcos Bernstein e João Emanuel Carneiro
Mús Jacques Morelembaun
Fot Walter Carvalho
Cor, 113 min
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