2.5 out of 5.0 stars
Anotação em 1997: A maior surpresa é ver um filme da Islândia. Seguramente foi a primeira vez – e não sei se haverá muitas oportunidades. Coisa maluca, um país gelado de 250 mil habitantes, menos que Jundiaí, menos que o meu bairro – e sem miséria, com educação e saúde pra todo mundo.
O filme é devagar como deve ser a vida na Islândia e aos 78 anos, idade do personagem central. Narrativa tranquila, sem criativol na forma de contar. De repente surgem remissões aos road-movies americanos, ao realismo fantástico latino-americano, muita semelhança, num momento específico, com o (posterior) Guantanamera e, para culminar, uma citação-homenagem a Wim Wenders e seus anjos, com a presença do mesmo ator, Bruno Ganz, em participação especial – como um anjo. OK: tem um pouquinho de Bergman – o velho que atravessa o país, como o de Morangos Silvestres, a falta de afeto entre membros da família. Mas sem muita metafísica. Praticamente nenhuma metafísica.
O argumento é de uma simplicidade total. O espectador vê um velho (saberá, mais para o final, que ele está com 78 anos) numa fazenda um tanto isolada. Vê que ele vive sozinho, e que se prepara para uma mudança. Mata seu cachorro, toma um meio banho, lava os cabelos; recolhe roupas e alguns pertences (foto da mulher morta, relógio de parede) e vai esperar um ônibus. Leva um dia inteiro na viagem, e chega a uma grande cidade – a única do país, a capital, Reicjavic. Claro, vai visitar a filha. Ela mora num apartamento confortável, com o marido e a filha única. Não há um toque na pele, sequer um. Com pouquíssimo tempo de estadia, arma-se briga entre ele e a neta, a filha o leva para um asilo para velhos – asilo, notamos imediatamente nós, aqui do cu do planeta, de primeiríssimo mundo.
De imediato, ele vê uma mulher sendo levada quase à força por enfermeiras. Divide quarto com um senhor simpático, conversador, que fala que ali se namora e se dança e se vive. Pouco depois esse senhor vai morrer, diante do nosso protagonista. Numa festinha no asilo, ele revê a mulher que brigava com as enfermeiras. É uma antiga namorada de infância, dos tempos em que ambos viviam na sua velha terra, no Oeste do país. Ele havia se mudado para o Norte – possivelmente ainda jovem, e lá tinha ficado até decidir fazer a viagem para a capital – não sabemos muito bem se por solidão, se por se sentir velho e incapaz de cuidar da fazenda. A mulher, Stella, um ano mais velho que ele, tem um sonho e ao mesmo tempo uma firme disposição: voltar para sua terra, no Oeste, para morrer lá, ser enterrada lá.
Nosso protagonista resolve fugir do asilo com Stella, levá-la de volta pra sua terra de origem. Saem do asilo numa madrugada, roubam um jipe Willys estacionado perto – com direito a ligação direta. A polícia vai atrás. De repente, interrompendo toda a narrativa tradicional, acadêmica – o jipe some quando a polícia está chegando perto. Mais tarde, o jipe vai reaparecer no lugar exato em que estava, antes de ser roubado.
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O casal tem momentos de alegria. Stella, especialmente, fica feliz ao reencontrar a velha casa da família, deixada lá várias atrás e arrumada como se tivesse sido abandonada no dia anterior. Voltam-lhe à cabeça imagens da juventude – para que em seguida ela caia morta na praia. (E isso é exatamente igual ao que acontece com a velha cantora em Guantanamera; muito certamente o cubano copiou a imagem criada pelo islandês, que por sua vez estranhamente deve ter bebido no realismo fantástico da longínqua América Latina.)
Ele a descobre caída, a recolhe, faz o caixão, a enterra junto da igrejinha do lugar, cantando Bach. E depois sai vagando pela praia e pelas montanhas, tão sem rumo quanto sem sapatos. No momento em que a polícia chega de helicóptero, o anjo de Wim Wenders vem, passa a mão na sola ferida de seus pés, e o faz desaparecer.
Filhos da Natureza/Börn náttúrunnar
De Fridrik Thor Fridriksson, Islândia, 1991.
Com Gisli Halldorsson, Sigridur Hagalin, Bruno Ganz
Roteiro Einar Mar Gudmundsson e Fridriksson
Cor, 82 min.
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