Império do Sol / Empire of the Sun


3.5 out of 5.0 stars

Texto publicado na revista Afinal de 29 de março de 1988: No próximo mês de maio (de 1988), o mago Steven Spielberg começa a tirar de sua fantástica cartola de Rei Midas, de onde saíram sete dos 20 filmes de maior bilheteria do cinema, a terceira aventura do super-herói Indiana Jones. Será de novo com o mesmo Harrison Ford dos dois anteriores, e em colaboração com o mesmo George Lucas. O que garante que as crianças de todas as idades, dos 8 aos 80 anos, terão dentro de alguns meses mais um espetáculo de delícias, duas horas de fantástica fuga de todos os problemas do mundo.

Quem quiser fugir de problemas, no entanto, deve passar bem longe dos cinemas brasileiros que começam, nesta quinta-feira, 31 (de março de 1988), a exibir Império do Sol/Empire of the Sun, o décimo longa-metragem do garoto prodígio que é o maior campeão de bilheteria do cinema mundial. Como já havia feito em A Cor Púrpura/The Color Purple, seu filme anterior, de 1985, o mago Steven Spielberg veio de novo sem sua cartola, longe dos sonhos, bem no fundo do pesadelo.

Fascinante personalidade esta, que alterna extremos em sua carreira fulminante – ele ganhou sua primeira filmadora de presente do pai aos 12 anos de idade; foi o mais jovem diretor de cinema a assinar um longo contrato com um grande estúdio, aos 21 anos; aos 38, como diretor e produtor, já havia colocado a marca Steven Spielberg presents em uma dúzia de espetaculares sucessos, a maior parte voltada para o público infanto-juvenil, como Tubarão, Caçadores da Arca Perdida, Indiana Jones e o Templo da Perdição, Os Gremlins, De Volta para o Futuro, Os Goonies e Poltergeist. Quando enfim decidiu filmar um drama, com A Cor Púrpura, mergulhou no pior de todos os mundos que é ser – como diz um dos personagens do filme – preto, pobre, feio e mulher em uma sociedade racista, machista e classista como a do Sul dos Estados Unidos.

Da Suíça ao Biafra

Império do Sol apresenta um pesadelo tão terrível quanto o da negra Celie, a personagem central de A Cor Púrpura. É a história de um garoto que, como num passe de magia (negra), deixa o conforto e a opulência de uma Suíça e desaba no meio do horror de um Biafra. James Graham, o personagem central do filme, vive até os 11 anos de idade cercado por todas as benesses possíveis e imagináveis apenas para a casta mais alta dos ingleses conquistadores do mundo. Incidentalmente, e apenas incidentalmente, ele vive na Xangai de 1941, mas é como se fosse na Inglaterra. Seu bairro é só de mansões habitadas por ingleses; sua escola é inglesa, assim como são inglesas as pessoas com quem mantém contato – feita a exceção exclusiva para os serviçais, a babá e o motorista do Packard que o leva para as aulas e as festas. Entre Jamie, como os pais o chamam, e a China real, das ruas apinhadas, superpovoadas, há sempre os vidros fechados do elegante carro. Há um diálogo brilhante entre Jamie e seu pai que mostra toda a dimensão da arrogância colonialista. O garoto, absolutamente apaixonado por aviões – essa fascinação é uma das marcas mais fortes de seu caráter, e perpassa todo o filme -, pergunta quem vai ganhar a guerra, e o pai responde: “Nós, é claro”, referindo-se à guerra dos Aliados contra a Alemanha. Ao que Jamie diz: “Não, eu quero dizer a guerra entre os chineses e os japoneses”. “Esta não é a nossa guerra”, responde o pai.

A guerra que não é deles entra em suas vidas em seguida, com uma brutalidade absolutamente inimaginável para quem, como Jamie, sempre havia vivido em uma redoma de superproteção e riqueza. Durante uma batalha entre japoneses e chineses, no meio de uma rua de Xangai que é um Amazonas de gente, Jamie se perde dos pais. Passaram-se então não mais que 20 minutos do filme de duas horas e meia de projeção, e Steven Spielberg vai abandonar o mundo dos ricos – que retratou tão bem em filmes como E.T. e Poltergeist – para penetrar na mais absoluta miséria.

Por sua capacidade de encantar platéias com aventuras, efeitos especiais, super-heróis, monstrinhos, fantasmas, com tudo o que forma a fantasia, Spielberg foi comparado, insistentemente, a Peter Pan, o menino que se recusava a crescer. Em dezembro do ano passado (1987), mês em que Império do Sol estreou nos Estados Unidos sob aplausos entusiasmados da crítica e do público, Spielberg fez 40 anos de idade e declarações como esta: “Estou farto dessa idéia de que não quero crescer”. Ele admitiu que foi atraído pela história de Império do Sol por seu personagem central ser uma criança – mas sintetizou que, aqui, o personagem é exatamente o oposto de Peter Pan: “Eu também me senti atraído pela idéia de que isto era a morte da inocência, e não um congelamento da infância – o que, pela impressão que todo mundo tem de mim, é o que minha vida tem sido. O filme é a história de um menino que teve que crescer muito rapidamente – o oposto de Peter Pan”.

         US$ 35 milhões

Spielberg teve vontade de filmar a saga desse anti-Peter Pan  desde que leu o livro Império do Sol, de J.G. Ballard. J.G. são as iniciais de James Graham, e por aí já se vê que o livro é autobiográfico: Ballard, um conceituado autor de ficção científica, perdeu-se dos pais durante a guerra entre chineses e japoneses, na China, na década de 40, e passou pelas experiências agora mostradas no filme de Spielberg. A princípio, era para ser um filme de David Lean, o meticuloso diretor de Passagem para a Índia e Lawrence da Arábia, apaixonado pelo tema da colonização dos ingleses nos países considerados “inferiores”. Lean é um dos ídolos do próprio Spielberg, ao lado de Akira Kurosawa (os dois têm a mesma paixão pelas imagens perfeitas), François Truffaut (os dois têm em comum a paixão pelo universo infantil e o trabalho com atores mirins) e Frank Capra (os dois têm em comum uma certa dose de sentimentalismo e uma enorme simpatia pelas pessoas simples). Lean chegou a pedir a Spielberg que produzisse o filme que ele dirigiria; depois, ateve-se a outros compromissos e deixou o cineasta americano livre para tocar ele próprio o projeto.

Foi o seu filme mais caro (até 1987). O orçamento foi de US$ 35 milhões, bem mais que A Cor Púrpura (US$ 15 milhões) ou mesmo Caçadores da Arca Perdida (US$ 20 milhões). As filmagens, que duraram quatro meses, foram feitas na própria China (as cenas externas de Xangai), na Espanha (onde foi construído o que no filme é o acampamento de prisioneiros de Soochow) e na Inglaterra (as cenas de interiores nas mansões britânicas na China). Cerca de 15 mil extras participaram das filmagens na China e na Espanha.

Para o fundamental papel do garoto, foram entrevistados 4 mil candidatos, até se chegar a Christian Bale, um menino inglês de 13 anos que já havia feito trabalhos em comerciais de TV e em teatro. Spielberg, que durante as filmagens de E.T. levava um videogame para brincar com o garotinho Henry Thomas, dessa vez se divertia nos intervalos do trabalho apostando corridas com Christian Bale com um carrinho elétrico de controle remoto. Os métodos do diretor com seus atores mirins dão certo. Christian Bale está excelente; conseguiu sair-se perfeitamente bem na tarefa de envelhecer quatro anos em meio às mais duras privações. O comentário do autor J.G. Ballard não poderia ser mais lisonjeiro para Spielberg: “O menino que faz meu jovem alter-ego consegue uma performance que eu não tinha visto igual desde Jean-Pierre Leaud em Os Incompreendidos“, filme de estréia de Truffaut em 1959.

         Curso simperintensivo

Depois de se perder dos pais, o garoto Jamie é lançado em um curso superintensivo de adaptação ao mundo dos adultos. A princípio, usa sua fantástica imaginação, sua inteligência aguda e seu fascínio por aviões como válvulas de escape para sobreviver às agruras da miséria e da degradação física e moral do bando de estrangeiros – ingleses e americanos, na maioria – levados para campos de prisioneiros dos vitoriosos japoneses. Depois vai aprendendo, a duras penas, a manter-se vivo – mesmo que à custa de pequenos furtos, uma batata tomada a um doente, um par de sapatos tomado a um morto. Seu principal instrutor é um marinheiro mercante americano, Basie (interpretado por John Malkovich, de Um Lugar no Coração e Gritos do Silêncio), sujeito jeitoso e vagamente sem escrúpulos, que ajuda o garoto e explora seus pequenos expedientes, além de trocar-lhe o nome para o apelido americano de Jim, como passa a ser conhecido no acampamento de prisioneiros de Soochow, a poucos quilômetros de Xangai. 

Outro adulto que influencia o pequeno Jim é o inglês doutor Rawlins (interpretado por Nigel Havers, de Carruagens de Fogo e Passagem para a Índia), um médico que não consegue salvar ninguém da morte, no acampamento empesteado por subnutrição e malária, mas que ao menos tenta fazer com que o garoto mantenha alguma ligação com os livros escolares que abandonou na exclusiva escola inglesa antes que sua vida de sonho virasse pesadelo.

E há ainda a senhora Victor, uma inglesa amiga dos pais de Jim (interpretada por Miranda Richardson, a atriz de Dançando com um Estranho), no quarto de quem o garoto vive no setor inglês do acampamento de prisioneiros. É um personagem riquíssimo, fascinante, que demonstra a capacidade de Spielberg de criar um tipo usando 99% de ingredientes cinematográficos, de imagem pura, e apenas 1% de literatura, verbalização. A senhora Victor fala pouquíssimas frases ao longo do filme – e no entanto é um personagem extremamente bem criado, bem acabado. É uma espécie de contraponto de Jim: o garoto é um sobrevivente, possui uma força irresistível, uma tenacidade a toda prova, enquanto ela, a adulta, é incapaz de resistir à viagem sem escalas opulência-miséria total, Suíça-Biafra, e vai-se definhando interiormente, incapaz de reagir, embora – e esse é um toque de gênio – o definhamento moral seja acompanhado de um trágico embelezamento exterior. (Todo o filme é a visão do garoto Jim dos acontecimentos que o cercam; a senhora Victor é a única mulher com quem ele convive, dos 11 aos 14 anos, o período de despertar da sexualidade.)

         Deus tira uma foto

Jim e a senhora Victor estão juntos na cena mais tragicamente bela e certamente a mais simbólica de Império do Sol. Passa-se em 1945, quatro anos depois que a guerra “deles”, os asiáticos, transformou a vida dos ingleses e americanos moradores na China em um inferno. Estavam terminando as duas guerras, a “deles”, chineses e japoneses, e a II Guerra Mundial. Esfarrapados, famintos, doentes, os ex-milionários ingleses deixam o campo de prisioneiros de Soochow e andam quilômetros e quilômetros para o Norte, em busca de algum lugar onde haja comida. Vão dar em um estádio erguido no meio de uma região deserta, e onde os japoneses haviam juntado as riquezas saqueadas às mansões dos ocidentais – móveis Luís XV, um grande piano branco, lustres, porcelanas, um surrealista amontoado de símbolos de opulência tornados absolutamente inúteis. Ali a senhora Victor se deita para morrer. As tomadas seguintes foram filmadas em superexposição, com uma claridade fortíssima que praticamente apaga as cores. “Eu pensei que era Deus tirando uma foto”, dirá Jim mais tarde. “Ou que era a alma da senhora Victor subindo para o céu.” Era o clarão da bomba atômica lançada pelos americanos em Nagasaki.   

Em uma das entrevistas que deu sobre o filme, Spielberg lembrou: “A cada um o seu simbolismo. Para certas pessoas, a luz branca representa o estado mais elevado do conhecimento; para certas religiões, a luz branca é a última visão dos agonizantes. Para mim, a luz branca é o brilho das estrelas, esses focos incandescentes suspensos no céu. Mas, sobretudo, é a luz dos projetores sobre uma tela branca. É a luz do cinema”.

Em outra entrevista, no entanto, ele foi ainda mais fundo: “Quando aquela luz branca explode em Nagasaki, e o menino presencia a luz, duas inocências chegam ao fim: a do menino e a do mundo”.

         Sem ganhar um doce

A decisão de Spielberg de abandonar, em seus dois últimos filmes como diretor, a inocência infantil em troca da indecência do mundo dos adultos, tem sido explicada por muita gente como uma tentativa desse fascinante Peter Pan de finalmente demonstrou que ele cresceu, amadureceu, e sabe fazer filmes “sérios”, “adultos”. Fala-se muito, também, que com este filme ele gostaria de ganhar, finalmente, os prêmios que não ganhou por ter feito o público gostar novamente de ir ao cinema. Spielberg reage a isso com um cinismo que não esconde que ele admite a verdade: “Meu ofício é fazer filmes, e não ganhar prêmios. Neste país, temos cinco estações: primavera, verão, outono, inverno e a estação da entrega de prêmios. Nessa estação eu trabalho duas vezes mais. Claro: como todo mundo, eu gostaria muito de ser reconhecido por meus pares, mas nesse caso do Oscar, eu já me acostumei”.

 A Cor Púrpura foi candidato a 11 Oscars, e não ganhou nenhum. Império do Sol não foi indicado para nenhuma das categorias que importam – filme, diretor, ator, atriz, roteiro. Bobagem. Spielberg, como toda criança, gostaria bem de ganhar um doce. Mas ele é muito maior que a velha academia.   

Um P.S.-explicação em 2009: Este site, como está dito na Apresentação que ninguém tem a obrigação de ler, reúne o que eu fui escrevendo ao longo da vida sobre os filmes que vi. Na imensa maioria, são anotações pessoais, escritas para mim mesmo, em geral logo após ter visto os filmes, mas alguns são textos feitos para publicação em revistas e jornais em que trabalhei. É o caso do texto sobre Império do Sol.

 Por uma grande coincidência, pus esse texto no ar logo depois que, no dia 11 de janeiro de 2009, Spielberg foi homenageado com o Prêmio Cecil B. deMille pelo conjunto de sua obra na cerimônia da 66º Globo de Ouro – mais um prêmio na sua hoje grande coleção. Então, pode parecer estranho hoje o trecho final que fala que Spielberg ainda não tinha ganho prêmios importantes. Mas era, em 1988, a mais pura verdade dos fatos: até então, a Academia esnobava solenemente os filmes dele. Os Oscars só viriam em 1993, com A Lista de Schindler/Schindler’s List: sete, inclusive os mais importantes para filme, diretor e roteiro adaptado. Aí abriu a porteira e os prêmios não pararam mais.

Império do Sol/Empire of the Sun

De Steven Spielberg, EUA, 1987

Com Christian Bale, John Malkovich, Miranda Richardson, Nigel Havers, Jo Pantoliano

Roteiro Tom Stoppard

Baseado no livro de J.G. Ballard

Música John Williams

Fotografia Allen Daviau

Produção Amblin, Warner Bros.

Cor, 154 min

***1/2